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CRÍTICA EU ARMÁRIO DE MIM






            O QUESTIONAMENTO DE UMA ÉPOCA, POR LETÍCIA PARENTE

             Mostra na galeria Jaqueline Martins reúne trabalhos da artista nos anos
             1970 e 1980, revelando por completo poética até então pouco conhecida


             POR FABIO CYPRIANO



             ATÉ MAIO PASSADO, Letícia Parente (1930 – 1991) era
             praticamente conhecida como artista de uma só obra:
             Marca Registrada. No vídeo, criado em 1975, ela costura
             nos próprios pés a expressão “Made in Brazil”, um trabalho
             visto e revisto em mostras que tratam questões em torno
             do corpo, do gênero, do período militar no Brasil ou mesmo
             da linguagem audiovisual.
             Morta prematuramente aos 60 anos, ela acabou não tendo
             tempo de ver a sua obra ser revista como tantas outras
             de sua geração, caso de Anna Maria Maiolino e Anna Bella
             Geiger, que hoje alcançam repercussão internacional e
             projeção a partir de suas produções daquela época.
             Eu armário de mim, exibição na galeria Jaqueline Martins
             entre março e maio, apresentou um conjunto representativo
             de obras, até então praticamente inéditas, que permitem
             compreender a poética de Parente para além do emble-
             mático vídeo. Surpreende até que a mostra não ocorra em
             instituições museológicas, mas de fato a galeria de Jaque-  SEM TÍTULO (1975) DA SÉRIE MULHERES DE LETÍCIA PARENTE
             line Martins tem cumprido importante papel em apresentar
             uma produção pouco conhecido dos anos 1970 e 1980.
             Grande parte das obras exibidas foi realizada em 1975, um
             ano altamente produtivo para Parente, doutora em química,
             professora titular da Universidade Federal do Ceará e da
             Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Daquele
             ano, há trabalhos em distintas linguagens, de colagens   da imagem da mesma pessoa, apenas alterando-se as
             e desenhos, passando pelo vídeo, mas sobressaindo-se   distâncias entre partes da face.
             especialmente o uso do xerox.               Há de fato um bom humor que percorre essas obras de
             Em todos eles, a crítica aos costumes se sobressai, como   Parente, que também a aproxima da produção militante
             no vídeo que dá o título à exposição. Em Eu armário de mim,   e sarcástica de artistas como a norte-americana Martha
             a artista repete a frase como um mantra, enquanto se vê   Rosler. Autora do também emblemático Semiotics of the
             um guarda-roupas sendo ocupado de distintas formas: da   Kitchen, realizado no mesmo ano de 1975, que descreve
             maneira usual a repleto de móveis como cadeiras, ou apenas   como usar utensílios de cozinha, junto com Parente, ambas
             com calçados. Difícil não lembrar da produção de artistas   captam o espírito contestador da época, que incluía a luta
             atuais como Sara Ramo, que também reconfigura objetos   pela emancipação feminina.
             cotidianos de forma obsessiva em espaços pequenos.   Contudo, o que mais surpreende na mostra é a instalação
             O que se percebe é que Parente, nos anos 1970, já constituía   Medidas, de 1976, uma obra interativa constituída por
             sua obra a partir da subversão das ordens estabelecidas,   um conjunto de estações para medir o tipo sanguíneo, a
             como os arranjos convencionais em um lar. Naquele período,   atenção, a visão, a resistência a dor, o tipo físico, o peso,
             as tarefas domésticas eram sempre identificadas com a   a altura e a respiração dos visitantes. Com essas infor-
             figura feminina e ao inserir situações que provocam atritos   mações, é possível fazer comparações com outros dados
             nessa imagem, ela acaba por criticar as funções estabele-  previamente coletados de jornais e publicações e relacio-
             cidas por um sistema que começava a entrar em colapso.  nar as informações como a se encaixar em padrões, uma
             A crítica à busca da beleza, outra exigência que naquela   instalação pioneira ao relacionar arte e ciência no País, e
             época dizia respeito praticamente apenas às mulheres,   ainda de forma divertida.
             também é tematizada nas colagens de Projeto 158-1/Série   Resgate é hoje palavra desgastada, mas o que se vê em Eu
             Mulheres. Nela se vê uma espécie de menu de tipos pos-  armário de mim é algo além disso: uma obra que mesmo
             síveis como “comportamento vegetariano tranquilo” ou   tendo permanecido desconhecida por anos, ao ressurgir
             “comportamento estatístico médio”, todos feitos a partir   segue atual e contundente.







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