atento a questões urgentes da atualidade, como o resgate e o direito à memória, a reparação e a restituição, o Museu Paranaense (MUPA) iniciou em 2019, com a chegada da atual gestão, uma mirada crítica sobre sua trajetória à luz de perspectivas diversas. Fundado em 1876, em Curitiba (PR), o MUPA passou a ensejar um diálogo entre seu acervo, composto de aproximadamente 500 mil itens, e a produção artística contemporânea.
Nesse sentido, os núcleos tradicionais de pesquisa do museu (arqueologia, antropologia e história) são friccionados com o campo das artes. Por sua vez, a programação e as ações educativas do museu são orientados por quatro eixos: identidades múltiplas, ecologia/sustentabilidade, memória e cosmovisões.
Mostras como Retomada da Imagem (2021) e Necrobrasiliana (2022) foram resultantes da metodologia implementada há cinco anos na instituição. Na primeira, os artistas indígenas Denilson Baniwa e Gustavo Caboco e a equipe do MUPA se debruçaram sobre o acervo fotográfico do museu, um conjunto de cerca de mil fotografias, diapositivos, negativos fotográficos e em vidro, fotopinturas e outras representações. A partir de imagens que retratam diversas etnias indígenas do Paraná e da América Latina, Baniwa, Caboco e convidados criaram uma série de obras que têm como temas centrais a relação com a terra, os laços familiares e a resistência indígena.
Já em Necrobrasiliana, fruto de uma parceria do MUPA com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), de Recife, o curador Moacir dos Anjos reuniu obras em que 12 artistas brasileiros reinterpretam e reinventam a brasiliana, conjunto documental pertencente ao museu, composto de produções dos séculos 16 e 19, de artistas, escritores e fotógrafos, como Albert Eckhout, Jean-Baptiste Debret, Johan Moritz Rugendas e Christiano Jr. A coletiva apresentou trabalhos de Dalton Paula, Gê Viana, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral e Thiago Martins de Melo, entre outros.
Em entrevista à arte!brasileiros, Gabriela Bettega, diretora do MUPA, explica que o museu vem fazendo duas movimentações:
“Uma delas é aproximar a instituição e a sociedade; outra, alargar as fronteiras das disciplinas científicas do museu, através da contaminação com a arte contemporânea. A exposição Objeto Sujeito, atualmente em cartaz, é emblemática disso, ao reunir 12 artistas de diferentes regiões do país para pensar conosco o que é o Museu Paranaense, questionar quais foram as pautas que a instituição explorou ao longo de sua história e o seu próprio acervo”, diz Gabriela.
É possível traduzir em números o êxito desta aproximação do Museu Paranaense com a sociedade, em especial com os jovens: entre 2019 e 2023, o público do MUPA quase dobrou, pulando de 73.327 visitantes para 134.067. Secretária de Estado da Cultura do Paraná, Luciana Casagrande Pereira diz à arte!brasileiros que o museu sempre foi mais associado à história do que à contemporaneidade. Há um porém:
“O MUPA mudou bastante o seu perfil. Antes você entrava no museu e via apenas banners contando a história do Paraná. Agora ele está com trabalhando com muitas linguagens além das exposições. Lá você vê comunidades tradicionais sendo valorizadas, vê muita música, muita dança, cinema. O Programa Público, que foi iniciado recentemente, é como um festival, com uma programação intensa, dentro do museu”, conta Luciana. “O MUPA está gerando sementes. Até o final da gestão teremos um Museu Paranaense em cada macrorregião do nosso Estado, ou seja, teremos oito filiais.”
OBJETO SUJEITO
Concebida pela curadora Pollyana Quintella (Pinacoteca do Estado de São Paulo) em parceria com a equipe do Museu Paranaense (Felipe Vilas Bôas e Richard Romanini), Objeto Sujeito é uma exposição de longa duração que estabelece um diálogo entre mais de 140 itens dos acervos arqueológico, antropológico e histórico da instituição e as obras, em sua maioria inéditas, criadas por 12 artistas brasileiros: Arthur Palhano, Clara Moreira, C. L. Salvaro, Érica Storer, Frederico Filippi, Gustavo Magalhães, Gustavo Caboco, Isis Gasparini, Josi Souza, Laryssa Machado, Pedro França e Willian Santos. Metade deles tem algum vínculo com o Paraná ou teve alguma experiência no estado, uma condição defendida pelos curadores.
O título da coletiva vem do poema homônimo do escritor paranaense Paulo Leminski (1944-1989), publicado originalmente em 1987 no livro Distraídos venceremos, sua última obra poética em vida. O texto curatorial é encimado por um trecho do poema, que diz:
[…] você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas mais um domingo […]
No texto, os curadores citam Waly Salomão – “a memória é uma ilha de edição” – e afirmam que “passado e futuro são vetores que se entrecruzam e se transformam continuamente […] campos de batalhas que não cessam, cujo espaço de significação simbólica se dá no próprio presente”. E prosseguem:
“Nesta exposição, as temporalidades estão interconectadas. Fatos e eventos foram selecionados não por sua excepcionalidade, mas pela sua historicidade, ou seja, caráter histórico transformador, que de forma explícita ou implícita dizem respeito à trajetória do Museu Paranaense: seus acervos e narrativas eleitas e propagadas ao longo do tempo.”
Em entrevista à arte!brasileiros, Felipe Vilas Bôas lembra que Objeto Sujeito é fruto de um trabalho iniciado em janeiro de 2023, em que o MUPA busca “se auto-pensar em suas formas de narrativas e indagar como ela lida com a questão temporal dentro da disciplina de História, um dos âmbitos de pesquisa que o museu tem em sua base desde a inauguração”. E continua:
“Objeto Sujeito quer, de maneira geral, discutir a produção de narrativas históricas, a sua relação com temporalidades distintas – seja o passado, o presente ou um possível futuro – e a maneira como elas estão entrelaçadas. A instituição questiona não apenas os acervos que ela mobiliza, as histórias que conta, mas também aquelas que reproduz”, diz Vilas Bôas.
Pollyana Quintella, curadora convidada para a exposição, ressalta que a disciplina da história não é uma narrativa cristalizada, mas que ela pede uma escuta. Cada tempo, diz, tem a sua própria ideia de futuro e de passado.
“Queremos entender como o presente remodela nossa compreensão da história. Para isso, a gente partiu de dois sintomas: um deles indica que nosso tempo padece de certo presentismo. A gente tem muita dificuldade de produzir memória, de elaborar experiências do passado, de fazer nossos lutos. E também temos dificuldade de produzir futuros que possam nos tirar das catástrofes que nos atravessam intensamente no século 21. Vivemos uma experiência muito marcada pelo aqui e agora”, pondera Pollyana. “Como é que nós, aliados aos artistas, conseguimos oxigenar esse imaginário do tempo histórico, tornando a experiência mais elástica, ou seja, conseguindo olhar para futuro e passado de forma mais saudável?”.
O segundo sintoma, prossegue Pollyana, seria a “fantasia de linearidade histórica que pauta o projeto moderno”. No século 20, afirma a curadora, esse conceito sustentava que tudo apontava para um progresso da história, que tudo para frente apontava para o mais evoluído, e tudo que apontava para trás seria menos interessante e menos sofisticado.
“Hoje sabemos que isso é uma ficção. Vivemos uma experiência de tempo espiralar que embaralha passado, presente e futuro. Há uma série de novos arranjos que surgem a partir da diversificação dos agentes que compõem a história, que vêm oferecer novas formas de narrar. Por isso convidamos artistas contemporâneos, com os pés no século 21, para responder a eventos tanto locais como nacionais que já compunham o acervo do MUPA.”
Pollyanna assinala que os trabalhos comissionados aos artistas passam a fazer parte do acervo do MUPA e que, dessa forma, Objeto Sujeito dá um passo à frente na atualização da coleção do museu, diversificando os modos de compreender a história. A curadora também destaca a expografia da coletiva:
“[Por meio da expografia] a gente escolhe discutir a história não apenas a partir do ponto de vista temático, mas a partir de uma perspectiva estrutural, na medida em que as obras não estão todas expostas nas paredes, lado a lado, conduzindo o visitante num percurso linear. Ao contrário, o que a gente tem aqui são ilhas de alumínio e concreto que embaralham o que é frente e verso, esquerda e direita, início e fim de determinado assunto, buscando inflamar nos visitantes a dúvida sobre qual o percurso que eles vão fazer. Que tipo de história eles vão costurar?”, questiona.
Em resposta à provocação do trio de curadores, os artistas selecionados apresentaram obras com variadas tipologias. O carioca Pedro França fez um trabalho de imersão no núcleo de arqueologia do MUPA motivando uma discussão da história a partir de uma “perspectiva mais alongada” a partir das eras geológicas, nas palavras de Pollyana Quintela. França fez oficinas de cerâmica com o público do museu e desenvolveu uma obra que integra peças de arqueologia da instituição, como fragmentos de sambaquis, à sua composição.
O paranaense Cleverson Salvaro ocupou um nicho do espaço expositivo, confinando-se atrás de uma parede, para discutir os regimes de visibilidade que compõem uma estrutura museal, segundo Pollyana. “O museu muito mais esconde do que revela. As reservas técnicas são muito mais recheadas de conteúdo do que as exposições que a gente vê”, diz. Neste exercício entre revelar e não revelar, Salvaro aborda a relação de poder sobre aquilo que chamamos de narrativas históricas, reconhecendo o papel do museu na construção delas.
Ainda numa discussão sobre museus, a paulista Isis Gasparini comprou uma série de objetos em uma feira que acontece aos domingos, na praça em frente ao MUPA. Em Vizinhança, um dos quatro trabalhos que apresenta, a artista misturou os objetos adquiridos a itens pertencentes ao acervo, sem identificação de origem, abrindo uma discussão acerca dos critérios que orientam a formação da coleção de um museu público. “Também me interessava discutir a ideia de anonimato, de histórias que se perdem ou que podem ser recontadas”, afirma Isis, em entrevista à arte!brasileiros.
Em uma parede do espaço expositivo, outros itens anônimos – “imagens que estavam numa espécie de limbo do acervo, sobretudo fotografias e recortes de jornal, muitos deles em duplicata ou sem registro”, segundo Isis – foram incorporados a um bloco de concreto na obra E então, ontem.
“De alguma forma, havia um desejo de descarte ou redirecionamento desses itens, mas isso é algo que depende de uma série de políticas do museu. Meu gesto foi devolver esse material ao museu, quase que num sepultamento de algo que já não estava visível aos olhos do público, que permanece ali como presença, matéria, corpo, mas que também não se revela como unidade”, explica Isis.
Na obra 1 minuto, 72 passos, 45 metros, 1839 imagens, da série Plano-sequência, Isis reúne quadros de uma sequência panorâmica captada por ela no Museu Paranaense, também montados num bloco. Dessa forma, as imagens não se apresentam mais como unidades, mas também como uma forma escultórica.
Por fim, Isis apresenta o trabalho Véu, um díptico com duas imagens captadas em suas visitas ao MUPA, “sobretudo atrás das paredes, em espaços mais técnicos”. Nelas, a artista afirma ter condensado a “ausência de uma identidade”, na pintura de uma mulher cujo rosto não aparece, junto a uma espécie de paisagem, na verdade uma montanha de objetos encontrados no acervo. “Juntas, as quatro obras estão falando de invisibilidades, das problemáticas e dos paradoxos que envolvem a construção de narrativas dentro de um museu”, conclui.