Page 53 - ARTE!Brasileiros #56
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bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no
firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por
nossas veias”. (anGElou, 2018) As escritas de Carolina
restituem os corpos considerados “descartáveis” de
humanidade, ou seja, descartáveis de memórias, sub-
jetividades, individualidades e suas complexidades de
ser e existir no mundo.
ii. as letras De Carolina
As letras de Carolina Maria de Jesus são como as
águas que não pedem licença - Carolina entra, arre-
benta, inunda, lava e leva. As águas não têm pressa,
elas seguem seu curso no seu tempo, dizendo-nos que
elas são senhoras de vários tempos nos interstícios
entre passado e futuro, desaguando no presente. A
prosa e a poesia de Carolina, seguindo o curso e o
percurso das águas, ofertam-nos uma constante
reconstrução da sua própria existência, num fluxo
contínuo do eu para o nós.
As letras de Carolina Maria de Jesus nos remetem,
também, ao pensamento da intelectual Carla Akoti-
rene quando afirma: “[...] a língua escravizada esteve
Carolina Maria de Jesus em amordaçada, politicamente, impedida de tocar seu
1960, em foto para a revista idioma, beber da própria fonte epistêmica cruzada de
O Cruzeiro
mente-espírito”. (aKotirEnE, 2018, p. 16) Nesse senti-
Disco Quarto de despejo, 1961, do, a obra literária de Carolina desamordaça nossas
de Carolina Maria de Jesus línguas e contribui para a desmantelação das imagens
e memórias de controle opressoras das existências
negras. A partir das suas escritas, ela se torna sujeita
reflexiva e tensiona o campo da linguagem, nos jogos
de poder das letras. Carolina é dona da sua fala, dona
da sua existência. FOTOS: HENRI BALLOT / REVISTA O CRUZEIRO | COLEÇÃO JOSÉ RAMOS TINHORÃO / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
As letras de Carolina Maria de Jesus estão dentro da
sua norma de escrita, pois é uma grafia criada “[...] no
seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos — chamo
isto de escrita orgânica. […]”. (anZaldúa, 2000, p. 234)
A obra de Carolina desenquadra as palavras, tornan-
do-as organismos vivos, com as quais ela revela as
agruras de ser uma mulher negra, pobre, moradora da
favela do Canindé, mãe solo, realizando um trabalho de
desprestígio social. Porém, é com a sua própria escrita
que ela nos diz: a sua existência não se reduzia a essa
condição marginalizada, não limitava o seu sonhar, nem
o seu pensar a si mesma e ao mundo ao seu redor. É
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