A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine
A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Há 30 anos, em 5 de maio de 1990, faleceu, na Casa Pater Noster em Columbus, Ohio, o ativista David Lawrence Kirby. O retrato, no momento de sua morte, cercado pela família e seu cuidador, Peta, foi registrado pela fotógrafa Therese Frare. A foto rendeu a Therese, no ano seguinte, o principal prêmio do fotojornalismo mundial, o World Press Photo. Pouco mais de uma década depois, em 2003, a fotografia foi considerada pela LIFE Magazine “a foto que mudou a face da AIDS” e foi incluída em 2016 no livro TIME 100 photographs: the most influential images of all time, da TIME Magazine, a detentora da publicação anterior.

Therese Frare, no instante [e lugar] decisivo[s]

Em janeiro de 1990, Therese Frare estava interessada em retratar as questões que cercavam o HIV/AIDS. Entretanto, uma das barreiras a serem contornadas era a dificuldade de encontrar um grupo de pessoas vivendo com HIV/AIDS que estivesse disposto a ser fotografado. Com medo da exposição por si só, mas também impactadas pelo teor negativo marcante das reportagens publicadas até então sobre o vírus, as pessoas que viviam com HIV/AIDS tinham receio de serem representadas, ainda mais em imagens, cujo papel na personalização da notícia pode ter efeitos dialéticos.

A Pater Noster House, em Columbus, foi uma exceção à regra, porque sua criadora e diretora Barb Cordle acreditava na importância de divulgar a finalidade e os objetivos da instituição. Com isso, a permissão para fotografar foi concedida a Frare, que logo estabeleceu uma relação com Peta, um voluntário que cuidava de David e outros pacientes. David, por sua vez, permitiu que Frare o fotografasse com a condição de que ela não tivesse lucros pessoais com a venda das imagens. Foi a relação estabelecida com Peta que possibilitou a Frare fotografar o falecimento de David.

No mesmo ano em que a fotógrafa começou seu trabalho na Pater Noster, o Ryan White CARE Act foi promulgado pelo Congresso estadunidense, após alguns meses do falecimento de Ryan White, um adolescente hemofílico de Indiana que havia contraído HIV aos 13 anos por transfusões de sangue contaminado. White fora expulso da escola na década de 1980 por ser portador do vírus e iniciou, com a mãe Jeanne White Ginder, uma batalha jurídica que elevou seu nome a um símbolo da luta contra a AIDS. Segundo a HRSA (Administração de Recursos e Serviços de Saúde dos Estados Unidos), o CARE é o maior programa do país focado especificamente em fornecer serviços de tratamento para pessoas de baixa renda vivendo com HIV que não têm seguro e/ou são carentes.

A despedida

Em 5 de maio de 1990, Frare e Peta estavam juntos na Pater Noster House quando outros voluntários vieram buscá-lo para que pudesse estar com David nos seus momentos finais. Frare conta que, a princípio, permaneceu fora do quarto de Kirby, só entrando quando a mãe de David pediu que ela fotografasse as despedidas da família; “eu entrei e fiquei em silêncio no canto, mal me mexendo, observando e fotografando a cena”. O processo, com maior detalhamento, é contado por Frare no documentário de curta-metragem The Face of AIDS (realizado pela TIME para seu projeto 100 photographs), no qual a fotógrafa percorre a sucessão de eventos daquele dia. No mini-doc também é mostrado o rolo de filme, com imagens do mesmo dia, de antes e depois, nem todas publicadas.

Nos registros de 5 de maio vemos Peta consolando David sozinho antes da chegada da família; as mãos de uma enfermeira do lar Pater Noster colocadas sobre as de David, sobre seu peito; e dois registros da mesma cena, por ângulos diferentes – um deles que ganhou notoriedade.

Em outra imagem está Kay Kirby, mãe de David, segurando uma foto do filho sorrindo, vestido com terno e gravata, com a face mais preenchida, antes de ter desenvolvido as doenças relacionadas à AIDS. 

A imagem notória

Na imagem premiada, David – com uma expressão já esmaecida – está em seus momentos finais. Reunidos com ele estão Peta, com a mão sobre seu braço; seu pai Bill, que enlaça a cabeça do filho nos braços enquanto chora; e sua irmã Susan que conforta a sobrinha do ativista ao seu lado. O toque pelo pai questiona a crença, ainda presente na época, que o HIV poderia ser transmitido pelo tato. O apoio de uma família fora dos grupos marginalizados confere valor à figura de David e assim ajuda a enfraquecer o estigma simbólico direcionado ao homem gay. “Ao fazer da AIDS um problema de todos e, portanto, assunto sobre o qual todos precisam ser educados, é subvertido o nosso entendimento da diferença entre o ‘nós’ e o ‘eles'”, escreve Susan Sontag em AIDS como metáfora. A foto destaca em David a figura do filho, ação que tem impacto no encurtamento da distância entre o “nós” e o “eles” citada por Sontag, até mesmo em um tempo tão hostil com as pessoas que viviam com HIV. 

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
David Kirby – cercado por Peta e sua família – em seu leito de morte, Ohio, 1990. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Mesmo que possa reforçar estereótipos de representação de pessoas em estado terminal, a imagem de Frare “permite reconhecer o medo paralisante ao mesmo tempo em que desencadeia um impulso de fazer algo a respeito”, como escrevem Robert Hariman e John Louis Lucaites.

O enlace de David por Bill, congelado na imagem de Therese, consegue conectar-se ainda com uma das representações artísticas mais sólidas nos corações e mentes da população ocidental: A Pietà de Michelangelo.

Cores reunidas: A controversa campanha da Benetton

Tibor Kalman – editor-chefe da revista Colors, da grife de moda italiana Benetton – havia visto o retrato de David Kirby na LIFE de 1990 e pediu permissão à família e à fotógrafa para seu uso, que foi concedido. Assim, em 1992, a Benetton coloriu a fotografia, originalmente em preto e branco, com intuito de amenizar o caráter fotojornalístico e deixá-la mais próxima de uma propaganda. O trabalho foi realizado pela colorista Ann Rhoney com tinta a óleo em menos de vinte e quatro horas: “Eu queria capturar a dignidade de David. O mesmo sentimento que Therese deve ter tido, eu penso”.

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
Foto de Therese Frare colorizada por Ann Rhoney e apropriada para uma leva de publicidade feita pela grife de moda italiana Benetton

O título oficial da imagem, contrariando o esperado, não era “AIDS”; a propaganda, a princípio, recebeu o nome de “Família”. Apesar disso, foi pessoalmente batizada por Oliviero Toscani – diretor criativo da Colors e responsável pela leva de publicidades “United Colors of Benetton – de “La Pietà”, que com sua explicação para tal adicionou ainda mais furor à questão:

“Pessoalmente eu a chamo de ‘La Pietà’ porque é a Pietà que é real. A Pietà de Michelangelo, na Renascença, pode ser falsa, Jesus Cristo pode ter nunca existido. Mas nós sabemos que esta morte ocorreu. Isso é real, e quanto mais real algo é, menos pessoas querem vê-lo. Sempre me intrigou o porquê aquilo que é falso tem sido aceito e a realidade tem sido rejeitada. AIDS é hoje um dos maiores problemas no mundo, então penso  que deveríamos mostrar algo a respeito.”

O uso da foto colorizada gerou reações mistas; indivíduos e grupos, variando desde católicos a ativistas da AIDS, expressaram indignação: “Eu não vi uma mensagem de empoderamento, não vi nenhum tipo de mensagem vinda daquele anúncio que pudesse fornecer às pessoas uma maneira de se tornarem ativas, de agirem em seu próprio mundo”, argumenta Marlene McCarty, integrante do grupo de ativismo da AIDS, Gran Fury, no mini-doc The Face of AIDS. Ainda nos Estados Unidos, outro grupo militante, o ACT Up, talvez o principal relacionado à causa, fez uma contra-campanha à peça publicitária com outdoors escritos “Existe apenas um pullover que esta fotografia deveria ser usada para vender”, acompanhados da foto de um preservativo masculino.

Na Inglaterra, a instituição de caridade Terrence Higgins Trust convocou um boicote à peça publicitária enquanto o The Guardian foi forçado a lançar um editorial justificando sua decisão de manter a propaganda. As revistas de moda Vogue, Elle e Marie Claire, em sua edição britânica, recusaram colocar a publicidade em suas páginas. O caso mais extremo foi na Alemanha, onde a companhia foi levada aos tribunais.

Diante das demandas por boicote da publicidade e as acusações de estarem usando Kirby e sua família, a Benetton argumentou que “em alguns países como Paraguai, essa foi a primeira campanha a falar sobre AIDS, e em muitos países foi a primeira campanha a ir além das medidas puramente preventivas e abordar temas como solidariedade para com pacientes com AIDS”. A favor da Benetton, somou-se uma declaração de Therese Frare à TIME, sobre uma afirmação de Bill Kirby: “Benetton não nos usou ou explorou. Nós a usamos. Por causa deles, sua foto foi vista ao redor do mundo, e é exatamente isso que David gostaria”.

Por volta de 2010, no aniversário de duas décadas da fotografia de Therese Frare, foi estimado pela TIME Magazine que 1 bilhão de pessoas haviam visto o retrato.

 


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