Hilda Hilst
Retrato inédito de Hilda Hilst, feito por Fernando Lemos, em 1954, que ficou 60 anos guardado e foi gentilmente cedido à reportagem de Brasileiros pelo fotógrafo português, amigo da escritora.

Em dezembro último, Mauro Munhoz, diretor geral da Flip, a Festa Literária de Paraty, antecipou, em comunicado à imprensa, que a escritora Hilda Hilst (1930 – 2004) será a grande homenageada da edição 2018 do evento literário. Em 2017, ano de estreia da atual curadora, Josélia Aguiar, a Flip teve recorde de escritoras e autores negros, fato aprovado pelo grande público em uma das mais celebradas edições recentes.

Ao anunciar a escolha de Hilst como sucessora de Lima Barreto no panteão de homenageados, Munhoz enalteceu o caráter provocativo e inspirador da autora: “Assim como outros poetas brasileiros (Hilda), leu Brummond, Bandeira e Cabral, mas leu também Fernando Pessoa, o francês Saint-John Perse e o alemão Rainer Maria Rilke. O resutlado e´uma literatura inovadora do ponto de vista da linguagem que exerce, por exemplo, forte influência na cena da dramaturgia brasileira de hoje”, afirmou.

Para aqueles que desejam aprofundar seus conhecimentos sobre a obra e a vida de Hilda Hilst, desnecessário, no entanto, aguardar até o final de julho (a Flip 2018 está programada para acontecer entre os dias 25 e 29): entre os dias 9 e 30 deste mês de janeiro, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, sediado em São Paulo, realiza o curso Hilda Hilst: presente saiba mais).

Com encontros semanais às terças-feiras, o curso será ministrado pelo jornalista e escritor Flávio Aquistapace, que abordará a prosa tardia e o rico legado de Hilst , com foco em quatro de seus títulos Contos D’escárnio – Textos GrotescosO Caderno Rosa de Lori LambyCartas de um Sedutor e Rútilo Nada.

Em janeiro de 2014, Hilda Hilst foi capa da edição 78 da revista Brasileiros, em reportagem de Gonçalo Júnior, que trouxe fotos até então inéditas e gentilmente cedidas pelo português Fernando Lemos, amigo da autora. Leia, na íntegra, a seguir.

Nunca houve uma mulher como Hilda

Ela foi linda e teve todos os homens que desejou – exceto Marlon Brando. Escritora e poetisa paulista, rotulada de pornógrafa e consagrada pela crítica, volta agora, dez anos depois de sua morte, em documentário, lançamentos, relançamentos e minissérie. Por aqui, amigos íntimos contam quem foi, de fato, Hilda Hilst.

por Gonçalo Junior 

Inteligente, segura, determinada, independente, transgressora. Namoradeira, mas discreta. Jamais vulgar. Dona de uma hipnótica beleza, poucas mulheres tiveram, como ela, os homens que desejaram em seus braços. Hilda Hilst, a escritora brasileira que ficou também conhecida por seus livros eróticos, morreu há dez anos, em 4 de fevereiro de 2004, aos 74 anos.

Ela, que foi representante da alta sociedade, esforçou-se para ser respeitada como poetisa, recebeu prêmios importantes, como Anchieta (pela peça Verdugo, uma das oito que escreveu entre 1967-68), e  Jabuti (pelo volume de poemas Cantares de Perda e Predileção) – ao todo, foram sete. No entanto, seus livros nunca foram sucesso de público. Nem quando partiu pelo caminho do erotismo, que resultou em obras-primas (O Caderno Rosa de Lori Lamby A Obscena Senhora D., entre outras), provocaram polêmica, porém não movimentaram grandes tiragens. Dizia-se que suas sacanagens eram de tão alto nível literário que os consumidores do assunto não se interessaram muito.

Seja como for, Hilda tinha uma maneira peculiar de enxergar o mundo. “Sexo e beleza eram rigorosamente a mesma coisa para ela, a única pessoa de nossa geração que não teve sentimento de culpa em relação a esses temas”, afirma Jorge da Cunha Lima, 82 anos, administrador, jornalista e advogado, um dos amigos mais próximos da escritora durante toda a vida, que confessa ter sido apaixonado por ela. “No começo dos anos 1950, eu era um jovem estudante, e ela, já escritora, dona de uma liberdade que deixava todo mundo perplexo.”

Verdade.  Além de linda, Hilda foi uma mulher de espírito livre. Tinha fascínio pelo sexo oposto, mas não cedia a abordagens passivas. Nunca. Seguia um estilo próprio em que ela dominava a cena. Foi assim quando abordou aquele que se tornaria seu único marido. Nos anos 1960, Hilda ia para casa, pela Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, quando viu um homem no último ponto em frente ao Cemitério do Araçá.  Pediu ao motorista que parasse diante do local e disparou: “Por que você vai para casa de ônibus, se pode fazer isso de Mercedes?”. O homem era o jovem escultor Dante Casarini, que sorriu e aceitou a carona. Primeiro, eles foram amantes. Depois, mulher e marido – nessa ordem. Certo dia, ela teria dito a Cunha Lima: “Estou felicíssima vendo aquele homem maravilhoso, com dorso nu, que volta com uma penca de lenha nas costas”.

Paixões e decepções

Apesar do forte sentimento de Cunha Lima, Hilda jamais deu a entender que percebia seu interesse. No entanto, ela contava suas aventuras amorosas ao amigo, como a que a levou a seduzir o ator americano Dean Martin e seu lamento por não ter conquistado Marlon Brando, ícone americano de beleza e masculinidade.

No livro Fico Besta Quando me Entendem (Editora Globo), que reúne 20 conversas mantidas com Hilda entre 1952 e 2003, ela voltou ao assunto com o jornalista Fernando José Karl: “Eu queria muito conhecer Marlon Brando, achava-o lindo. Então, tornei-me namoradinha do Dean Martin, só para ficar perto do Marlon. Mas não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Vi-me obrigada a aguentar Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: ‘Só porque você é bonita, acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?’. Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido Marquand”.

Seu comportamento ativo, entretanto, não incomodou mais do que seu talento para a escrita. Só que Hilda nunca se deixou intimidar por qualquer espécie de crítica. “Ela era de uma ousadia inacreditável”, afirma Cunha Lima. O fotógrafo português Fernando Lemos, de quem também foi amiga, reafirma: “Hilda recebia críticas menos por seu lado liberal, independente, e mais como poetisa porque causou inveja aos montes – nos outros poetas, principalmente.”

Hilda Hilst
A escritora posa para as lentes de Fernando Lemos, em estúdio que ficava na rua Canuto do Val, em Santa Cecília em 1958

Lemos, hoje com 85 anos, produziu, em 1954, uma série de retratos da escritora, que ficaram inéditos por quase 60 anos. Ela apenas viu as fotos, que nunca foram publicadas, mas ficaram guardadas. Uma delas está publicada nesta reportagem, mas todas podem ser vistas na versão digital da revista da Biblioteca Mário de Andrade – a edição impressa, número 69, não por acaso com o título Obscena, sairá em fevereiro.

Quando fez as fotos, Lemos morava havia um ano no Brasil. Chegara de Lisboa com a reputação de talentoso retratista de importantes nomes portugueses – políticos e artistas, principalmente. “Quando desembarquei em São Paulo, procurei conhecer gente ligada às artes e passei a ir locais em que todos se encontravam regularmente. Foi assim que fui apresentado a Hilda.”

Os pontos de encontro eram no centro de São Paulo, como o Juão Sebastião Bar, berço da bossa nova e onde Chico Buarque fez suas primeiras apresentações, e a Livraria Jaraguá, de Alfredo Mesquita, o mesmo que dirigiu por anos a Escola de Arte Dramática de São Paulo e incentivou Hilda a invadir a praia da literatura teatral. Havia também o Clubinho dos Artistas – brincadeira com o programa de TV Clube dos Artistas, da Tupi –, que ficava no porão do prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Vila Buarque, e reunia o pessoal das artes. “Ali, todo mundo dançava, brincava, namorava”, diz Lemos. Ele se lembra ainda do Bar do Museu de Arte Moderna, que ficava no prédio Assis Chateaubriand, na rua Sete de Abril, onde eram realizados festivais de cinema e exposições de pintura. “Todo mundo tinha sua garrafa de uísque guardada e podia pendurar a conta.” Cunha Lima não se esquece da Livraria e Editora SAL, sigla da Sociedade Amigos do Livro, que importava obras da Europa e, nos finais de tardes, realizava saraus regados a poemas em francês e doses de conhaque. Impossível não mencionar o bar Vienense. “Nesses locais, todo mundo se tocava de leve”, revela  Cunha Lima.

Além de Hilda, Lygia Fagundes Telles (amiga inseparável), Cunha Lima e Fernando Lemos eram assíduos frequentadores dessas rodas artistas como Paulo Vanzolini, Arnaldo Veloso Horta, Aldemir Martins, Massao Ohno, Rebolo Gonçalves. Uma época efervescente, sem dúvida.
Logo, Lemos e Hilda tornaram-se muito amigos. “Eu a convenci a fazer um ensaio no pequeno estúdio, que acabara de montar no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo. Quando se vê o resultado, a impressão é que não havia muita originalidade da minha parte. Mas fiz dessa forma, propositadamente, para compor um retrato com a imagem que eu tinha imaginado de uma mulher que não tinha sex appeal aparente, apesar da elegância, mas era dona de uma beleza protegida, porém interessante.” Ele se nega a dizer se teve ou não um romance com Hilda, mas não desmente nada. “Ela fez alguns sonetos para mim, eram versos mais humorísticos do que literários. Uma brincadeira nossa.” Com orgulho e saudade,  mostra dois dos muitos livros autografados pela amiga. “Para Fernando, todo amor de antes, da Hilda”, escreveu ela em um exemplar de Jubilo, Memória, Noviciado da Paixão, de 1954. Na mensagem de Fluxo-Floema, 1970, ela anotou: “Ao querido Fernando, a maior amizade e ternura dos velhos anos”.

É fato. Hilda teve contatos intensos, imediatos e breves que, ao final, levavam-na a um processo doloroso: arrancar da dor ou do tormento de uma relação encerrada versos que descreviam as suas emoções. Depois, os publicava em livros, sempre dedicados ao amor que se foi. Para o poeta e jornalista João Ricardo Barros, por exemplo, ela dedicou Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor, de 1959. Em seus versos e prosa, não fazia a menor concessão à palavra. “Ela transformava o sentimento ou o amor perdido em poesia arrancada do fundo da alma”, afirma Cunha Lima.

O extraordinário

Hilda nasceu em Jaú, interior paulista, em 21 de abril de 1930, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, e Bedecilda Vaz Cardoso, dona de casa. A união não deu certo e, ainda menina, foi com a mãe para Santos. Aos 7 anos, recebeu a notícia, pela mãe, de que o pai sofria de esquizofrenia e foi estudar como aluna interna do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo. Esse ambiente escolar evocaria nas peças A Possessa e Rato no Muro e em um poema: “Os amantes no quarto/Os ratos no muro/A menina/Nos longos corredores do colégio”. Mais tarde, estudou na Escola Mackenzie e Direito na USP. Mas nunca exerceu a profissão.

Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro, Presságio, e nunca mais parou de escrever. No entanto, a doença do pai sempre foi um forte fantasma em sua vida. Ela acreditava que, ao ter sido poupada do distúrbio psiquiátrico, poderia ter filhos doentes. Por isso, rejeitou a maternidade – teria feito mais de 15 abortos.

Hilda Hilst
Nos 28 anos em que viveu na Casa do Sol, em Campinas, Hilda (a única mulher em pé) recebia amigos que ali ficavam por longas temporadas, como Caio Fernando Abreu e a inseparável Lygia Fagundes Telle

Apesar de seu espírito livre, Hilda era uma mulher resguardada, que não gostava de compartilhar seus tormentos. “Ela vivia com certa angústia da contrapartida de seus relacionamentos, no sentido de tudo aquilo que quis fazer e não teve tempo ou não foi correspondida. Não do fracasso, mas sim da  completude da relação, do que faltou fazer”, diz Lemos. Parte do seu drama estava na tragédia que condenou seu pai, enlouquecido, a viver sem qualquer noção da realidade. Para Lemos, Hilda sofria com a situação dele, “que vivia quase como um cachorro louco, enjaulado em uma fazendinha perto de Campinas”.

Em 1966, depois da morte do pai, que a deixou em boa condição financeira, Hilda se mudou para um sítio a 11 km de Campinas. Batizou o lugar de Casa do Sol, construído perto de uma figueira centenária. Acompanhada do marido Dante Casarini, estava decidida a se concentrar em seus escritos. Mas longe do glamour da juventude, afastada dos amigos e da vida boêmia de São Paulo, Hilda começou sua travessia ao inferno. Mudava de humor constantemente, brigava com as visitas e os amigos. Passou também a ter o hábito de tentar falar com os mortos por frequência de rádio.

Quem conta essa história é a cineasta paulistana Gabriela Greeb, que pesquisa há mais de cinco anos a vida e a obra da escritora para o documentário Contato, Hilda Hilst Pede Contato, com previsão de lançamento para setembro deste ano. As filmagens foram iniciadas em dezembro último. Gabriela, que morou uma temporada na Casa do Sol, teve acesso a arquivos e documentos, além de ter conversado com amigos e parentes, como Edson Costa Duarte, que morou com Hilda durante muito tempo. Também teve acesso aos diários do artista plástico Jurandy Valença, amigo de Hilda, em que conta o dia a dia da casa durante o período em que viveu na Casa do Sol, que hoje abriga cartas e documentos, além de três mil livros, boa parte deles com anotações.

O foco do filme, explica Gabriela, é reproduzir a atmosfera da Casa do Sol. Será um documentário de criação, não típico, a partir de acervos importantes, como as mais de cem fitas gravadas com a voz de Hilda, ao tentar se comunicar com os mortos. São gravações feitas entre 1976-78, em que ela dizia: “Hilda Hilst querendo saber dos amigos em outra dimensão” ou “Hilda Hilst pede contato com o absurdo”. Fez essas experiências influenciada pelo sueco Friedrich Jurgenson, cientista, cineasta e crítico de arte, que afirmava que os mortos precisavam se manifestar por meio de frequência de rádio ou TV fora do ar, ou ainda pelo ronronar dos gatos. “A busca pelos mortos fazia parte do desejo de Hilda se comunicar de outros modos, além da escrita. Ela estudou física quântica para não chegar burra à outra dimensão”, diz Gabriela. “Hilda era extremamente lúcida e mantinha todo esforço para não enlouquecer.” Especula-se que a mãe da escritora também sofreria de esquizofrenia.

Vale lembrar que Hilda passou a ter sérios problemas financeiros. Até mesmo para alimentar seus cães – ela chegou a abrigar 150 deles. A situação só não foi pior porque a escritora conseguiu aposentadoria da Unicamp – a partir de 1986, ela fez parte do Programa Artista Residente da Unicamp, no qual conversava com os interessados sobre temas ligados à criatividade e imaginação, personalidades históricas e marcantes.

Outras histórias

Hilda morreu de isquemia, mas foi até o fim fazendo o que mais gostava: escrever com imaginação. E, como dizia, partiu em busca do silêncio absoluto. Antes, porém, deixou em testamento os direitos de sua obra para Daniel Fuentes, filho de José Moura Fuentes, grande amigo da escritora, que morreu cinco anos depois dela, em 2009.

É Daniel quem lança, neste mês, a loja virtual Obscena Lucidez (obscenalucidez.com.br), que vai vender livros, traduções e CDs. “A obra dela estará concentrada em um único lugar para os fãs de todo o País”, diz o herdeiro, que pretende criar outros produtos, como pôsteres e capas para celulares. A ideia de abrir o portal de negócios surgiu de uma experiência pela página que Daniel montou no Facebook sobre a escritora, que tem mais de 15 mil seguidores – curiosamente, metade com idades entre 15 e 24 anos. “Colocamos na rede 1,5 mil livros à venda e esgotamos o estoque em duas semanas, sem divulgação.”

 


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