Page 68 - ARTE!Brasileiros #40
P. 68
EXPOSIÇÃO ENTREVISTA
Seu retorno da Suíça ocorreu às vésperas do AI-5, em meio a um tempo, mas dez anos depois já havia índios andando de
turbilhão de acontecimentos. Antes de começarmos essa gravação, helicóptero e avião.
você comentou que, por conta das constantes manifestações, teve Inevitável falar sobre o que está acontecendo em Belo Monte, com
apenas três meses de aula na ESDI. Qual foi seu grau de engajamento várias tribos sob risco de dispersão em massa.
nas questões sociopolíticas daquele período? Obviamente, a questão da energia limpa é fundamental.
Sempre tive muita consciência política, mas nunca fui parti- Não dá mesmo para encontrar saídas que impliquem sem-
dário. Sou talvez uma pessoa muito mais ligada ao sistema pre na devastação dos recursos naturais. Acho essencial
anárquico do que a esse sistema polarizado em direita e desenvolver e investir em pesquisas de energias alternati-
esquerda. Achava interessante essa movimentação toda vas. Mas é uma grande violência querer levar conceitos de
por aqui, mas confesso que tudo me parecia muito papo- uma sociedade como a nossa, que já está tão decadente,
-furado, muito debate e conversa jogada fora. Na ESDI, as para uma que ainda tem noções tão diferentes do que é
aulas pararam para que fosse discutida a possibilidade de o convívio em grupo. É uma coisa extremamente ruim o
refazer o currículo e torná-lo mais adequado à realidade que está acontecendo em Belo Monte. Não vejo nada de
brasileira. Com isso, todo o projeto de design baseado nas positivo nisso. E tem outra questão fundamental: gerar
experiências da Bauhaus, simplesmente, dançaria. Acho mais energia para que? Para alimentar mais geladeiras
que não dá para ter essa mentalidade de jogar uma coisa e eletrodomésticos?! Vivemos em um sistema de desper-
fora para construir outra. É preciso absorver as coisas mais dício, e essa obsolescência é um dos piores hábitos que
ricas de cada parte do mundo. Em 1968, a repressão estava a gente pode ter. Eu, por exemplo, que trabalhei muito
às vésperas de entrar em seu momento mais nefasto por com fotografia, aprendi a linguagem praticando e nunca
aqui e, na época mais pesada, durante o governo Médici, tive fetiche por máquinas. Hoje, há uma enorme obsessão
entre 1970 e 1972, eu estava em Nova York. Sempre fui em relação às câmeras digitais. Tenho até problemas de
muito individualista, e meus protestos, minha raiva contra conversar com outros fotógrafos, por conta desse fetiche.
as injustiças sociais eram sempre colocadas nas minhas O assunto é recorrente?
fotografias e nos meus filmes. Minha maneira de mostrar Sim, tem sempre alguém extasiado porque saiu uma nova
minhas convicções políticas era essa. A riqueza do indivíduo câmera que faz isso, outra que faz aquilo. Na minha vida
tem de ser mantida sempre. profissional, nunca fiquei discutindo essas questões e
O fato de você ter se isolado aqui em Araras tem a ver com esse não vai ser agora que vou entrar nelas. Isso é algo que
seu senso de individualidade? está intimamente ligado a esse consumo desenfreado.
Eu, de certa forma, sou marginal na essência. O fato de O equipamento é uma coisa básica, que você precisa ter
ser filho de diplomata, por si só, já atribui a alguém a para produzir o que quer mostrar ou dizer. Ele não é o fim.
marginalidade de nacionalidade. Ser uma pessoa que É um simples meio e ponto final. Comecei a paginar no
trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é tam- primeiro Photoshop e, pouco tempo depois que dominei
bém uma marginalidade em relação ao próprio sistema, tudo, veio a Adobe e lançou uma nova versão, com todas
que o tempo todo tenta definir você como uma coisa só. as ferramentas trocadas de lugar. Uma tremenda sacana-
Eu estou aqui e continuo me sentindo marginal. Estou gem, mas, claro, uma maneira de tirar nossa concentra-
rodeado de pessoas de classe média alta com quem não ção, porque estamos vivendo a era da desconcentração.
tenho absolutamente nada a ver. Quando fiz o trabalho Então, voltando a Belo Monte, construir uma usina para
com os Caiapós e com outros índios, quis expor uma socie- gerar mais energia em um lugar que implica detonar a
dade que oferecia alternativas à sociedade estabelecida. vida de várias aldeias é uma ideia criminosa.
Várias ideias não consegui realizar, mas fiz fotografia de Voltando a questão geracional, você, que assistiu todo o processo
vários filmes de um cara chamado Alceu Massari. Filmes de perto, que balanço faz do período democrático recente?
bem políticos, de denúncia de situações absurdas nas Podemos fingir que a democracia existe, mas, na verdade,
aldeias. Em 1983, convidado pelos chefes, eu consegui ela não existe. Quando George W. Bush foi eleito nos Esta-
entrar em uma aldeia de Caiapós porque já tinha ido lá dos Unidos, por exemplo, o mundo todo se deu conta de
para fotografar um garimpo de ouro que havia na região. que nem mesmo lá a democracia é tão democrática. O que
Foi uma experiência muito rica em termos de contrastes houve ali foi uma eleição roubada. Até hoje não entendo
de sociedades. Dez anos depois, havia na aldeia uma por que o Al Gore não teve culhão para reverter isso. A
cisão interna. Naquele período anterior, eles eram como questão é que o interesse dessa gente está todo ligado a
guerreiros imperialistas e sobreviveram assim por muito grana. O ideal americano é o dinheiro. Existe uma parte
68
Book_ARTE 40_Bilingue.indb 68 9/21/2017 3:56:48 PM