Uma bizarra disputa subterrânea colocou a museologia brasileira em pé de guerra essa semana. De um lado estão historiadores, pesquisadores e servidores do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão vinculado à Secretaria Especial de Cultura do governo federal. Do outro lado, com o perdão disso soar como teaser da série Star Wars, está… o Império.
O Ibram é a entidade que congrega todos os 30 museus federais. Os servidores desses museus federais divulgaram na terça-feira, 25, um abaixo-assinado aberto à população cujo objetivo é garantir que seja nomeada como diretora do Museu Histórico Nacional (MHN), na Praça Marechal Âncora, no Rio, a primeira colocada do edital de chamamento público divulgado no dia 10 de setembro de 2021, Luciana Conrado Martins, historiadora e doutora em educação pela USP. Mais de 1,5 mil pessoas já tinham assinado o documento até essa quinta-feira, 27 de janeiro.
O resultado oficial já foi publicado há quase quatro meses pelo presidente do Ibram, Pedro Machado Mastrobuono e, embora haja uma interinidade de dois anos na instituição, não foi respeitado até agora. Uma outra seleção pública já tinha sido cancelada pelo governo, sem grandes explicações. O museu, que celebra um século de fundação este ano, é uma das mais importantes instituições de história do país, com cerca de 300 mil itens. Os signatários do abaixo-assinado pedem que a diretoria colegiada do Ibram defenda a política nacional de museus. Nesta quinta-feira, 27, o Conselho Federal de Museologia (Cofem) também se manifestou sobre o caso, divulgando uma nota, pedindo que o Ibram cumpra a lei e nomeie a diretora escolhida em seleção pública.
O que se deduz que está por trás de tal tentativa de “golpe”?
Ocorre que uma das facções que compõem o politburo cultural do governo de Jair Bolsonaro é monarquista, liderada pelo grupo encabeçado por Bertrand de Orléans e Bragança, que se arvora herdeiro do antigo trono brasileiro (seria trineto de D. Pedro II e bisneto da Princesa Isabel). Essa corrente ambiciona ter um museu histórico sob seu controle, para difundir suas teses. A sua primeira cartada não deu certo: há alguns anos, os monarquistas se valeram de um importante correligionário que ocupava então o cargo de Ministro das Relações Exteriores, o ex-ministro Ernesto Araújo, para reivindicar o controle de outra instituição centenária – no caso, o Museu Nacional do Rio, em plena reconstrução após ter sido queimado em um incêndio em 2018. O plano gorou depois que Araújo caiu (e a comunidade científica também rejeitou amplamente o avanço para cima da instituição).
Mas os monarquistas seguem com aliados no governo, caso do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo (que tenta mudar o nome da instituição que preside para Fundação Princesa Isabel), e que chama Bertrand de “alteza”. Outro de seus trunfos: eles conseguiram nomear como Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Rio de Janeiro o seu partidário Olav Antonio Schrader, habitué dos saraus monarquistas e súdito das teses do monarquismo temporão nacional. Recentemente, houve um trancamento de uma coleção de arte afrobrasileira, o Acervo Nosso Sagrado, no Museu da República, no Rio, e essa ação é atribuída ao grupo monarquista liderado por Schrader (e por outro extremista do setor, o pastor Tassos Lycurgo, atualmente no Iphan, e que chegou aos órgãos do patrimônio por indicação da ministra Damares Alves). Esse pessoal tem particular alergia por manifestações do patrimônio imaterial (como jongo, capoeira, ofício do acarajé e outros), por serem de matriz africana e terem estreita relação com o candomblé.
Os servidores do Museu Histórico temem agora pela nomeação iminente de um egresso desse clube. “A não nomeação de candidato selecionado por critérios técnicos fere o Estatuto de Museus e as políticas públicas do setor e abre um tenebroso precedente, anulando a eficácia e o sentido da existência de uma seleção pública”, diz o manifesto dos servidores do Museu Histórico Nacional.
Há diversos sinais que demonstram que o grupo de fato se aproxima daquilo que almeja. No dia 27 de dezembro, foi nomeada como substituta eventual da próxima diretora do Museu Nacional Patricia Wanzeller, que é pesquisadora associada ao Exército brasileiro e às vezes trabalha com temas afeitos à realeza. Recentemente, fez um seminário abordando o tema “As reminiscências do Real Archivo Militar: a cartografia do Arquivo Histórico do Exército”. Servidores suspeitam que ela possa ser efetivada no cargo pelo governo.
O cerco ao Museu Histórico Nacional tem raízes em um simbolismo histórico. A instituição foi uma espécie de estufa da atual política nacional de museus, em 1932, quando foi criada ali a primeira escola de museus (e, posteriormente, a Inspetoria de Monumentos Nacionais, embrião do atual Iphan). Indo mais fundo na história, há ainda outra curiosa sincronicidade entre os fatos – no tempo em que funcionou como Arsenal de Guerra, o MHN foi cenário de um atentado ao então presidente da República, Prudente de Morais. Ao recepcionar as forças militares que tinham subjugado Canudos, na Bahia, Morais viu-se ameaçado por um jovem recruta armado com uma garrucha. A arma não disparou, e o marechal Carlos Bittencourt, ministro da Guerra, acompanhado do chefe da Casa Militar, deteve o rapaz, que se chamava Marcelino Bispo de Melo – um outro Bispo caprichosamente plantado no caminho da política.
As investidas ideológicas, de cunho religioso e contrárias à excelência técnica no Patrimônio Histórico e na área de museus levaram o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural a divulgar também nesta quinta-feira, 27, uma manifestação sobre os ataques ao Iphan. “A instituição vem sofrendo, assim, ações de governo, episódicas e conjunturais, que, a cada vez, reduzem e comprometem sua missão. Ataques que fazem parte de uma estratégia de minar o órgão interna e externamente. Externamente, quando o governante máximo do país o desconhece ou manda ‘ripar’ servidores que não lhe fazem a vontade ou de seus próximos, ignorando seu papel de instituição de Estado. Internamente, quando sua capacidade técnica é reduzida mediante a substituição de servidores competentes e qualificados, que ocupavam postos-chave, por pessoas sem a necessária experiência prévia ou formação profissional adequada para a execução de complexas tarefas de comando e chefia. A suspensão injustificada do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio, experiência exitosa de formação de quadros técnicos para o campo da preservação e iniciada há 17 anos, é outro indicador dessa estratégia”, diz o documento, assinado por intelectuais, experts e pesquisadores como Manuela Carneiro da Cunha, Márcia Sant’Anna, Luiz Alberto Freire, Carlos Augusto Calil, Carlos Eduardo Comas, Adriana Schmidt Dias e Angela Gutierrez.