Carlos Pasquetti
Carlos Pasquetti, Trabalho sobre máscara de gás, 1972, Foto 24 X 18 cm

*Por Paulo Miyada.

A exposição “AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar” encerrou-se no dia 4 de Novembro, uma semana após o término das eleições presidenciais do Brasil. Desde que o cargo maior do poder executivo voltou a ser decidido pelo voto direto da população, nunca havia acontecido uma campanha eleitoral em que os debates públicos e as discussões privadas tenham discutido tanto o legado e a amplitude da ditadura militar. Relativização, negação, desinformação e má-fé mostraram suas presas em tentativas de reescrever a história como uma revolução heroica e nacionalista. Do outro lado, toda sorte de esforços por elucidação e justiça reparativa – entre os quais essa exposição certamente se encontra – provaram-se insuficientes e constataram que está em jogo mais do que a disputa com os discursos obscurantistas atuais: segue em aberto a tarefa de completar os ciclos de reparação histórica e refundação institucional que foram apenas parcialmente cumpridos da longa, barganhada e incompleta “redemocratização” do Brasil.

Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea e atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake

Como uma ação cultural e artística, a exposição esteve no polo oposto às tentativas de relativizar os dados deixados pela ditadura militar no Brasil. Quando se tenta minimizar o impacto do golpe e sua política repressiva afirmando que os “excessos” do regime atingiram apenas os radicais de esquerda, três perversas injustiças são cometidas: 1. Não é verdade que apenas terroristas radicais foram presos, torturados e mortos, o exemplo de Vladimir Herzog é um dentre centenas de casos de brutais violências contra quem apenas exercia sua cidadania; 2. Mesmo nos casos dos combatentes diretos ao regime que seguiram vias de luta armada e guerrilha urbana, nunca deveria caber ao Estado o papel da retaliação sem todo o aparato jurídico que fundamenta o Estado de Direito – se o governo atua pela lei do olho-por-olho, dente-por-dente, qual a referência que sobra para que os cidadãos atuem de forma diferente?; 3. Além dos casos de violência direta de Estado por meio de mortes, exílios, torturas, prisões arbitrárias e retirada de direitos políticos de seus cidadãos, a ditadura fichou e vigiou mais de 300 mil cidadãos por meio de seus órgãos de censura, além de operar políticas sistemáticas de censura da imprensa, da cultura e da arte. As consequências desse último ponto extravasam em muito o âmbito da ditadura que se tenta relativizar, e foram elas que receberam especial atenção na mostra, que partiu do contexto das artes visuais para entender o custo do silenciamento da população e prestar homenagem aos que souberam expressar algo quando nada poderia ser dito. O que se vive agora é um rescaldo ardente do quão profundo foi o dano deixado pelos anos do regime militar, agravado pelo caráter precário das instituições democráticas que não foram tão revistas e fortalecidas nas últimas 3 décadas quanto teria sido necessário. Nesse sentido, o AI-5 ainda não acabou mesmo de terminar, e tudo leva a crer que seus efeitos serão ainda mais sentidos nos próximos anos. Parece que se perdeu o véu de moralidade que ainda exigia alguma discrição das reencenações mais perversas da autoritária violência de Estado. Os primeiros a entrarem na linha de fogo serão, justamente, aqueles para quem a ideia de redemocratização esteve sempre entre a lenda e a hipérbole: os negros, os indígenas, os LGBTQ+ e os miseráveis. Por isso mesmo, a persistência da luta e da resistência terá neles sua raiz, seu motivo e seu saber.

*Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea, é atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake e curador convidado da 34a Bienal de São Paulo

 


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