Maria Auxiliadora da Silva, 'A preparação das meninas', 1972.

Com o mês de março, ressurge uma questão antiga e premente: a menor representatividade das mulheres na cena artística brasileira. Ao olhar para a programação das principais instituições e galerias é possível notar uma ênfase na presença de artistas mulheres. A lista é ampla e inclui importantes nomes da arte brasileira, de diferentes gerações. Dentre as atrações destacam-se a mostra de Anna Bella Geiger, na Caixa Cultural SP, a de Jeanete Musatti, na Galeria Bolsa de Arte e a de Laura Vinci, na Galeria Nara Roesler. Os museus também reservam boas surpresas: Mira Schendel no MAM; Maria Auxiliadora, no Masp; Josely Carvalho no MAC; e Hilma af Klint (1862-1944) na Pinacoteca do Estado (ver pág. 32). Tal densidade, no entanto, não encobre a estrutura desigual, que se perpetua ano após ano.

Sendo a maioria dos alunos nos cursos de artes visuais, as mulheres são pior representadas em todas as instâncias. Ainda faltam estudos aprofundados, mas algumas informações quantitativas evidenciam as distorções. Segundo a pesquisadora Bruna Fetter, não há registro de instituição nacional que tenha em seus acervos mais do que 30% de obras de artistas mulheres em suas coleções. O exame da lista de artistas representados pelas principais galerias do País também mostra um peso muito maior de artistas homens. E uma pesquisa recente, divulgada pela página #arteparaquem, do Instagram, revela que dentre as principais instituições culturais paulistanas, apenas o Vídeobrasil tem uma maioria de mulheres tomando decisões. Em segundo lugar estaria a Bienal, onde 73% dos postos de decisão são ocupados por homens. Nas outras, o desequilíbrio é ainda maior.

Mas nem sempre a teia da invisibilidade é tão evidente. Muitas vezes as barreiras são mais insidiosas, mascaradas. E usualmente estão associadas a outras formas de exclusão, relacionadas não apenas ao gênero, mas também a questões raciais e geopolíticas. A celebrada chegada de Tarsila do Amaral ao Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, é um exemplo desse lento processo de absorção das minorias pelo mainstream. A situação é ainda mais difícil quando problemas agudos como a discriminação de gênero e raça constituem o cerne do trabalho. É o caso, por exemplo, de Maria Auxiliadora (1935-1974), relembrada agora pelo Masp dentro do eixo curatorial “Histórias Transatlânticas”, escolhido pelo museu para nortear sua programação de 2018 (em 2019 será a vez da instituição se debruçar sobre a arte das mulheres). Associada de forma simplista ao rótulo de “primitiva”, a pintora autodidata desenvolveu uma obra bastante combativa, dando visibilidade à cultura negra e popular. Descoberta pela grande crítica (Mario Schenberg e Pietro Maria Bardi) ela teve um momento de expressivo sucesso nas décadas de 1970 e 1980, para depois cair novamente no ostracismo, para só agora ter esse resgate tardio e necessário.

Lenora de Barros, ‘Homenagem a George Segal (Homage to George Segal)’, 1984

A mesma instabilidade, que deixou Maria do Rosário à mercê das marés do mercado, afeta a maioria das artistas contemporâneas. Com uma exposição em cartaz em Nova York e uma retrospectiva agendada para o mês de dezembro também na Pinacoteca (instituição que de longe realiza a programação mais feminista de 2018), Rosana Paulino lembra que durante anos teve seu trabalho – baseado em experiências vividas por ela e por grupos próximos, como as mulheres negras – mais reconhecido no exterior do que no País. Ela conta ter recebido vários convites para estabelecer residência fora e que só ficou por teimosia. “Resolvi ficar porque achei que a cena brasileira necessitava de discussões como a que eu propunha. E confesso que não me arrependo desta escolha. É muito bom, surpreendente até, ver a produção que está vindo por aí. Achei que não veria isto em vida. E é claro que isto reflete em minha produção, quando opto por discutir temas que a sociedade brasileira sempre varreu para debaixo do tapete, como as marcas deixadas pela escravidão no país”, afirma.

A artista considera que essa maior abertura decorre do caráter urgente das questões com que trabalha e de uma maior liberdade de escolha do caminho a ser seguido. “Vivemos uma abertura maior para outras formas de pensar e produzir arte”, diz ela. Essa mudança decorre de múltiplos fatores, como uma maior consciência política e social, o arrefecimento do formalismo como caminho único e a internacionalização da produção. “Não dá mais para ignorar esta nova postura mundial, fingir que isto não existe, com o risco de ficar preso no século XX quando o resto do mundo já entrou no XXI”, constata.

Esse descompasso histórico, a necessidade de dar continuidade a mobilizações iniciadas décadas atrás, é algo também levantado por Josely Carvalho, cuja exposição “Diário de Cheiros – Teto de Vidro” é um dos destaques da temporada no MAC. A artista, que muda para os EUA após o golpe militar e vive em Nova York desde a década de 1970, onde se engaja no movimento feminista de arte contemporânea, se diz “assombrada por estarmos falando a mesma coisa do que nos anos 1980”. Incomodada com o fato de ter sido longamente rotulada de “feminista” no Brasil, ela acredita que vivemos um momento propício para desestabilizar o comodismo. E existem várias armas para isso. “Hoje estou no cheiro, mas é o cheiro da sensibilidade feminina, é algo que não se retém. Assim espero conseguir diminuir essa briga por espaço, por poder”, afirma ela ao falar sobre as instalações olfativas que criou para o projeto do MAC. A exposição “Radical Women”, que a Pinacoteca exibe no segundo semestre (depois de uma temporada no Museu do Brooklin) é, segundo ela, uma inciativa que promete trazer a tona com intensidade a necessidade de lutar por um espaço mais igualitário, as estratégias coletivas e artísticas adotadas pelas artistas pioneiras dos anos 1960 e 1970 e suas semelhanças com as políticas atuais de luta.

Outro caminho que vem ganhando força, e não apenas no circuito das artes, é a união das mulheres em torno de bandeiras comuns, criando mecanismos de denúncia e também políticas efetivas de ocupação de espaço. A CODEM.RED – Cooperação de Mulheres em rede é uma dessas ações, que vem congregando artistas de todo o Brasil e inclusive do exterior. Dentre suas propostas estão o fomento do suporte mútuo e solidário, a criação de um grande banco de dados com o perfil das associadas e a oferta de assistência jurídica às associadas. “Em menos de duas semanas já temos a aderência de quase 110 mulheres por todo país: PE, SP, PR, RS, RJ e DF”, conta Ana Luísa Lima, uma das responsáveis pela iniciativa.


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