Cacau, Óleo sobre tela, 1988. Fotos: Acervo MAES, Secult

Por Nicolas Soares

Existe um entendimento equivocado que faz com que uma pintura atribuída como primitivista seja exercício de uma tentativa disruptiva do academicismo erudito. A propósito, os primitivos são todos aqueles, todas aquelas, que já ocupavam na cadeia social a borda da racialidade – em que se foram organizados os povos não-europeus – operada pela dedicação eurocêntrica ao colonialismo. A medida civilizatória está amparada na cultura como reguladora dos corpos e subjetividades: as “tribos primitivas” sobrechegam da esfera do “outro lá, e eu cá” que sustentou as disciplinas antropológicas e etnográficas, as quais desenharam, entre muitas coisas, a anatomia normativa, e desta forma também o escopo da representação clássica ocidental. Tudo que está fora deste campo foi atribuído como selvagem e mais tarde catalogado como alegorias exóticas da não-civilização, do não-humano e do não-sujeito e, principalmente da não-cultura.

Os modernismos de avant-garde se dedicaram a olhar para o mundo recém-conhecido com certa curiosidade anedótica, cultivando a ambiguidade de retratar seu tempo e defender o fetiche da dessemelhança, amparados pelo estatuto do “ter”, que diz respeito a todo ato de colecionar. Colecionar imagens do além-mundo selvagem. Porém, o modernismo de terceiro-mundo brasileiro se empenhou na construção simbólica e imagética da identidade nacional, provocando o ânimo das narrativas, lendas e figuras que poderiam se despertar e corroborar para uma arte desvinculada dos academicismos das escolas e movimentos tradicionais, fazendo frente a uma brasilidade cultuada pelos herdeiros do colonialismo. Com efeito, negligenciou-se a estrutura pela qual a própria elite das artes se constituiu.

Art naïf e outras vertentes, que se movimentaram contra determinados regimentos da arte, não dizem necessariamente respeito ao que depois a arte denominaria como primitivo: este que se alinha ao agreste, ao indomesticado, ao inculto, ao ignorante; porque aqui “primitivista” são aqueles filhos e aquelas filhas da colônia em que seus saberes, fazeres e modos de elaborar a representação estão afastados da norma sociocultural em imagem, conduta e importância. Porque o primitivismo foi [ou, porventura, ainda é] a inteligência pela qual os arquétipos coloniais justificaram a dominação e a subordinação de um outro – seu modo de vida, seus artefatos, suas imagens e seus territórios. À semelhança, maneirismos em termos pictóricos e formais ramificaram um estilo destituído de qualquer origem, forçando a apropriação deste outro pelo núcleo da cultura e pelo sistema da arte.
Aqui faremos o exercício de rever a produção da artista capixaba Nice Nascimento Avanza: a “artista do cacau”, a “grande artista primitivista”, a “artista naïf” da “exuberância das cores”, largamente identificada como tal pelo contexto das artes e imprensa. Nice, mulher negra, que se entendeu artista autodidata por intermédio de amigos que a incentivaram.

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Esta artista que teve uma produção extensa entre as décadas de 1960 a 1990, com projeção do seu trabalho nacional e internacionalmente, que viveu de arte e circulou pelo mundo, que se apaixonou pelo cacau, pelo campo e pelo cultivo; viveu de arte.
Nice, considerada uma das principais artistas pictóricas do Espírito Santo, esteve encoberta pelo estigma do primitivismo, menos como forma e linguagem, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de estrutura colonial. Quando nos deparamos com o repertório apresentado pela artista, e no contexto em que estamos, somos capazes de articular questões outras que fogem do exotismo e ingenuidade atribuídos ao seu fazer como pintora. Emergem de maneira contundente expressões da cultura tradicional popular capixaba, as iconografias das religiões de matriz africana e judaico-cristã – a favor da crença dos sujeitos da roça, a cultura sertaneja, a lavoura e seus cuidados, os frutos, as flores e os animais…

Se trouxermos à tona algumas dessas articulações, perceberemos que, por trás de um trabalho que delineia as iconografias das religiões de origem afro e cristã, por exemplo, há discussões que se aprofundam no sincretismo dessas manifestações como estratégias de sobrevivência de um povo. À frente, temos uma vasta produção de artistas contemporâneos que trazem, a partir dos rituais, elaborações de campo performativo na arte; e de seus objetos, deslocamentos das padronizações do artesanato para os estatutos da arte de uma cultura.

Da mesma forma, a pintura da plantação cacaueira apresentada em Nice nos provoca emergências de discussões como o agronegócio, a monocultura, o desmatamento, a desapropriação de terra, o genocídio indígena, a agricultura familiar, a descolonização do alimentar-se e sua moeda de elitização… O cacau pintado em óleo sobre tela, em cores fortes, iluminado, vivaz, não está mais passível de uma leitura ingênua.

Neste ano de 2025, o Museu de Arte do Espírito Santo – MAES organiza o projeto NICE CONTEMPORÂNEA (com previsão de exibição para 2026) que consiste numa revisão discursiva do trabalho da artista Nice Nascimento Avanza – que faz parte de seu acervo – 25 anos depois da sua última exposição no MAES, Nice Retrospectiva, em 2000, por ocasião de seu falecimento.
Nice Nascimento Avanza (1938, Vitória-ES – 1999, São Paulo-SP) ✱


*Nicolas Soares – Artista, curador e Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo


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