Cícero Dias, ‘Coqueiral’, déc 30

 

O imenso painel Eu vi o mundo… Ele começava no Recife não é para iniciantes. Neste trabalho, Cícero Dias, um dos nomes seminais da arte brasileira, traz um fluxo de energia em que mistura Eros e Tanatos, Freud e Proust, Casa Grande e Senzala, brisa e fogo dos canaviais, como multiplicidade heterogênea de um imaginário quase intransponível. Chama atenção no Salão de 1931, no Rio de Janeiro onde é considerada profusa, confusa, dramática, cheia de devaneios eróticos. Apesar dos ataques, a obra consolidou sua trajetória. Cícero Dias é considerado inexplicável. Não para Mário de Andrade, que ao descobri-lo logo o definiu: “Cícero possui uma personalidade surpreendente. Uma expressão formidável e seus valores psicológicos principais são a sexualidade, o sarcasmo e o misticismo”. Concordem ou não com Mário de Andrade, essa trilogia perpassa toda sua obra.

Um corte transversal na retrospectiva Cicero Dias, na Simões de Assis Galeria de Arte, em São Paulo, nos leva a reconhecer sua formulação criadora em pinturas, aquarelas e litografias, por meio de suas várias fases. Colecionar é uma convenção que traduz o fazer artístico, sentimento e anseio. Waldir Simões de Assis, além de galerista é colecionador e assina a curadoria da mostra. Amigo pessoal de Cícero Dias por várias décadas, conviveu com ele, cotidianamente, em Paris, quando ambos residiam na capital francesa. A exposição, aparentemente enxuta com 40 obras, toca em várias fases de Cícero Dias, abrangendo aquarelas e pinturas de 1920 a 1960 e litografias da série Suite Pernambucana. Waldir Simões, no texto do catálogo, lembra que Cícero Dias raramente dedicou-se às litografias. A primeira delas foi em 1933 quando ilustrou o livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Em Lisboa, em 1944, produziu imagens para o livro Ilha dos Amores, de Os Lusíadas, de Luís de Camões e, em 1983, em Paris, produziu a Suite Pernambucana, adquirida por Waldir Simões.

Exposto lado a lado, esse conjunto de obras diferentes entre si faz conviver trabalhos de movimentos díspares. O Sonho Tropical, aquarela sobre papel, de 1929, pode ser uma ode à vida liberta, uma trilha poética non sense, uma exaltação ao não território. Em contraponto, Coqueiral de 1930, óleo sobre tela, retrata um cotidiano real, vivido em uma vila, com moradores dispersos em dupla ou em trio em posições determinadas. A sexualidade que transborda do imaginário de Cícero Dias parece se concentrar no Encontro no Canavial, de 1930. A cena, inusitada retrata uma mulher nua deitada sobre uma cama, em plena “rua” de um canavial, tendo à sua frente um cavaqueiro, suposto capataz, o todo poderoso da fazenda de cana de açúcar. Cícero se apropria do real, e sonha uma situação limite entre a força e a sexualidade.

 

Em Musicalidade, de 1940, óleo sobre tela desvenda sua chegada ao abstracionismo por meio de formas inspiradas no Recife, assim como o uso das cores impregnadas pela arquitetura local. A influência de Kandinsky se deixa transparecer em meio à luz tropical, coqueiros, bananeiras, como reminiscências já borradas. Alegria de 1970, traz de volta as tonalidades de Pernambuco, agora de forma mais intensa assim com os personagens mais rígidos. Entropia XII de 1960, óleo sobre tela é como águas tintas que o artista deixa escorrer pela tela. O crítico francês Pierre Restany diz que após um grande período abstrato e lírico das Entropias enegrecidas, que abrange o período dos anos 50 e os ultrapassa, o artista na metade dos anos 60 tem uma expansão da noção tropicalista, num retorno às origens da sensibilidade.

Cícero Dias nasce em 1907, no Engenho de Jundya, a 53 quilômetros de Recife, mora no Rio de Janeiro onde estuda pintura. Em 1927 faz a primeira exposição e no ano seguinte abandona a Escola de Belas Artes. Em 1937, cria o cenário do balé de Serge Lifar e Villa Lobos, expõe na coletiva de modernos em Nova Iorque, viaja a Paris, onde se fixa.

O modernismo manifesta-se em São Paulo, na Semana de 22 e espalha-se pelo Rio de Janeiro, por outras vias e climas. Na capital federal, na época, alguns artistas nascidos em outros estados brasileiros começam a chamar a atenção, entre eles Ismael Neri e Cícero Dias. O escritor Mario de Andrade logo se encanta com o imenso painel assinado por Cícero Dias, Eu vi o mundo…, considerado muito erótico para a época. Os dois artistas, escreve Mário, são completamente loucos. “Cícero Dias, mais dentro do sonho, ao passo que Ismael vive dentro de uma realidade, por assim dizer translata”. O crítico Roberto Pontual definia Tarsila como a telúrica, Ismael o poeta-filósofo, Cícero o lírico, “todos os três mergulhando sua característica mais forte num mesmo mar de ondas simbólicas impregnadas de sexualidade”.

Em meio à efervescência daquele momento, Cícero Dias conhece Di Cavalcanti, ligado ao movimento modernista, de quem se torna amigo. Di o incentiva a mudar-se para Paris, onde ele já morava. Ao chegar à capital francesa Cícero Dias participa da Revue D’Anthropologie, publicação muito importante na época, para qual escreviam vários intelectuais. Logo faz amizade com o poeta Paul Élouard, entra para o Grupo Espace e a seguir é convidado a expor na famosa galeria de Denise René. Nessa época se deixa seduzir pelo surrealismo.

Trabalhando no domínio da pura intuição Cícero Dias cria uma antropologia pessoal carregada de cor, luz e liberto à fantasia. Conquista seu espaço na capital francesa e, mais que isso, a amizade de artistas importantes como Picasso e frequenta sua casa e vice-versa. Seu trabalho evolui para uma espécie de combinação da intuição, do enigma e alguma narrativa seja surreal ou verdadeira.

Durante toda a sua vida tentou contextualizar sua obra com o seu tempo e, por isso mesmo talvez tenha sempre surpreendido os críticos com soluções enigmáticas. Roberto Pontual fala das opções contraditórias que cercaram Cícero Dias e da lógica interna de sua obra, enquanto o francês Philippe Dagen simplesmente o classifica como “inexplicável”.

Serviço
Cícero Dias
Local: Galeria Simões de Assis. Rua Sarandi 113 – A, Jardins – SP.

Período de visitação: até 04/08
Horário de funcionamento: segunda a sexta-feira, das 10h às 19h. Sábado das 10h às 15h. Fecha aos domingos e feriados.
Telefone: (11) 3062-8980


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