Page 72 - ARTE!Brasileiros #43
P. 72

CAPA ARTISTA








           cotidianos da vida urbana. Embalagens plásti-  enfoque político e fazia questão de levar os jor-
           cas, papeis, garrafas, roupas, móveis: é possível   nais da semana para compartilhar com a gente.
           encontrar todo tipo de objeto nas esquinas da   Nos ensinava técnicas de desenho e de pintura,
           cidade. O lixo, para Patrício, diz muito. A série   e nos ajudava a desenvolver leitura crítica. Balzi
           de fotos Aceita? expõe a inquietação do artista   intercalava os encontros no bairro com idas aos
           paulistano com a cidade, com tudo aquilo que,   museus da cidade, como Pinacoteca, por exemplo”.
           segundo ele, deixamos de ver quando descar-  Hoje, com 33 anos, Moisés conta que conheceu a
           tamos os plásticos, as vidas e uma variedade   arte na sua forma mais libertadora, diferente dos
           de bens com ou sem valor.                    formatos engessados que estudou na ECA-USP,
           Moisés explica que a série nasce do seu deses-  Escola de Comunicação e Artes da Universidade
           pero em ser assimilado pela sociedade ao seu   de São Paulo.
           redor e das reflexões sobre a mão de obra do   Durante os quatro anos em que estudou, Moisés
           período escravocrata e, atualmente, servil. “A   viveu sua maior crise enquanto artista. Sendo um
           série nasce, também, da busca de olhar para a   jovem negro, de periferia, a arte europeia, majori-
           mão como obra artística. Ela nasce do meu deses-  tariamente branca, não proporcionava identifica-
           pero de ser assimilado pela sociedade. De um   ção. “Existe uma prepotência, uma arrogância do
           modo geral, na faculdade, tive muita dificuldade   ser professor de uma universidade pública para um
           de encontrar minha poética, porque tudo estava   aluno negro. Eles se deparam com uma deficiência,
           ligado a um universo pelo qual sinto mais dor do   uma falha e aí a minha maior frustração era que
           que amor. Passei quatro anos estudando e me   essa insuficiência me impedia de desbravar junto
           embranquecendo”, conta.  Para se reencontrar,   [com os professores] esses temas. Eu os colocava
           o artista produziu uma serie de autorretratos de   na parede e dizia ‘olha, eu não tenho uma afini-
           nu artístico e outra de fotografias de partes do   dade com o Expressionismo alemão. Onde estão
           seu corpo. Mas foi caminhando pela cidade que   as outras referências?’”. A resposta, segundo
           encontrou o tom. “Eu aprendo e apreendo de outra   Patrício, era de que seu olhar estava condicionado.
           forma, minha aprendizagem esta muito ligada à   “Eles costumavam dizer ‘vem aqui, vou te ensinar’.
           dança, à comida, ao tempo das coisas, de fazer   Eu ficava naquele lugar de [ser] muito pequeno,
           junto, olhando. Fui educado assim no terreiro [de   sem crescimento”, critica.
           Candomblé]. Então, lá, você canta e dança para   Apesar disso, o cenário mudou, ainda que pouco,
           ter acesso ao conhecimento”.                 para melhor. De acordo com ele, nos últimos quatro
           Filho de Exu no Candomblé, orixá ligado à comu-  anos surgiu um grupo de artistas e estudantes
           nicação, movimentos do corpo, ao caminhar, ao   negros da instituição que, juntos, criaram o cole-
           facilitar o trânsito de corpos e ideias, Moisés se   tivo Opa Negra, que promove ações de empode-
           deparou com a cidade e seu próprio corpo como   ramento e valorização do saber negro. Depois de
           obra. Fez uma, duas, três fotos e, então, nasceu a   se reencontrar, ele voltou à ECA como palestrante
           série Aceita?, que busca, entre tantas coisas, discutir   e, a partir de junho, ocupará no Masp um espaço
           o descarte provocado pelo consumo e se apropria   que já foi menos aberto ao não-branco.
           desse desprezo como metáfora para o que chamou   Apesar de ter sido idealizada como uma série
           de “descarte do jovem negro no Brasil”.      de 200 fotos, Aceita? evoluiu para algo mais.
           O artista nasceu na periferia. Aos nove anos teve   Hoje, Moisés planeja chegar às mil fotos e seguir
           contato com a arte pela primeira vez, ingressando   contando. Ele explica que a série continua tra-
           nas aulas promovidas pelo artista argentino Juan   zendo reflexões atuais e importantes à sua vida,
           José Balzi, que morreu em 2018, aos 89 anos.   e que, além disso, enquanto negro, criado na
           “Ele [Balzi] disponibilizava os materiais, levava   periferia, ele deseja ver sua mão envelhecer a
           tintas, papeis e jornais para nós. Ele tinha um   cada novo clique.


          72
   67   68   69   70   71   72   73   74   75   76   77