A cada doze dias e uma carta, Tunga
A gravura 'A cada doze dias e uma carta', de Tunga. Foto: Divulgação

Na sexta feira 15 de dezembro, o Masp abriu ao público a visitação da mostra Tunga: O Corpo em Obras, individual que encerra o programa de 2017 do museu e que também dialoga com Histórias da Sexualidade, a polêmica coletiva em cartaz no museu paulistano. Tunga: O Corpo em Obras (saiba mais) tem curadoria de Isabella Rjeille e expografia da Metro Arquitetos Associados.

Em 2009, a trajetória do artista pernambucano foi tema da matéria de capa da primeira edição da revista ARTE!Brasileiros. Com sua partida, em junho de 2016, a editora Leonor Amarante fez novas reverências a Tunga na reportagem A Filosofia Selvagem Permanece Viva (leia abaixo). 

Tunga transformou-se em marca registrada na história da arte brasileira. Sua obra é um rio sem margens, levada pela vida “selvagem” e intensa experimentada por ele em diferentes territórios. Nasceu em Palmares, Pernambuco, viveu no Rio de Janeiro, em Valparaíso, no Chile, durante um período da ditadura, e morou em Paris por uma “evidência intelectual e não um refúgio romântico”, como se insinuava no Brasil. Redefiniu e recompôs sua obra, em vários períodos, movido pela curiosidade por outras formas de expressão. Suas incursões pela dança, música, cinema reforçaram a preocupação de descolonizar espaços e atuar como mediador de transdisciplinas com grupos de outras “galáxias”. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos na construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, literatura. Tunga é filho de Léa de Barros, uma das gêmeas da famosa tela de Guignard, e do jornalista e poeta Gerardo Mello Mourão. Conviveu com intelectuais brasileiros e franceses que frequentavam a casa de seus pais no Rio de Janeiro e, sob essa influência, tornou-se leitor voraz. Não por acaso, sua obra está impregnada do realismo fantástico latino-americano, presente em textos curtos que acompanham algumas performances, como Semeando Sereias (1983), em que surge um Tunga dramático e alegórico que “dialoga” com sua própria cabeça decepada, com cabelos exageradamente crescidos, arremessada ao mar por ele mesmo. Com “seu” crânio em jogo, Tunga aprofunda as reflexões sobre a artificialidade das formas, incitando o espectador a não se intimidar diante delas. Afinal, conscientemente, ele trata a “escultura” como figura enigmática e estranha que pode causar mal-estar.

Tunga, performance ‘Inside Out Upside Down’, 1997

Na Bienal de São Paulo de 1987, assume um protagonismo tão espetacular quanto a sua obra, Enquanto Flora a Borda (1987), estrutura flutuante de finíssimos fios de aço que pendem do teto e chegam ao chão desestabilizando o espectador. Na década seguinte, passa a trabalhar com material oposto: manipula formas leves e delicadas executadas com vidros, ora repletos de líquido viscoso, colocando em evidência a estrutura material, ora simplesmente vazios. True Rouge (1994) é o ápice dessa fase, uma instalação composta por centenas de frascos de vidro de formato e tamanhos diferentes. Tudo trazido diretamente do MoMA de Nova York para a II Bienal do Mercosul de Porto Alegre, em 1999, da qual fui curadora adjunta com Fábio Magalhães. Os dois locais eram diametralmente opostos: o MoMA com sua arquitetura e limpeza formal e o armazém de madeira, de 1922, já desgastado, inserido numa paisagem bucólica, às margens do rio Guaíba. Harald Szeeman, crítico e curador da 48ª Bienal de Veneza, em 1999, conferiu a instalação em Nova York e ao encontrá-la na Bienal do Mercosul comenta: “Essa obra tem o seu hermetismo, e aqui, em contraste com o entorno, abre um campo de significações provisórias, mas perturbadoras”. Em qualquer local em que True Rouge seja “instalada”, a montagem se revela a alma da obra e não o que se sucede depois. Nesse sentido, Tunga defendia a arte como evolução de rupturas e não de continuidade. Na X Documenta de Kassel, em 1997, com a performance Inside Out Upside Down, na antiga estação de trem da cidade alemã, ele aponta uma nova fase para as artes corporais, não mais relacionadas só com a performance, que já fora sua gestadora. Agora ele reforça a presença da psicanálise com pequenas narrativas como agente de um exercício da transitoriedade.

tunga semeando sereias
Tunga, ‘Performance Semeando Sereais’, 1983.

Desde cedo Tunga cria estratégias para desestruturar a normalidade do circuito de arte, talvez por influência de Pasolini, Rimbaud, Foucault, Lacan, que ele lia desde sempre. Eu o conheci muito jovem, com 22 anos, apresentado pelo crítico carioca Roberto Pontual como “um artista a ser seguido”. Tunga acabara de inaugurar sua primeira mostra no MAM do Rio de Janeiro, já causando polêmica. Seus desenhos, com insinuação de masturbação infantil, chegam ao público para provocá-lo a tomar posição sobre aspectos da nossa cultura conservadora, mesmo que fosse entendido como autor de imaginário libertino. A sensualidade converte-se em fonte primária de investigação e sua trajetória passa a ser marcada pelas representações corporais e seus fluidos. Tunga sempre defendeu o status do corpo, sua bandeira de vida até a morte. O atrevimento e a postura daquele jovem diante da crítica me fisgaram, e passei a segui-lo.

tunga Xifópagas Capilares
Tunga, performance ‘Xifópagas Capilares’, 1998.

No vídeo Ão, de 1980, filmado em 16 mm, em looping, ele manipula a emoção ao projetar a curva de um túnel sem fim: sem entrada nem saída. A convite do curador e crítico Walter Zanini, o vídeo é exibido na Bienal de São Paulo, de 1981, em um vetor dedicado à arte eletrônica.

Tunga volta a expor na mostra paulista, agora com obras de grande escala em 1987, 1994, 1998 e 2013. Já conhecido internacionalmente, participa da Bienal de Veneza, Bienal de Havana e da Documenta de Kassel. Na França, expõe no Museu de Arte Moderna de Paris, no Jeu de Paume, no Museu do Louvre, no Palais de Tokyo, todos na capital francesa, e na Bienal de Lyon. Também mostra seus trabalhos, entre outros museus, no Museu Ludwig de Colônia.

tunga Morfológicas
Obras Sem Título, da série ‘Morfológicas’, iniciada em 2014, e em andamento no momento do falecimento de Tunga.

No cinema, une-se ao diretor Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, na trilogia audiovisual: Medula e Quimera (2004), exibida nos festivais de Cannes e Sundance, e recebe o título de sonhometragem pela dupla. Essa parceria gera ainda  Laminadas Almas (2006), filmada durante a performance no Jardim Botânico do Rio de Janeiro com 600 rãs, 40 mil moscas, girinos, larvas… Esses eventos complexos foram agenciados por analogias sensíveis com alusão às religiões, à biologia e à transmutação dos elementos.

Nos últimos anos Tunga manipula terracota, gesso, cristais, presentes na obra From la Voie Humide em que tripés e partes de corpos ligam seu mundo à alquimia. Mesmo sem a apresentação física, sua obra traz resultados como objetos mentais, como atesta a série realizada em parceria com o compositor e cantor Arnaldo Antunes.

Além da presença em acervos de museus pelo mundo, a obra de Tunga está exposta em Inhotim, localizado em Brumadinho, Minas Gerais, no maior centro de arte contemporânea do Brasil. Responsável também pela concepção desse complexo, inaugurado em 2012, o artista tem neste espaço a Galeria Psicoativa Tunga, onde estão Lézart (lagarto em francês) de 1998, composto de tranças, tacapes e pentes conectados por ímãs, e a ficção Xifópagas Capilares, performance de 1984, em que a sedução pela anormalidade ganha corpo e onde ele celebra, radicalmente, a proximidade do homem com ele mesmo. Em outro pavilhão, inaugurado em 2006, brilha solitária True Rouge, uma ode ao artista desaparecido.


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