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LIVROS FOTOGRAFIA
VERBOVISUALIDADE
ENSAIO ORIGINAL DO POETA, CRÍTICO E CURADOR MADRILENHO ADOLFO
MONTEJO NAVAS DESFAZ AS FRONTEIRAS ENTRE FOTOGRAFIA E POESIA
POR DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES
AINDA SE OUVEM ECOS da discussão sobre o Nobel de litera- ARTHUR OMAR (Poços de Caldas, MG).
tura dado a Bob Dylan, como se a poesia não fosse, lato sensu, A obra do artista é plural, ultrapassa o conceito de
a mais livre das manifestações artísticas. De certa forma, é daí multimídia (produz música, poesia, ensaio, desenho) e
que parte Montejo Navas em seu livro Fotografia & Poesia (Afi- se expressa em exemplos de diversa natureza dentro
nidades Eletivas). Trata-se de um ensaio inspirado e inspirador, da fotografia e suas porosas coordenadas com as
no qual ele situa ambas linguagens num âmbito de “estética instalações, obra fílmica, vídeo. Mas em toda sua obra fica
ampliada, que vive de metamorfoses, apropriações, modulações refletido, sobretudo, um interesse dionisíaco e reflexivo
insuspeitas entre a ‘arqueologia do detalhe’ e as ‘micrologias pela natureza da imagem, pelo mergulho sensorial e
da existência’.” Entre essas afinidades, o autor discerne a busca cognitivo de sua experiência, como uma aventura abissal
por tornar permanente tudo o que é fugaz; a suspensão do da linguagem, uma escrita dos signos que constrói uma
tempo como um enigma; a submissão da pluralidade do real a antropologia visual e cultural ao mesmo tempo. Isso
uma unidade, a uma concentração. “Em certo sentido”, afirma, explica o lugar indissociável que também ocupa a teoria
“são artes metonímicas por excelência.” em sua obra; de fato, nunca deixa de ser um ensaio
O livro se estrutura de acordo com seu tema: é a um só tempo imagético o seu corpus artístico: como uma aventura da
poético e visual, alimenta continuamente o intelecto e a imagina- percepção, de visualização que arrasta a fotografia, no
ção, com citações sensíveis de mestres esperados como Susan caso, a territórios desconhecidos, “um passo imagem
Sontag, Octavio Paz e Roland Barthes, mas também de nomes adentro”, segundo palavras do artista. E como certa
mais específicos em torno da fotografia, como Juan Fontcuberta operação fenomenológica, de optar por criar-sintonizar-
e Horácio Fernández. Poemas de Wallace Stevens, Nicanor Parra detectar uma cosmologia pressentida, uma ciência
e Ronald Polito, entre muitos outros, surgem aqui e ali, ilustrando do sensível (pré-logos), traduzir uma cosmovisão, as
ideias, sublinhando conceitos, ampliando sugestões. As páginas múltiplas faces do que está em ambos os lados da câmera
são diagramadas com leveza e certa narrativa imagética, respei- e não só diante da lente. Esse mesmo jogo de imersão
tando a própria natureza do ensaio. quase líquido amniótico da imagem oferece resultados
O autor mergulha fundo em sua pes- que enganam seu lado estático, pois o que se oferece
quisa; entra na câmera escura da são aparições, potências de visão. Se as configurações
bela mestiçagem proposta e extrai simbólicas continuam nessa falta de fronteiras, a
de lá definições elegantes tanto da surpresa também: outro mapa de ver, de olhar além. Se
evolução da fotografia e da poesia seus títulos-obras funcionam como manifestos visuais,
ao longo do tempo, quanto de suas à reverberação barroca das formas-matéria une-se um
criativas confluências na arte, na fic- background culturalista que acasala Grécia, Vermeer,
ção, nos fotolivros, no que chama de Malevitch, a arte moderna e a cosmologia indígena. Daí
fotografia transversa e assim por que a imagem escolhida, procedente de uma deriva foto-
diante. Ao final, Montejo Navas elege gráfica (fruto do momento da própria impressão) do livro
algumas imagens de impacto e as Viagem ao Afeganistão (2010), seja um rosto-paisagem
FOTOGRAFIA & POESIA
(AFINIDADES ELETIVAS) comenta, com perspicácia e inteli- que consegue ser o inverso, uma paisagem-rosto: propõe
ADOLFO MONTEJO NAVAS
UBU EDITORA, 224 PÁGINAS gência. Seguem três exemplos: uma infância do olhar.
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Book_ARTE 40_Bilingue.indb 86 9/21/2017 3:57:28 PM