Doha Almasry teve que fugir de sua cidade, Al-Hameh. Mora em Ritsóna com dois filhos dos três filhos. O mais velho e o marido conseguiram visto na Alemanha. Não se veem há três anos. "Oh, vida que passou cheia de tristeza e dor. Até quando ficaremos em tempos de repressão e traição?/ Quero viver uma vida simples e tranquila com meus filhos./ Não gosto de barulhos e gritos,/ Desejo uma vida longe do cansaço e da opressão." Foto: Olívia Seiko Tarora

A palestina Fadwa Tuqan (1917-2003) é um dos exemplos mais intensos disso. Em 1968, o ministro da Defesa israelense que comandou a Guerra dos Seis Dias, Moshe Dayan, alertou para que Fadwa não fosse convidada a recitar poemas em Israel. Para ele, cada poema dela seria “capaz de criar dez soldados” contra os israelenses e que ler seus poemas eram “equivalente a enfrentar 20 comandos inimigos”.

O ato de resistência poética de Fadwa se repetiu entre outras mulheres e, agora, diante da guerra na Síria, não é diferente. Espalhadas por campos de refugiados na Europa, muitas mulheres encontraram na escrita uma forma de lidar com as dores e com os desejos de liberdade, de se aproximar de parentes que estão longe e de restituição da pátria.

A oitenta quilômetros norte de Atenas, na Grécia, vivem aproximadamente 600 refugiados no acampamento de Ritsóna. A maioria dessas pessoas vem da Síria, somando 74%. Os outros 26% têm origem diversa, vindos de países da África, como Nigéria e Camarões, e outros países do Oriente Médio, como Irã e Iraque.

Em Ritsóna, é possível encontrar uma quantidade significante de mulheres que usam a literatura como forma de resistir. Uma dessas mulheres é Doha Almasry. Com 34 anos de idade hoje, ela apagou voluntariamente muito de seu passado da memória. Prefere esquecer o caminho doloroso feito há pouco mais de três anos, desde que deixou sua terra, onde morava com a família.

O marido e o filho mais velho, de 11 anos, conseguiram visto para a Alemanha. Foram os primeiros a deixar a Síria. “Eles foram para lá e fiquei com meus outros dois filhos em Al-Hameh. Desde então nunca mais os vi. Logo depois, deixei meu país também e vim para Ritsóna com os mais novos”, lamentou Doha.

Centenas de refugiados, maior parte vindos da Síria, vivem hoje em Ritsóna. É muito comum encontrar mulheres que escrevem poemas por lá. Foto: Olívia Seiko Tarora

Apesar de não verbalizar muito sobre isso, achou outra forma de se expressar sobre os cenários que tem avistado desde que a guerra tomou conta de seu país. Nos pequenos cadernos abarrotados de poemas, guardados em um gabinete ao lado de sua cama, ela escreve sobre suas dores e seus desejos. “Eu não consigo me expressar de outra forma sobre as coisas que não seja por meio da poesia”, admitiu. O marido e o filho distantes, a situação no acampamento, a repressão do governo de Bashar al-Assad e o desejo de se instalar com a família em um lugar onde tenha paz e silêncio são os temas mais usuais para ela hoje: “Escrevendo poemas, eu consigo falar sobre tudo e para todos”.

Não é de agora o contato de Doha com a poesia: “Eu comecei a escrever aos 16 anos, mas não me lembro ao certo quando comecei a me interessar por literatura”. Essas lembranças também são dolorosas para ela, pois Doha deixou muita coisa para trás para facilitar a fuga, o que inclui seus vários cadernos com poemas que um dia foram permeados de temáticas mais otimistas.

Apesar de achar a vida no campo de refugiados um tanto difícil, ela diz não reclamar. “Eu agradeço a Deus toda hora por tudo”, confessa. Além disso, ela afirma que o local tem uma atmosfera que a incentiva a escrever mais.

Doha confessa se inspirar em Nizar Qabbani, poeta sírio conhecido por seus poemas de crítica a governos opressores e à visão ocidental sobre o mundo árabe. Ele também o favorito de Sida Hasan, 18, vinda da província de Al-Hasakah, no nordeste da Síria. “Para nós, sírios, ele é o nosso Shakespeare”, afirma.

Cada palavra de Sida saía como um suspiro sôfrego, mas ela mantinha o sorriso no rosto enquanto era entrevistada: “A vida aqui é muito ruim. Temos inúmeros problemas e tudo o que eu mais quero é sair daqui com a minha família”. Ela também confessa que o acampamento não está entre os cenários de sua escrita, ela gosta de escrever apenas sobre a Síria: “A poesia para mim, aqui, significa não perder a esperança de um futuro melhor”.

Poema de Sida, escrito em um pedaço de papel encontrado no meio do acampamento. “Ninguém percebe suas lágrimas, ninguém se importa com sua tristeza./Só percebem seus erros. Será que a vida é difícil mesmo?/Ou quem está ao meu redor/Não tem piedade nunca?” Foto: Olivia Seiko Tarora

A relação mais forte de Sida com a poesia começou desde que saiu da Síria com a família, há quatro anos, e foi para o Iraque. “Vivíamos em um campo de refugiados. Lá conheci meu marido e nos casamos. Poucos meses depois, viemos para cá”. Por receio do marido não gostar, Sida preferiu não ser fotografada. Deixou, porém, que fosse fotografado um pedaço de papel amassado encontrado pelo acampamento, no qual tinha escrito um poema curto.

Segundo a brasileira Olívia Seiko Tarora, coordenadora de comunicação e diretora de conteúdo criativo da I AM YOU, uma das ONGs que trabalham no acampamento, é comum encontrar outras mulheres falando sobre poesia ou escrevendo algumas em Ritsóna. “Nas tentativas de conseguir me aproximar delas, aprendi mais sobre seus gostos e desgostos. Assim, descobri que muitas gostam de escrever poemas”, contou Olivia.

Procuradas pela reportagem para falar sobre seus poemas, outras refugiadas preferiram não se manifestar. Muitas dela ainda não possuem status de refugiada ou de asilo, outras preferem preservar o nome e a imagem pela religião ou por causa dos companheiros.


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