O primeiro escalão do governo interino de Michel Temer não tem mulheres. Entre os 23 nomes que compõem a equipe ministerial anunciada na tarde de 12 de maio, data da posse, não há nenhuma ministra. Tampouco há negros. As duas parcelas da população – mulheres e negros – representam mais da metade dos brasileiros, que é composta por 51,4% de mulheres e 53,6% de negros.
Para agravar ainda mais o cenário sexista e racista, Temer extinguiu as secretarias especiais de Políticas para as Mulheres, de Igualdade Racial e de Direitos Humanos, transformando-as em meras secretarias sem status de ministério. Respondem ao Ministério da Justiça e Cidadania, comandado por Alexandre de Moraes, que tem muito mais afinidade com a esfera da segurança pública do que com os direitos humanos. Ele foi secretário de Segurança Pública de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) e tem em sua conta a conduta violenta da Polícia Militar contra os estudantes secundaristas, além da chacina de Osasco (SP) em agosto de 2015, praticada por policiais, que exterminou 19 pessoas em uma madrugada.
A lua de mel política, comum nas trocas de governo, durou pouco. Michel Temer havia dito em sua primeira entrevista como presidente interino (ao Fantástico, da Rede Globo) que formaria um “ministério de notáveis”, mas seu ministro do Planejamento, Romero Jucá (PMDB-RO), caiu em 12 dias. O da Transparência, Fabiano Silveira, foi forçado a sair em 17. Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), do Turismo, pediu demissão ao ter o nome citado em delação. Temer também afirmou que traria uma representante do “mundo feminino” (como se fosse um outro planeta) para ocupar cargos na Cultura, ministério que havia extinto. Não teve sucesso.
Com esse perfil, ficou difícil encontrar candidatas para ocupar pastas no segundo nível do governo Temer. Entre convites e sondagens, em 15 dias, sete mulheres disseram “não”, mesmo com a mediação da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP). Nos últimos 37 anos de gestão federal, todos os presidentes brasileiros, até mesmo João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, tiveram mulheres em ministérios. No período democrático todos os ex-presidentes escolheram ministras. Fernando Collor teve uma, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso tiveram duas, Luiz Inácio Lula da Silva contou com 11 e Dilma Rousseff comandou 16 ministras.
Os próprios aliados do presidente interino criticaram a falta da presença feminina nos ministérios. “Tem o meu protesto absoluto, teria que ter (mulheres na equipe)”, afirmou o senador Aécio Neves (PSDB-MG), durante votação da abertura do processo de impeachment no Senado. “Existem mulheres altamente competentes em vários partidos, certamente ele vai encontrar espaços para que as mulheres possam ajudar.”
A primeira a aceitar um cargo de segundo escalão no governo Michel Temer foi a economista Maria Silvia Bastos Marques, quatro dias depois de o presidente interino tomar posse. Reconhecida por sua competência e eficácia técnica, ela assumiu a presidência do BNDES, pela primeira vez ocupada por uma mulher. Até o final de maio, apenas três mulheres compunham esse patamar de governo, além de Bastos Marques: Nara de Deus, chefe de gabinete de Temer, Flavia Piovesan, na Secretaria de Direitos Humanos, e Ana Paula Vescovi, na Secretaria do Tesouro Nacional. Nesta quinta-feira (16), uma nova tentativa de incluir mulheres nos ministérios de Temer saiu errado. O ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, Torquato Jardim, nomeou sua sócia em um escritório de advocacia para chefiar o seu gabinete no ministério. A nomeação da advogada Lilian Claessen Miranda Brandão foi publicada no Diário Oficial da União. Pegou mal. Além de um evidente conflito de interesses, o presidente interino disse há poucos dias que congelaria nomeações de cargos comissionados.
Para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, Michel Temer escolheu a socióloga e ex-deputada federal Fátima Pelaes (PMDB-AP), presidenta reeleita do PMDB Mulher. Pelaes tem uma história triste. Foi feminista por muito tempo. Lutou pelo direito ao aborto. Mas, em 2002, ao sofrer um grave acidente de barco no rio Amazonas e sobreviver, se converteu à igreja evangélica. Posicionou-se contra o aborto. Em uma sessão na Câmara dos Deputados para votar o Estatuto do Nascituro, em maio de 2010, Pelaes revelou que nasceu em uma penitenciária, do ventre de uma mulher que tinha sido abusada por três homens. “Depois de muito trabalho, terapia e de buscar Deus eu posso falar normalmente. Ela (a mãe) chegou a pensar no aborto. Não via saída. Como uma mulher encarcerada poderia continuar com essa gravidez?”, contou. “Ela não teve como fazer. Depois que eu já estava adulta, ela pediu perdão. Hoje eu estou aqui podendo dizer: a vida começa na concepção, sim. Que direito nós mulheres temos de tirar uma vida?” Pelaes também enfrenta investigação sobre desvio de R$ 4 milhões em emendas.
O fato de o presidente interino não ter se preocupado em conduzir mulheres ao primeiro escalão de seu governo demonstra muito mais que falta de habilidade política. É um forte indicador de que as políticas públicas para mulheres, direitos humanos, igualdade racial e agenda social não são prioridades para o governo federal temporário. No recorte de gênero, quer dizer também que o processo de impeachment não só legitimou o machismo presente na sociedade brasileira como explicitou, sem constrangimentos, a conduta sexista de muitos parlamentares, o que se reflete na sociedade em geral. O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), o mais evidente dos exemplos, além de celebrar o torturador de Dilma, se referiu a ela como “anta”. Nas ruas, manifestantes pró-impeachment não tiveram pudores em chamar a presidenta eleita de “vaca”, entre outros xingamentos impublicáveis. Na noite de 11 de maio, enquanto acontecia a votação da admissibilidade do impeachment no Senado, a Polícia Legislativa reprimiu violentamente uma manifestação de mulheres contra o golpe. “É a retomada de uma perspectiva de exclusão e preconceito”, alerta a socióloga Marcia Lima, professora de Desigualdades Raciais na USP. “Precisaríamos seguir por décadas enfrentando o preconceito e seus efeitos. Mas estamos voltando à estaca zero.”
Políticas Públicas para mulheres
São inegáveis os avanços na agenda dos direitos das mulheres nos últimos 13 anos, desde que foi criado o Ministério de Políticas para Mulheres. Um dos marcos mais importantes é a Lei Maria da Penha, de 2006, contra a violência doméstica, uma realidade cruel e silenciosa para mais de um milhão de brasileiras, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2015). Como consequência, em dez anos, a taxa de homicídios contra mulheres em âmbito doméstico caiu 10%, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea/2015). “Vamos perder tudo o que conquistamos com muita luta nesses 13 anos. É o maior retrocesso que eu já vi na história do meu País dentro da democracia”, declara a ex-ministra de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Outra ação fundamental foi a mudança na legislação sobre estupro. Até 2009, o estupro era considerado “crime contra os costumes”, ou seja, o “ofendido” em sua honra era o pai ou o marido. Com a Lei 12.015/2009, a mulher deixou de ser “propriedade” para ter direitos sobre seu corpo. A nova lei também considerou todas as formas de violência sexual (atos libidinosos) como estupro, mesmo sem conjunção carnal. A pena é agravada no caso de a vítima ser adolescente ou vulnerável, como pessoas com deficiências.
No Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, de acordo com a estatística do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São 131 estupros por dia, em média. O enfrentamento a essa realidade segue extremamente ameaçado. Tramita no Congresso o Projeto de Lei 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que interfere no direito de interromper a gravidez em caso de estupro. Pelo PL, a vítima de estupro deve ser obrigada a fazer exame de corpo de delito para acessar o aborto legal, submetendo-se a constrangimento. Também indica punição severa aos profissionais que ajudarem a vítima, inclusive ao “instruir”, “orientar” ou “prestar auxílio” à mulher. O projeto é assinado por 13 homens, entre eles André Moura (PMDB-RJ), líder do governo na Câmara. “A gente não pode ter a mistura entre o Estado e a religiosidade”, diz a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), responsável pelo projeto de lei que mudou o crime de estupro. “O Estado laico é a garantia de que todas as pessoas sejam respeitadas. Você não pode impor a sua perspectiva filosófica”, completa.
Pouco mais de dez dias depois da votação do impeachment, o Brasil assistiu online ao abuso sofrido por uma adolescente no Rio de Janeiro. O caso demonstrou que a cultura do estupro é muito presente no País. Insuflou mulheres e homens a saírem às ruas indignados pelo crime brutal. Na mesma medida, demonstrou a força fascista que espreita a sociedade, com julgamentos contra a menina (por sua roupa ou comportamento) e pedidos de pena de morte e castração para os suspeitos.
O fato de uma mulher ter ocupado o cargo mais poderoso do Brasil é um legado simbólico incontestável que está sob ameaça. Para a ex-ministra do Desenvolvimento Social Tereza Campello, um dos ganhos importantes foi a maior autonomia feminina. As mulheres passaram a dizer “eu posso”. Mas o novo governo pode botar tudo abaixo. “Apesar de termos avançado muito na construção de uma agenda de direitos para as mulheres, isso ainda é tão frágil a ponto de poder ser revertido. Eu me sinto agredida como mulher. É muito duro”, afirma Campello.
Demonstra a vulnerabilidade da mulher na sociedade brasileira. “Todas as mulheres estão vulneráveis nesse processo: as pobres, as negras, as indígenas, as lésbicas, as deficientes, as jovens, as idosas. Todas”, declara a ex-ministra das Mulheres Eleonora Menicucci. Não basta o presidente interino, Michel Temer, afirmar que foi o primeiro a criar uma Delegacia da Mulher, quando era secretário de Segurança Pública de São Paulo, 31 anos atrás.