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REPORTAGEM IMAGENS DE CONFLITO






                                                            rigoroso interpretando o que está acontecendo. E eu
                                                            acho que é em parte por isso que o olhar sobre os
                                                            estadunidenses neste livro é meio brutal e sarcástico.
                                                            Eu conheci a generosidade e a graça no coração dos
                                                            Estados Unidos. Da mesma forma, conheci muito bem
                                                            a violência incessante”, complementa o fotógrafo.
                                                               A escolha da sátira como veículo da crítica - ao
                                                            invés do uso deliberado do choque - mostra não só
                                                            sua experiência (vasta para um profissional tão jovem),
                                                            mas delineia um caminho contrário ao do mercado de
                                                            notícias, como explica Susan Sontag no livro Diante da
                                                            Dor dos Outros: “A busca por imagens mais dramáti-
                                                            cas (como elas são descritas frequentemente) guia a
                                                            produção de fotografias, e é parte da normalidade de
            Em 1º de maio de 2003, no porta-aviões Abraham Lincoln,   uma cultura em que o choque se tornou um estímulo
            o presidente George W. Bush anuncia “missão cumprida”   de consumo e fonte de valor”. Sobre as fotos-choque
            em relação à guerra no Iraque. A grande maioria das
            vítimas e da violência ocorreu após o discurso  (como chamou Roland Barthes), Sontag questionaria:
                                                           “Você pode olhar para isso?”. “Existe uma satisfação em
                                                            ser capaz de ver a imagem sem fechar os olhos. [Mas
                                                            também] existe o prazer de fechar os olhos diante do
            de um país à deriva, com consequências muitas vezes   horror”, pontua. Seja pela indignação, pelo mistério
            desastrosas”, e incluindo a noção de guerra eterna,  ou pela sátira, Peter consegue manter, através de
            exemplificada muito bem em quatro registros de dis- Sorry for the War, a prevalência do “por que?”. “Por
            cursos televisionados dos últimos presidentes dos   que essa face em Guantánamo foi escondida?”; “por
            eua (Bush pai e filho, Obama e Trump; com exceção   que as pessoas vão a museus olhar drones?”; “por
            de Bill Clinton), cujas falas deveriam anunciar o fim de   que o cenário atrás dessa criança está em ruínas?”;
            determinados conflitos e acabam por reforçar, nesses  “por que há uma enorme celebração esportiva no meio
            trechos congelados por Peter, o oposto.         de um livro sobre conflito?”.
               O título do livro, encontrado em um post-it rosa
            choque na capa da publicação, vem de uma fotografia  visualizanDo a guerra?
            tirada por Peter de uma ação, com o nome de Balloons   Em uma época na qual política é frequentemente con-
            for Kabul (Balões para Cabul, em tradução livre), em   sumida pelos cidadãos de maneira visual - por meio das
            uma galeria de arte em Nova York. “Os nova-iorquinos   mídias sociais, coberturas noticiosas em vídeo ou cultura
            escreveram notas para o povo de Cabul que seriam   popular -, a necessidade de tomar consciência do peso
            entregues a eles com balões cor-de-rosa durante seu   da comunicação visual é cada vez mais premente. “Essa
            trajeto matinal. Foi uma resposta bem intencionada,  necessidade se torna ainda maior ao considerarmos
            mas totalmente inacessível a um conflito que já durava   que tão poucos de nós [habitantes de áreas isentas de
            uma década. Muito do trabalho que faço é sobre a   conflito] têm, agora, experiência direta na guerra ou com
            desconexão entre os eua e as consequências de suas   o exército”, assim argumentam Nick Robinson e Marcus
           - ou de nossas - ações imperiais no exterior. Aquela   Schulzke no estudo Visualizing War? Towards a Visual
            nota e aquele evento pareciam simbolizar muito da  Analysis of Videogames and Social Media. Segundo os  FOTOS: PETER VAN AGTMAEL/MAGNUM PHOTOS. CORTESIA DO FOTÓGRAFO
            desconfiança e cinismo que eu nutria por nossa ideia   autores, ao ser vivenciada cada vez mais remotamente
            distorcida de empatia coletiva”, ele conta à também   pelos cidadãos, a guerra acaba sendo apresentada como
            fotógrafa Tanya Habjouqa. “Essa nota parecia apro- um espetáculo centrado no uso de artilharia remota cada
            priada porque este livro é meu pedido de desculpas e   vez mais poderosa e tecnologicamente sofisticada (a
            uma declaração de desamparo sobre o que aconteceu   exemplo das imagens recentes demonstrando o poderio
            nas últimas duas décadas. Não posso mudar nenhum   do Domo de Ferro, em Israel, ora parecidas com cenas
            resultado, mas certamente posso criar um documento   de Star Wars, outras com fogos de artifício).

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