A violonista Rosinha de Valença. Foto: Reprodução / Youtube

Bem, amigos, chegamos hoje ao 30° álbum destacado em Quintessência. Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, cabe aqui a mea culpa deste humilde escriba: só agora me dei conta de que este espaço se tornou espécie de “Clube do Bolinha da Música Brasileira”, porque até o momento nenhum álbum destacado aqui havia sido dedicado a compositoras, instrumentistas ou intérpretes femininas.

Não pensem vocês, amigas leitoras, no entanto, que este pobre colunista vem sendo acometido por notória misoginia. Pelo contrário. Distinção de gêneros, com exceção catalogar dos desdobramentos das vertentes musicais, é algo que não existe em minha discoteca, em minhas pesquisas e tampouco em meu pensamento.

Vamos, então, aos possíveis álibis desse machista esquivamente confesso: no período tratado nesta coluna – entre 1960 e 1980 – patente é o fato que a produção masculina em nossa música popular, sintoma histórico, é volumétrica e predominante.

Exceto às grandes cantoras dos anos 1950 e 60 – Elizeth, Dalva, Claudette, Doris, Alaíde, Flora, Wanda, Leny, Nara, entre outras – trabalhos autorais assinados por mulheres, infelizmente, só começaram a ser mais valorizados, no Brasil, a partir dos anos 1970 – década marcada pela afirmação de super-intérpretes como Gal Costa e Maria Bethânia.

Outro porém contemporâneo, em pleno início da segunda década do século 21, os álbuns aqui dissecados dependem do pré-requisito de terem disponíveis online os arquivos virtuais, e eles são escassos, para que nossos leitores possam ouvir a íntegra e, assim, entender, de fato, do que estamos falando. Você mesmo poderá constatar, em uma busca rápida na internet associando nomes femininos de artistas brasileiros com o quesito “álbum completo”, ou “full álbum”, os resultados, infelizmente, são pífios.

Capa do LP lançado, em 1964, pela Elenco. Foto: Reprodução

Perante essa limitação, vamos então ao tema da coluna de hoje: o violão magistral de uma moça nascida, em 30 de julho de 1941, no interior fluminense, na mesma cidade de Valença que nos deu Clementina de Jesus, esse talento ímpar, que atendia pelo nome de batismo Maria Rosa Canellas.

Além do irmão Roberto, músico de um regional atuante em Valença, Maria Rosa era também sobrinha do violonista Fio da Mulata, músico dos mais requisitados na Época de Ouro do Rádio, que atuou ao lado de Araci de Almeida, Ademilde Fonseca e Lúcio Alves, entre outros.

Fio também dirigiu programas de calouros na Rádio Clube. Por influência de Roberto e do tio, seu primeiro professor, a menina Rosinha começou a estudar violão na infância.

Aos 12 anos de idade, já impressionava o público local, se apresentando em bailes e em participações de regionais. Em 1960, aos 19, abandonou de vez os estudos ao concluir que o caminho para a música era irreversível. Três anos mais tarde, no início de 1963, driblando a enorme timidez, Rosinha mudou-se para a capital fluminense em busca de maior projeção para sua carreira artística.

Na Cidade Maravilhosa, teve a sorte de cruzar o caminho do cronista Sergio Porto – o saudoso e genial Stanislaw Ponte Preta. E foi ele quem levou a prodigiosa moçoila para apresentá-la a Aloysio de Oliveira, o patrão da Elenco, e a outro ás das seis cordas, Baden Powell – que há pouco também havia arrebatado o público carioca, ao chegar da pacata Varre-Sai com um violão do tamanho do mundo.

Mergulhando no universo boêmio e masculino do Beco das Garrafas, Rosinha deu início a uma temporada de oito meses de shows, de enorme sucesso e consolidação de seu nome no circuito instrumental, no legendário Bottles. Teve também carta branca de Aloyiso para produzir, pela Elenco, seu álbum de estreia. Lançado em 1964, Apresentando Rosinha de Valença é um dos clássicos do selo carioca.

A bela capa foi produzida com a excelência da dupla Cesar Villela (arte gráfica) e Francisco Pereira (foto). Em meio a uma exuberante arte não creditada, mas ao que tudo indica é do ilustrador Fortuna, a contracapa traz texto de Sergio Porto, em que o cronista esclarece o porque do nome artístico dado por ele à violonista:

“Elogiar Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome, ‘Rosinha de Valença’, porque achei que ela toca por uma cidade inteira”.

Contracapa do LP. Foto: Reprodução

Para acompanhar a moça, às vésperas de arrebatar cidades de todo o mundo, Aloysio – como de praxe, produtor do biscoito fino – convocou um time de primeiríssima: o baterista Dom Um Romão, o baixista Sergio Barroso, o flautista Jorginho e o violonista e pianista Oscar Castro Neves, gentilmente cedido pela gravadora RGE.

Autor do tema Até Londres, no qual faz scats vocais com Rosinha, Castro Neves é também o arranjador do LP. O repertório inclui clássicos da nascente bossa nova, como Ela é Carioca, de Tom e Vinícius e Minha Saudade, de Donato e João Gilberto, da bossa paulista, o Tema do Boneco de Palha, de Vera Brasil e Sivan Castelo Neto, e um afro-samba que já nasceu clássico, Consolação, de Baden e Vinicius. Completam o LP Tristeza em Mim, de Mauro Tavares e José Guimarães, Praça 11, de Herivelto Martins e Grande Otelo, Atirei o Pau no Gato, o tema infantil, de domínio público, e Com Que Roupa, o clássico de Noel Rosa, interpretado na voz miúda e acanhada de Rosinha (a propósito, a timidez da moça com trejeitos de caipira, reza a lenda, inspirou Jorge Ben a compor a deliciosa Bicho do Mato, um dos destaques de Ben é Samba Bom, terceiro álbum do Babulina).

Ainda em 1964 Rosinha integrou no Paramount, o legendário teatro de Walter “Pica-Pau” Silva, o show O Fino da Bossa, megassucesso da TV Record, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. A violonista colaborou também para artistas como Nara Leão, as baianas do Quarteto em Cy e Eliana Pittman.

Mas as fronteiras literalmente ficaram invisíveis para Rosinha a partir de 1965. Ocasião em que ela partiu em turnê para os Estados Unidos integrando o Brasil 65’ do pianista niteroiense Sergio Mendes, ao lado de Jorge Ben, Chico Batera, o baixista do Bossa Três, Tião Neto, e a cantora Wanda Sá.

No início da turnê americana, Jorge abandonaria o grupo, depois de sofrer preconceito em uma barbearia de Los Angeles ao ser ignorado pelo par de profissionais do salão, que ociosamente lia o jornal do dia quando ele chegou ao estabelecimento. Abrindo aspas, o episódio lamentável é narrado por Ruy Castro em Chega de Saudade e reproduzido a seguir.

“Jorge sentou-se despreocupadamente numa das cadeiras vazias, disse ‘barba e cabelo’ e ficou esperando. Só se tocou quando um dos barbeiros lhe disse, usando apenas um canto da boca ‘estamos ocupados’. Ben saiu dali e foi direto à Varig comprar a passagem de volta.”

A incursão americana de Rosinha ainda rendeu participação em outro belo álbum, Bud Shank & His Brazilian Friends, LP do saxofonista e flautista norte-americano, que conta com a participação do mestre João Donato, lançado pelo selo Pacific Jazz.

Mesmo sem a presença de Jorge Ben impulsionados com a releitura de duas canções de sua autoria, Mas Que Nada e Chove Chuva, Sergio e sua trupe conquistariam os EUA. Sob o codinome Brasil 65’, o grupo lançou dois álbuns, ambos com o violão de Rosinha reinando soberano e a cantora Wanda Sá como intérprete: Brasil’65 Wanda de Sah featuring Sergio Mendes Trio e In Person at El Matador!: Sergio Mendes & Brasil’65.

De volta ao Brasil, em 1967, Rosinha integrou o grupo de Maria Bethânia no espetáculo Comigo me Desavim. No ano seguinte, a convite do Itamaraty, a violonista fez uma turnê por países da Europa e da África e teve a oportunidade de tocar com estrelas como Stan Getz, Sarah Vaughan e Henri Mancini.

Nos anos 1970, Rosinha tornar-se-ia fiel escudeira do sambista Martinho da Vila. Em 1980, encerrando uma discografia de 11 grandes títulos, fez par com outro gigante do violão brasileiro, o maestro Waltel Branco. O encontro histórico ficou registrado no LP da Som Livre Violões em Dois Estilos: Rosinha de Valença e Waltel Branco.

Mas, dessas grandes injustiças da vida, a trajetória triunfal da maior violonista do País teve fim de forma lenta e trágica. Em 1992, após sofrer uma parada cardíaca, Rosinha teve uma paralisia cerebral que a colocou em estado vegetativo por 12 anos.

Em 1994, liderados por Maria Bethânia, com o objetivo de arrecadar fundos para as despesas do tratamento de Rosinha, uma série de artistas prestaram homenagens à ela, no Canecão.

A menina que tocava por uma cidade inteira e encantou o mundo partiu há exatos 10 anos, em 10 de junho de 2004. Ponto final para uma grande mulher e uma embaixadora das belezas indizíveis de nossa música popular ao redor do mundo.

Naquele mesmo ano foi lançado pela Biscoito Fino, em CD, o tributo Namorando a Rosa. A compilação reúne, entre outros, artistas como Bethânia, Miúcha, Caetano, Chico, Hermeto e Alcione.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

*Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 6.3.2014, por Marcelo Pinheiro

MAIS

Veja Rosinha de Valença, Chico Batera, Rubens Bassini (tamborim), Sergio Barroso (contrabaixo) e J.T. Meirelles (flauta transversal) interpretar uma versão instrumental de ‘Consolação’ (Baden Powell / Vinicius de Moraes) no programa ‘Folklore Der Welt – Bossa Nova do Brasil’. na Alemanha, em 1966.


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