Page 38 - ARTE!Brasileiros #46
P. 38
ANÁLISE ARTE E TENDÊNCIAS
O próprio ruangrupa, ou Ruru, como é conhecido, deixou tornando manifesto o esgotamento institucional da arte, no
isso claro no texto divulgado quando se deu sua nomeação: momento do chamado “retorno à pintura”. Alguns meses
“Se a Documenta nasceu em 1955 para curar as feridas da depois, ele morreria.
guerra, por que não deveríamos focar nos machucados de Nesses últimos 50 anos, muitas propostas semelhantes
hoje? Em especial aqueles enraizados no colonialismo, no foram apresentadas, como uma do francês Nicolas Bourriaud,
capitalismo ou nas estruturas patriarcais e contrastá-los com que chegou a traçar uma teoria um tanto eurocêntrica, a
modelos baseados em parcerias que realmente capacitem “estética relacional”, dando conta de uma produção que
pessoas a terem uma visão diferente do mundo.” também se valia de parcerias.
De fato, “modelos baseados em parcerias” é uma expressão Contudo, entre as propostas recentes e mais radicais está a
essencial para se compreender arte contemporânea, desde obra da cubana Tania Bruguera, na Tate Modern, durante sua
seus primórdios nos anos 1960, mas que, muitas vezes, segue instalação no Turbine Hall, entre outubro de 2018 a fevereiro
sendo preterido por modelos arcaicos, que mantêm o artista deste ano. Junto com a ocupação do espaço monumental,
como autor criador de um objeto comercial. ela também foi responsável pelo programa Tate Exchange,
Ora, desde Hélio Oiticica e Lygia Clark, no Brasil, ou Joseph braço do educativo do museu, em uma ação inédita que
Beuys, na Alemanha, a ideia de obra foi questionada, sendo mudou o nome do edifício Boiler House da Tate Modern
substituída por outras propostas visando a ampliação do que para Natalie Bell, em homenagem a uma ativista local, além
seria o lugar da arte: seja na criação da Universidade Inter- de trabalhar com um grupo de vizinhos do museu, o que
nacional Livre, como defendeu Beuys, em um ambiente tera- ocorreu pela primeira vez na história da instituição, que
pêutico, para Clark, ou um espaço de encontro, para Oiticica. será mantido por três anos.
Em um texto de 2012, para a edição 30 da revista inglesa Em palestra na Suíça, em Verbier (veja página 14), Bru-
Afterall, o crítico David Teh aponta como o ruangrupa guera defendeu o que considera a nova forma de entender
“tem feito um profundo compromisso com Jacarta, tanto o que é estética hoje. Para tanto, ela separou a palavra em
como lugar quanto como sujeito, e para sua população, espanhol, o que também vale para português, em “Est Etica”,
tanto como público quanto como autor. Desde o primeiro ou seja, ser ético. “Essa é a questão essencial na produção
dia, o grupo tem feito da cidade — a barulhenta máquina artística de hoje, levar em conta o contexto, ser ético com
de comércio e administração não considerada fonte de o outro”, disse a artista. Ela chegou a promover encontros
cultura — uma protagonista primária de uma aventura entre os moradores e responsáveis pelo museu.
épica de narração coletiva”. No Brasil, muitos são os artistas que vêm buscando criar
Nesse sentido, a ideia de artista-propositor, defendida tanto pontes com grupos e comunidades específicas. Há quem abra
por Oiticica quanto por Clark, fica clara. Ainda segundo Teh, seu ateliê transformando-o em espaço de acolhimento para
no mesmo artigo, “a prodigiosa capacidade do coletivo pessoas trans, enquanto outros participam de atividades
alcança uma estética diversificada, incorporando desde o em ocupações, como na Ocupação 9 de Julho, ou mesmo
punk à cultura de rua, passando pela pesquisa documental trabalhem com instituições como as Redes da Maré, no
e etnográfica, chegando até a experimentos conceituais e Rio, gerando ações de defesa desses espaços. São todas
processuais. Misturar tudo é uma convicção firme de que atividades que partem de um compromisso com questões
os participantes são agentes em uma história social viva”. sociais que se mesclam com preocupações do campo da arte
Essa proposta de considerar o público como agente, afinal, ou que tem nele um gatilho. A Casa do Povo, no bairro do
é tudo que Beuys e Oiticica buscavam, em um programa Bom Retiro, em São Paulo, tem sido um lugar privilegiado
que defendia uma expansão tão grande do campo artístico para esse tipo de parceria.
que não haveria mais limite entre arte e vida. “O museu é Por isso, quando Ade Darmawan, um dos membros de ruan-
o mundo”, defendia Oiticica. “Todo mundo é um artista”, grupa, afirma que “um artista deve ser capaz de constante-
pregava Beuys. Não por acaso, foi na Documenta 6, em mente balançar a fé das pessoas e tudo que está em volta
1982, que o artista alemão usou a mostra como espaço dela ou dele, e contribuir criticamente para negociações
para a Universidade Internacional Livre, e dois anos depois sociais sobre valores existentes”, é possível constatar que
realizou uma série de cartões postais com textos provo- a Documenta 8 15 vai seguir sendo o melhor termômetro
cativos, entre eles a frase “Com isso abandono a arte”, para a arte ou não-arte do presente.
38
ARTE_46_Marco2019.indb 38 25/03/19 14:33