OAntropófago Ideal, em cartaz na Galeria Almeida e Dale, vem suprir essa ausência, apresentando um panorama amplo de seu trabalho, tangenciando as principais questões norteadoras de sua produção. Concebida originalmente pela curadora Kiki Mazuchelli para introduzir a obra de Carvalho ao público inglês, a mostra – que na versão brasileira pôde agregar um número maior de trabalhos – possui uma clara vocação didática, mostrando suas várias facetas, numa articulação ao mesmo tempo cronológica e de linguagem. O alentado catálogo, ricamente ilustrado, com cinco textos analíticos e um resumo cronológico (cuja versão em inglês é a primeira publicação sobre o autor nesta língua) também auxilia nesse esforço de traçar um panorama mais completo de sua produção.

Adotando uma montagem despojada, a exposição apresenta ao visitante um volume bastante denso de pinturas e desenhos. Um dos pontos altos é o grande painel de retratos realizados por ele ao longo de décadas, que testemunha seu grande apreço pela figura humana, dedicando-se quase que exclusivamente aos retratos e nus. Seu interesse não era pela fisionomia mas pelo aspecto psicológico do retratado, o que torna sua obra próxima das vertentes surrealistas e, posteriormente, expressionistas. A mostra também traz à tona experiências desenvolvidas por ele nos anos 1970, utilizando tinta fosforescente que brilha sob luz negra, reforçando seu interesse pela pesquisa de novos meios e materiais. Carvalho pintou e escreveu a vida inteira. E há, mesmo em seus trabalhos mais revolucionários, muitas vezes associados a um temperamento impulsivo, uma base teórica e uma reflexão conceitual aguda, lembra Kiki. Em diferentes momentos, e lançando mão de estratégias distintas (arquitetura, teatro, ação performática), o artista demonstra como se antecipa, e de forma bastante precoce, ao estado geral das artes no País. “Seus projetos de cunho conceitual atestam seu extraordinário feito de expandir o campo da arte para além de territórios e formas conhecidos, ampliando assim a própria definição daquilo que pode ser considerado arte”, explica a curadora.

Tais momentos de grande potência criativa, muitos deles efêmeros ou não realizados, estão representados na mostra por meio de uma farta documentação. Carvalho foi, por exemplo, pioneiro dentre os primeiros modernistas da arquitetura paulista e conquistou a admiração de vanguardistas como Mário e Oswald de Andrade com o projeto que apresentou em concurso realizado para o Palácio do Governo de São Paulo em 1927, sob o sugestivo pseudônimo de Eficácia. Em 1931, realiza Experiência n. 2, um ato contundente contra falsa moral católica, andando provocativamente na contramão de uma procissão de Corpus Christi com a cabeça coberta por uma boina, sendo quase linchado pela população. Na Experiência n. 3, realizada quase trinta anos depois, atinge em cheio a moral patriarcal quando decide desfilar pelas ruas da cidade usando o New Look, traje que havia desenvolvido como roupa ideal para os homens, trocando o tradicional terno e gravata por uma saia plissada, uma blusa de tecido leve, bufante, e uma meia arrastão, para esconder as varizes.

Em diálogo com seu trabalho mais plástico, a diversidade de experiências e o caráter muitas vezes rebelde e performático de sua obra, difícil de ser traduzida em elementos expositivos por seu caráter efêmero e conceitual, torna-se mais concreto. As réplicas das máscaras usadas na peça O Bailado do Deus Morto (originalmente escrita em 1931) e reencenada pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona em algumas ocasiões, inclusive no vernissage da mostra, convivem por exemplo com um seleto conjunto de pinturas também dos anos 1930, logo na abertura da exposição.

É impressionante sua capacidade de subverter padrões e tentar estabelecer novas bases de reflexão sobre o lugar do homem e da arte no mundo. Não tinha medo do combate. Desafiava a sociedade, se colocava contra a hipocrisia moralista de uma sociedade extremamente religiosa. “A vida inteira ele se interessou por dois campos do conhecimento a psicanálise, relativamente nova naquele momento, e a etnologia”, explica Kiki. É pela confluência desses dois campos, por um desejo permanente de tentar entender o mundo a partir de comportamentos construídos desde os tempos ancestrais, que a curadora interpreta sua produção bastante diversa.

Outro aspecto interessante da seleção é a ênfase que ela coloca na ampla rede social do artista, que de certa forma contraria a ideia corrente de que Carvalho era um homem solitário, marginalizado. De família abastada, com muitos contatos no meio artístico e social de São Paulo, ele mantinha estreitas relações com o círculo dos modernistas de primeira geração (o próprio título da mostra, Antropófago Ideal, retoma uma alcunha elogiosa que lhe foi atribuída por Oswald de Andrade) e participou ativamente de ações para aglutinação do meio artístico, como a fundação do Clube dos Artistas Modernos (CAM).

Berlim – Depois da Inglaterra, onde o artista viveu entre 1914 e 1922 mas onde seu trabalho nunca havia sido exposto antes, será a vez do público alemão conhecer mais de perto sua obra, cujo caráter disruptivo, experimental e crítico terá uma importância central na Bienal de Berlim do ano que vem. “Seu interesse pela psicologia das massas (Freud) nos permite analisar ideias de pátria, fanatismo religioso, o medo, a organização das multidões, linchamentos, fake news e corpos dissidentes no espaço público”, afirma Lisette Lagnado, uma das curadoras do evento. “Para nós, Flávio é um anti-herói”, sintetiza ela.


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