Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962
Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962. Reprodução Wikimedia Commons.

A simplificação necessária para apresentar Pier Paolo Pasolini é uma tarefa inglória: suas facetas foram múltiplas; entre elas, a escolhida pela professora Maria Betânia Amoroso para representá-lo foi a de um certo “diagnosticador dos tempos que viriam” à sua frente. Uma das principais estudiosas do cineasta italiano no Brasil, Amoroso foi a responsável pela tradução e apresentação dos Escritos Corsários (Editora 34), um compilado de artigos críticos de Pasolini, e pelo livro homônimo a ele, publicado este ano pela Editora Nós, em que Amoroso reúne uma parcela da sua pesquisa notável acerca do mesmo (as intervenções da professora mencionadas a seguir virão deste compilado).

No ano de seu centenário, mostras e retrospectivas iluminam sua celebrada contribuição cinematográfica – composta por títulos como Mamma Roma, O Evangelho segundo São Mateus, A Trilogia da Vida e Salò ou os 120 dias de Sodoma. No entanto, antes mesmo de contribuir com a sétima arte, Pasolini já se dedicava à poesia e à literatura, e, mesmo quando já inserido na indústria da imagem em movimento, ele não abandonou tais vocações, muito menos a dedicação ao espírito crítico, cuja manifestação consciente ocorre ainda em sua juventude. “O próprio fato de os primeiros versos publicados (e até hoje não repudiados), versos dos 18 anos, serem em friulano demonstra que a minha operação poética se dava sob o signo de uma inspiração fortemente crítica, intelectual”, chegou a confirmar. O dialeto em questão era falado por sua mãe, Susanna Colussi Pasolini, nascida em Casarsa della Delizia, cidade localizada no norte da Itália. Como assinala Amoroso, além do aspecto afetivo da escolha, Pasolini emprega o friulano para “expressar toda uma cultura e sentimentos que foram silenciados ou expurgados pelo fascismo”.

Tendo nascido em Bolonha, em março de 1922, seu contato tardio com a região do Friul (onde chegou a morar com a mãe e o irmão Guido a partir de 1943, antes de ir para Roma no começo da década seguinte) é formativo porque, segundo Amoroso, “seu interesse pela língua falada pelos camponeses da região levou-o a descobrir um mundo cheio de mistérios e encantamento que se opunha à cidade, à sua própria tradição familiar. Nascem dessa convivência o profundo respeito de Pasolini pela cultura camponesa, vital, rica, diversificada, e a familiaridade com seus significados e símbolos”. Ela complementa que “lá, pela primeira vez, o escritor assiste a um confronto entre os trabalhadores rurais da sua região e os proprietários de terras”.

Sua vivência no Friul também fornecerá um rico contraponto mental à transformação ocorrida na Itália – por meio do avanço do capitalismo e do seu materialismo desumanizante –, frequentemente trazida por Pasolini em suas críticas (o que lhe renderá acusações de saudosismo do universo camponês e do passado). “Quem manipulou e mudou radicalmente as grandes massas camponesas e operárias italianas é um novo Poder, para mim muito difícil de definir, mas tenho certeza de que é o mais violento e totalitário que já existiu: ele muda a natureza das pessoas, alcança o mais profundo das consciências”. Pasolini conta observar uma “tristeza física” profundamente neurótica na população. “Ela resulta de uma frustração da sociedade. Agora que o modelo social a ser realizado já não é o da própria classe, mas imposto pelo Poder, muitos não são capazes de realizá-lo. E isso os humilha terrivelmente”, relata o poeta.

Diante da consolidação dos valores do capitalismo (ao qual Pasolini passa a se referir simplesmente como “Poder”), o poeta alarma para o risco de “uma forma de desumanização, de uma forma de afasia atroz, de uma brutal ausência da capacidade crítica, de uma facciosa passividade”. Contra sua própria previsão, Pasolini trava uma fraquejante batalha, para a qual encontra consolo insuficiente nos colegas intelectuais, já que “o perigo da entropia burguesa era iminente, mas ainda reconhecido por poucos da sua geração, que irão precisar da queda do muro de Berlim e do avanço neoliberal para admitir que o diagnóstico de Pasolini era no mínimo esclarecedor”, como Amoroso explica. Todavia, nos Escritos Corsários o intelectual parece continuar a conversar, em vezes, com esses mesmos contemporâneos, ao expressar sua indignação perante o conformismo (“A sede de conformismo é, portanto, igual ao pudor […] a embriaguez de servir ao Poder uma gratificação”) e uma forma de resistência descrita como essencialmente bem-vinda ao Poder.

Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962
Pier Paolo Pasolini por Anatole Saderman, 1962. Reprodução Wikimedia Commons.

Com o passar do tempo, sua investida contra o Poder não esmaece. Amoroso nota que “ao ler Pasolini hoje, percebe-se que, por um lado, as interpretações dadas ao rumo tomado pela sociedade italiana iam se tornando cada vez mais contundentes e alarmadas, mas que, por outro, o poeta exalava vitalidade e vigor”. A energia descrita pela professora não preclude, no entanto, um crescente afastamento de Pasolini. Em seu livro, ela traz à tona a apresentação que o escritor faz ao estrear sua coluna O caos, no jornal Tempo. Lá, ele afirma: “Se sou independente, sou-o com raiva, dor e humilhação, não aprioristicamente, com a calma dos fortes, mas forçadamente. […] Meu caso não é de indiferentismo nem de independência: é de solidão”. Um lamento também traduzido em poema pelo mesmo: “E eu, feto adulto, perambulo mais moderno que todos os modernos à procura de irmãos que não existem mais”. Por outro lado, Pasolini assinala esse sofrido apartamento como algo, até certo ponto, necessário para o exercício crítico: “É isso, de resto, o que me garante uma certa (talvez louca e contraditória) objetividade. Não tenho atrás de mim ninguém que me apoie e com o qual eu tenha interesses comuns a defender”.

Na sua reflexão acerca da conduta ideal do crítico, Pasolini ressalta a importância do diálogo e de uma certa abdicação de ambas autoridade e credibilidade, gesto ao qual ele liga à libertação do temor de se contradizer e a poder se colocar “em condição de não ter nada a perder e, portanto, de não ser fiel a pacto nenhum, a não ser aquele com um leitor que considero digno de pesquisas cada vez mais ousadas”.

Não se deve confundir as observações acima sobre a liberdade (mesmo que decorrida da solidão) do intelectual com o isolamento dessas figuras em si mesmas, malvisto pelo autor – o divórcio do mundo real, o academicismo e a oficialidade são tampouco estimados por ele. Em um de seus entreveros com os intelectuais italianos, Pasolini conta: “Pude comprovar que os intelectuais italianos jamais se colocaram o problema da ‘cultura’ popular, e nem mesmo sabem do que se trata. Acreditam que o povo não tem cultura porque não tem cultura burguesa; ou então, que a cultura deles seja aquela larva de cultura burguesa que podem aprender na escola, na caserna ou, de qualquer modo, nas relações burocráticas com a classe dominante. Que o povo, portanto, viva numa espécie de sonho pré-cultural, isto é, pré-moral e pré-ideológico. Onde moral e ideologia são vistas como apanágio exclusivo da classe burguesa”.

Como todo documento histórico, os Escritos Corsários precisam ser lidos dentro das suas coordenadas de situação, mas questões como as trazidas acima poderiam ser colocadas ao presente, assim como sua provocação sobre o que hoje chamamos de cultura do cancelamento: “Quem sentisse a necessidade primária de me ‘revogar’ […] estaria aprioristicamente impedido de compreender qualquer outra coisa que eu dissesse, porque, como bem sabem os advogados, é preciso desacreditar, sem piedade, integralmente a pessoa que testemunha para desacreditar o seu testemunho”. Uma das contradições desta complexa figura (que pode ser observada nos Escritos Corsários e exemplificada neste tópico) é que o próprio Pasolini, mesmo com seu compromisso intelectual livre e sério, não é imune à condenação da testemunha no lugar do testemunho, ou à invocação da castrante culpa moral judaico-cristã.

Talvez Pasolini fosse, como referido pela publicação francesa Les Cahiers du Cinéma, um “incendiário”, mas não despropositado. Suas provocações vão muito além dos tópicos trazidos ao longo deste texto; abrangem da religião ao anticlericalismo; da sacralização, dessacralização e ressacralização; do amor materno ao conflito de gerações; do sexo ao aborto; do racional ao irracional; da linguagem, dos dialetos ao comportamento; do progresso ao “desenvolvimento”. Quando se pensa ter percorrido a circunferência completa em torno de Pasolini, ele faz a eversão de sua própria esfera. A professora Maria Betânia Amoroso lembra que pouco antes de ser brutalmente assassinado, Pasolini desejava, fosse por reinvenção ou redenção, reescrever suas obras.

“Talvez o leitor possa achar que digo coisas banais. Mas quem se escandaliza é sempre banal. E eu, infelizmente, estou escandalizado”.

 


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