- Vinícius Mendes
Obstáculos, como muralhas, alambrados e portões, separam os adolescentes que ocupam o centro de atendimento socioeducativo Casa Governador Mário Covas da Fundação Casa, na Vila Maria, zona norte de São Paulo, do trânsito da pista local da Marginal Tietê. Para entrar no edifício, os visitantes precisam assinar um caderno, deixar celulares no balcão e abandonar ideias preconcebidas do lado de fora. Nesse ambiente, encontram-se 64 jovens (capacidade máxima da casa) entre 15 e 18 anos incompletos que vivenciam pela primeira vez a experiência de estarem confinados em uma instituição socioeducativa. Qualquer um deles pode ser protagonista do polêmico debate em curso no País: a redução da idade penal de 18 para 16 anos em alguns casos. A Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional, que prevê redução da maioridade nos casos de crimes hediondos – como estupro e latrocínio – e para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Se a medida for aprovada pelo Senado, infratores de 16 e 17 anos vão cumprir pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos.
Inaugurada em novembro de 2014, a Casa Governador Mário Covas conserva as paredes pintadas de verde-claro e os acabamentos, como batentes e janelas, em tons da mesma cor, só que mais escuros. Tem oito dormitórios, cada um com quatro beliches, e várias salas onde os meninos têm aulas de ensino básico, desenho, computação, confeitaria, panificação. O prédio ainda abriga uma quadra poliesportiva, mas eles preferem mesmo jogar futebol.
Todos, sem exceção, têm o cabelo cortado ao estilo militar por “motivos de higiene” e usam uniforme azul-marinho com um número de identificação – as toalhas, os lençóis, as saboneteiras, tudo tem um número. Edson Luis de Oliveira, diretor do centro de atendimento, explica que esse método, semelhante ao usado entre presos adultos, tem apenas função administrativa na Fundação Casa. “Eles não são chamados pelos seus números. Utilizamos essa prática apenas para organizar melhor as nossas atividades.”
“Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.
Pelos corredores, Oliveira fala com um e com outro, sempre chamando pelo nome – nesta reportagem, a identidade dos internos será mantida em sigilo. “Sua cama não está tão bem arrumada, hein, João?”, diz o diretor. Com um leve sorriso, ele continua: “Tudo bem, pelo menos está tudo dobrado”. Na sequência, explica: “Antes, eles deixavam tudo bagunçado. Até o dia em que os que estão no quarto cinco arrumaram as camas sem que ninguém desse uma ordem. Agora é uma concorrência para ver quem deixa o lençol mais esticado”.
O ambiente, apesar de contido, tem espaço para esse tipo de conversa entre diretoria e interno. Em um dos corredores, uma tabela chama a atenção porque informa quem é quem no centro. Nela estão escritas “as referências” de cada menino – os profissionais da equipe psicossocial.
O refeitório serve para as refeições e também funciona no improviso. No dia da visita, enquanto um dos funcionários colocava um filme para rodar na TV, outro deixava três caixas cheias de livros sobre uma mesa. Alguns meninos se interessaram pelos livros, mas a maioria preferiu assistir ao filme. Uma das caixas só tem Bíblia, presente das duas organizações evangélicas – Igreja Universal do Reino de Deus e Congregação Cristã do Brasil – que realizam cultos semanais na fundação. A frequência dos meninos nesses encontros é irregular. “Tem dias que lota. Mas tem dia que vão quatro, cinco meninos”, diz Oliveira.
A Casa Governador Mário Covas foi a 71a aberta desde 2006, quando o nome da instituição mudou de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Mais do que o rebatismo, a ideia foi melhorar o atendimento do Estado aos adolescentes em conflito com a lei. Uma das reformulações foi a descentralização da entidade, realizada por meio da construção de unidades no interior do Estado, o que reduziu o número de rebeliões, que desgastaram a imagem da antiga FEBEM.
De acordo com o último relatório da Fundação Casa, de agosto último, havia 10.035 jovens na instituição em todo o Estado de São Paulo. Desses, 7.328 (73,2%) tinham entre 15 e 17 anos e 42,9% estavam privados da liberdade por roubo qualificado. Dados de 2013 da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SINASE) mostram que o País possuía 23.066 menores de 18 anos cumprindo medidas socioeducativas. Ao fazer a comparação, chega-se a um resultado alarmante: o Estado de São Paulo comporta 43% do total de adolescentes em conflito com a lei.
O que eles contam
João e Mateus, ambos de 16 anos, acompanharam a nossa visita, em meio às suas lembranças, rotinas e regras. Ao longo do encontro, percebe-se que há normas bastante peculiares lá dentro, como pedir “licença” cada vez que cruzam com qualquer pessoa, andar sempre com as mãos para trás, falar muitos palavrões e terminar as frases invariavelmente com “senhor”. Eles contam que tiveram o primeiro contato com livros na Fundação Casa. João acabou de ler Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, mas admite ter gostado mais da história de A Hora da Estrela, da brasileira Clarice Lispector. Mateus também fala sobre sua leitura preferida. Foi um livrinho pequeno e surrado chamado A Última Pedra, de Rogério Formigoni, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. “Já leu esse, senhor?” Ao receber a negativa, ele conta que o livro trata de um jovem viciado em crack que consegue se reerguer.
Mas os meninos também leem jornais e revistas. Por isso sabem argumentar sobre o que muito lhes interessa: o debate em torno da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos para crimes hediondos. João parece mais familiarizado com o assunto, enquanto Mateus acompanha as palavras do colega para formular a sua opinião. “Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.
Ninguém passa incólume por uma temporada de privação de liberdade. “Eu odeio este lugar”, diz João. “Mas seria ingrato se não dissesse que isso aqui mudou minha vida, senhor. Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor? Jamais leria um livro lá fora, senhor. Por isso tenho de admitir que isso aqui mudou minha vida. Vou sair daqui e nunca mais fazer cagada.”
João está na Fundação Casa há um ano, desde setembro do ano passado. Ele se tornou interno depois de assaltar uma mulher em uma rua do Jardim Brasil, bairro no extremo norte de São Paulo, onde sua família mora. Na ação, João usava uma faca de cozinha. Ele conta que foi flagrado por policiais, colocando a ponta do objeto cortante no abdômen da vítima. Na hora, pensou em tentar fugir, mas foi fortemente segurado pelo policial. “Fiquei com o‘cu na mão’. Nunca tinha entrado num camburão, senhor. Fiquei lá até a minha mãe chegar. Ela estava indo para o trabalho e viu os policiais na rua. Acho que se tocou que era eu. Me deu um conforto quando ela entrou na viatura, que o senhor nem imagina. Ela estava chorando, mas foi até a delegacia, me levou lanche, acompanhou tudo.”
Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor?
Antes da internação, João usava drogas, basicamente cocaína. Entrou nessa quando tinha 11, 12 anos. Já tinha cometido outros roubos para sustentar o vício. Seu irmão mais velho, que gerenciava um ponto de venda de drogas, também está privado de liberdade em uma penitenciária do interior do Estado. Os outros dois não tiveram experiências melhores: um está detido por tráfico de drogas e outro, que recentemente saiu da cadeia, voltou para as ruas. João não sabe nada sobre o emprego da mãe, mas tem certeza de que ela “não está ganhando bem”. O diretor Edson Luis de Oliveira diz que João “não é criminoso”. O problema dele seria o vício. “Quando chegou aqui, estava acabado. Hoje é outro menino.”
Por enquanto, João tem sonhos aparentemente prosaicos para quando recuperar a liberdade, provavelmente nos próximos dias. “Vou pegar essa marginal aí, ir até o Shopping D, comprar um BK Picanha, um saco de batata frita, um milk shake de Chokito e assistir qualquer filme que estiver passando no cinema”, diz, encarando o arame farpado no topo das muralhas do prédio.
Mateus é mais calado. Enquanto João fala, ele prefere rir da espontaneidade do único amigo que fez lá. Os dois andam sempre juntos. Mateus também está internado desde setembro do ano passado, mas chegou à Vila Maria em dezembro, depois de ficar no centro de atendimento do Brás, na região central da cidade. Ele diz que nunca se viciou em drogas e roubava para pagar desejos materiais que os pais não podiam lhe dar.
“Eu não vim de uma família rica nem pobre, mas era bem de vida, senhor. Desde pequeno minha mãe saiu de casa, fui criado pelo meu avô. Fiquei até os 11 anos lá. Ele tentou me molestar, eu e minha tia, senhor. Falei para a minha mãe, mas ela não acreditou.” Mateus conta que a mãe só começou a dar conta do problema quando ele e a tia foram visitá-la. “Minha tia chorou e minha mãe viu que eu estava contando a verdade.” Naquele mesmo dia, os três foram à delegacia para denunciar o avô. A partir de então, Mateus toma remédios para controlar o trauma. “É difícil esquecer, senhor. Às vezes, estou com a cabeça vazia e vem.”
O avô acabou preso, Mateus foi morar com a mãe, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Um dia, foi flagrado com um cigarro de maconha por uma vizinha, que contou para a sua mãe, que, por sua vez, decidiu dividir o assunto com o pai de Mateus. “Ele me telefonou e disse que iria me matar. Meu pai não me batia, mas meu tio sim.” João interrompe, eufórico: “Olha aí”, aponta em direção à parte superior da orelha direita de Mateus, que tem uma cicatriz, aparentemente fruto de um corte profundo.
Com medo da reação do pai, Mateus fugiu de casa no mesmo dia do telefonema. “Fiquei na rua. Fui morar na casa de uns amigos e comecei a traficar, senhor. Meus pais até me procuraram, falaram para eu voltar para casa, mas disse que não queria porque eles estavam querendo me agredir.” Um mês depois, decidiu roubar e foi pego. Ele não tem previsão de deixar a unidade, apesar dos constantes elogios que recebe dos coordenadores, que o consideram “observador” e “inteligente”.
No desfecho do encontro, recuperamos nossos pertences na recepção da unidade. Os portões se fecham, ouve-se o som forte da tranca de ferro. Do lado de fora, às margens da Marginal Tietê, fica a questão: adolescentes em conflito com a lei ou a sociedade em conflito com os adolescentes?