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EXPOSIÇÃO SÃO PAULO
Como mencionado, passadas cinco décadas, a obra de
Sérgio Sister é apontada como uma das principais refe-
rências da pintura brasileira atual e, aparentemente,
não possui nenhuma referência daquelas produções de
início de carreira: nem o denuncismo de suas primeiras
pinturas, nem o teor crítico de seus desenhos. Será?
Nos últimos anos, a produção de Sister tem se carac-
terizado como uma afirmação de certos elementos
constitutivos da pintura, reverenciados na moder-
nidade, como estratégias para a delimitação de seu
próprio campo: a reiteração da bidimensionalidade,
a ênfase no ato de pintar e o uso planejado do mono-
cromático a enfatizar todas essas peculiaridades.
Nenhuma representação – a pintura não representa o
real, ela se apresenta como um novo dado –; nenhuma
cor mais estridente – os tons mais baixos tendem a
reforçar a dimensão planar da pintura e a realçar os
índices da ação do pintor sobre a superfície.
Porém, a distância entre os dois momentos da produ-
ção de Sister tende a encurtar-se quando se analisa a
estruturação que o artista fazia de suas pinturas no
início de carreira. Ali, talvez os ensinamentos das cor-
SÉRGIO SISTER, SEM TÍTULO, 1967 rentes construtivas brasileiras informassem a maneira
como o artista arquitetava o campo pictórico, dividin-
pinturas imediatamente anteriores havia como que do-o num tipo de gradeado que ressoava as estruturas
uma afirmação do discurso, um voluntarismo juvenil daquelas vertentes, dividindo o campo do suporte
repleto de vivacidade e ironia, nos desenhos agudos em áreas comunicantes, porém autônomas. Agora,
realizados na prisão, a arquitetura das cenas tende a observando suas pinturas recentes, parece que Sis-
se esvair, escoando pelos cantos (neste sentido, um ter foca sua atenção e trabalha em cada uma dessas
desenho em especial, que mostra a bandeira do Brasil áreas em particular, destacando-as do corpo geral da
em processo de diluição, me parece emblemático). O grade, fazendo com que alcancem seu protagonismo.
plano do papel recebe inúmeras situações, como que Difícil sustentar esse liame proposto para os dois
registradas à socapa. São várias cenas produzidas momentos do artista? Pode ser, uma vez que se
à maneira de colagens, em que o artista atesta o trata aqui de uma questão aparentemente de puro
cinismo, a barbárie, a tortura – cenas trágicas e – pas- interesse formal, como que para justificar a suposta
mem! – repletas de um quase humor ferino e triste. falta de engajamento atual de Sister frente à situação
Apesar de graves e importantes como testemunhos política e social.
instransponíveis da atuação do estado sobre o cidadão Engano. As pinturas austeras e rigorosas que hoje
comum, esses desenhos são mais do que isso, e não Sister produz guardam, das pinturas e sobretudo dos
se encaixam como emblemas solenes daquela situa- desenhos do seu período inicial, o mesmo papel de
ção em que o artista foi uma vítima entre tantas. São armas de resistência. Ao afirmar as especificidades
documentos de um crime, é certo, mas também sua da linguagem pictórica – tão caras à modernidade – a
própria superação. Atuam como a melhor resposta produção mais recente do artista parece se colocar
ao arbítrio porque o ridiculariza ao mesmo tempo numa distância crítica em relação à cooptação que
em que questionam a si mesmos. Esses desenhos sofre a prática da pintura nas últimas décadas, quase
se recusam a significar meros documentos sobre a sempre fácil presa do processo de alienação a que
barbárie sofrida, para atuarem como reelaborações vem sendo submetida – índice mais do que plausível
críticas das maldades que apontam, não se deixando do processo de alienação e embrutecimento que
abater por elas. São armas de resistência. nossa sociedade sofre na atualidade.
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