Na vasta e diversa obra de Cildo Meireles, se há construção, há também desconstrução; se há realidade, há ilusão; se há visibilidade, há o que está oculto; se há razão, há loucura; se há o afeto, existe o trauma; se há afirmações, existe o mistério; se há ordem, ela mesma pode gerar o caos; se há formalismo, há abstração; onde há caminho, há o desvio; no circuito, curto-circuito; se há vastidão, há também o gueto; se há versão, há subversão; se há equilíbrio, ele é tenso; e se há violência, há resistência. Não se trata necessariamente de oposições, muito menos de incompatibilidades, mas de perceber que na contundente produção do artista carioca não há verdades fáceis e únicas, e que os caminhos óbvios e mais usuais estão sempre sendo desafiados – as coisas nem sempre são o que parecem.
Deste modo, quem visitar Entrevendo, no Sesc Pompeia, uma das maiores mostras já realizadas de Cildo Meireles, 71, vai se deparar com paradoxos, ambiguidades, ironias, contrastes e inquietações que percorrem as cerca de 150 obras da exposição, curada por Júlia Rebouças e Diego Matos. Nos trabalhos em variados suportes, linguagens e escalas, espalhados pelos vastos espaços desenhados por Lina Bo Bardi, o artista apresenta uma produção que ativa, amplia e embaralha os sentidos, como explica Rebouças. “É um projeto que trata da ideia de sentido a partir de suas múltiplas definições. Pensando não só nessas capacidades perceptivas ligadas ao tato, audição, visão, olfato etc., mas também pensando em sentido como medida, como direção, como equilíbrio, como tino. E é muito importante entender que na obra do Cildo essas formas de percepção do mundo estão aí se afirmando, mas estão também se contradizendo, se desafiando”, diz ela.
Entrevendo, obra que dá título à mostra, propõe que o público coloque na boca duas pedras de gelo, uma doce e uma salgada, adentre uma grande instalação cilíndrica e caminhe em direção a uma fonte de ar quente. O trabalho, projetado em 1970 e realizado pela primeira vez em 1994, aciona no próprio corpo do visitante diferentes sensações e formas de compreensão ao lidar com os contrastes entre doce e salgado, quente e frio, claro e escuro. “E curiosamente é um trabalho que exige muito pouco da visão. A ideia de que a visão é o sentido primordial da experiência artística é muito desafiada na obra do Cildo”, afirma Rebouças. O artista concorda: “No início do século passado, Marcel Duchamp já falava da intenção de libertar a arte apenas do domínio retiniano. Aqui no Brasil, a partir dos anos 1950, sobretudo a partir do neoconcretismo, isso se tornou uma coisa muito importante. Exercitar essa plurisensorialidade passou a ser uma especificidade da produção brasileira a partir do Oiticica, da Lygia Clark… E algumas das minhas peças também lidam com isso”.
Os contrastes, ambiguidades, paradoxos ou subversões, que se mostram também convites à imaginação, são notáveis ainda em outras obras que, por vezes, explicitam em seus próprios títulos essas características. Seja em Espelho Cego (1970), feito de uma massa cinza e disforme sem reflexo; Descala (2003), com escadas disfuncionais; Volumes Virtuais (1968-969), em desenhos que apresentam volumes sem fisicalidade; Esfera Invisível (2012), com uma caixa de alumínio que, quando aberta, sugere uma esfera pela ausência interna de material; Obscura Luz (1982), em que uma sombra forma o desenho de uma lâmpada; na série de notas ou moedas de zero, que questionam a relação entre valor real e simbólico e explicitam que o valor estampado no dinheiro é uma abstração; ou ainda em obras como A Menor Distância entre Dois Pontos é uma Curva (1976) e nos trabalhos da série Arte Física (1969).
A série Blindhotland (“terraquentecega” em tradução livre), por sua vez, com três trabalhos na mostra, confunde o visitante quando sua visão é “traída” pela aparência dos objetos. Na célebre Eureka/Blindhotland (1970-1975), por exemplo, dezenas de bolas de mesmo tamanho, cor e forma – espalhadas para serem manipuladas pelo público – apresentam pesos sensivelmente diferentes; em Blindhotland/Gueto, de outro modo, bolas de tamanhos diferentes apresentam o mesmo peso, outra vez criando uma espécie de confusão cognitiva que desafia os sentidos. Assim como elas, várias outras obras da mostra convidam o visitante à interação, à uma vivência que vem por meio da participação, dialogando com o que o Cildo chama de “caráter de sedução” das artes visuais.
“Eu acho que tem duas características que as artes plásticas deveriam preservar, dois aspectos que não deveriam nunca ser negligenciados. Primeiro é o caráter de sedução. Acho que de certa maneira a arte conceitual, num primeiro momento, tentou limpar isso, tornar asséptico, e você perde a chance de lidar com o teor de sedução que um trabalho pode ter”, diz o artista. “E a outra coisa é que as artes plásticas são uma atividade que permite para cada ideia nova você começar do zero. Você quer fazer um filme, pode ter mil ideias e caminhos, mas aquilo sempre acaba no fotograma. Em artes plásticas não existe isso, você pode pegar qualquer coisa, de qualquer natureza, com qualquer material, usando qualquer procedimento, e você chega ao trabalho final”, afirma, explicando também que nunca teve um método definido de produção.
Veia poética e política
Tanto a sedução quanto a variedade de materiais e linguagens estão presentes também nas obras que tratam mais explicitamente de questões sociopolíticas e econômicas, e que lidam com memórias que se repetem na história brasileira. Em Missão/Missões (Como Construir Catedrais), milhares de moedas espalhadas pelo chão se conectam, por meio de uma coluna de hóstias empilhadas, aos ossos pendurados no teto, criando uma “anticatedral” que denuncia as violências da exploração colonial e sua sede por acumulação financeira. “O extermínio indígena, essa história truculenta, isso é uma questão que persiste ao longo do tempo. Quando fiz esse trabalho, em 1987, pensando nos Sete Povos das Missões do século 17, eu estava falando genericamente sobre esse processo de aniquilamento. Mas isso acaba caindo como uma luva para a situação atual”, afirma o artista, sem perder, no entanto, a esperança de que ainda possa haver justiça. “Mas cedo ou tarde a responsabilidade por esses crimes vai cair no colo dos autores.”
O sentimento de contemporaneidade que percorre a exposição, segundo Rebouças, é consequência não só da escolha de obras que dialogam com “questões absolutamente não solucionadas”, mas é “resultado de uma produção muito complexa e contundente, dessa capacidade do Cildo de agenciar os afetos, mais do que responder a eventos específicos. Ele está respondendo a um sentimento que se compartilhou em outro momento e que se compartilha ainda hoje”. E isso não se refere apenas à história brasileira. No conjunto de obras que lidam com a estrutura colonial estão também Olvido (1987-1989), em que milhares de velas e ossos de bois cercam uma tenda indígena – ao estilo de povos norte-americanos – forrada de cédulas de dinheiro, e Amérikkka (1991/2013). Com referência já no título à organização terrorista e supremacista de extrema-direita Ku Klux Klan, a instalação cria um ambiente tenso ao colocar o público sobre ovos de madeira, no chão, e sob a mira de projéteis de armas de fogo presas ao teto.
Assim como Amérikka, a mostra apresenta uma série de outros trabalhos nunca expostos no Brasil, ou que apenas foram apresentados no país há muito tempo. Segundo Rebouças, ao menos duas gerações não tiveram contato com um recorte amplo da obra de Cildo, já que a última grande mostra do artista no Brasil percorreu o MAM do Rio e de São Paulo em 2000. Pouco afeito a montar exposições – ao menos atualmente –, Cildo diz que um dos motivos que o atraiu na proposta foi a localização da mostra no Sesc Pompeia, onde há grande circulação de pessoas de todas as classes e idades e entrada gratuita. “Essa característica do Sesc, que é um profundo respeito e interação com o entorno, com a comunidade, traz também um público que não é aquele especializado, específico das artes plásticas. E essa expansão me interessava”, ressalta.
Paralelos com a ditadura
Não é apenas entre os dias atuais e a história colonial que Entrevendo traça paralelos. Artista de forte atuação durante os anos da ditadura militar (1964-1985), Cildo é enfático ao denunciar os abusos do atual governo federal e as semelhanças com o período militar. “Mas esse de hoje é ainda mais sinistro e mais ridículo, porque é de uma ingenuidade paradigmática”, dispara. A repetição da história nas mortes do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e da vereadora Marielle Franco, em 2018, ambos frutos de perseguições políticas, aparece nas célebres Inserções em Circuitos Ideológicos, série iniciada pelo artista em 1970 e desenvolvida até os dias de hoje.
Ao carimbar, durante a ditadura, cédulas de cruzeiro com a pergunta “Quem matou Herzog?” e, nos dias atuais, notas de real com o rosto de Marielle, Cildo propõe colocar em giro símbolos, críticas sociais ou palavras de ordem em objetos do cotidiano (o projeto começou com garrafas de Coca-Cola retornáveis), criando uma espécie de rede de contrainformação em circuitos preexistentes. Como explica o próprio artista, as Inserções têm a capacidade de dar “voz ao indivíduo diante da macroestrutura”, além de levantar questionamentos sobre a autoria artística e sobre o lugar da obra de arte, fora de ambientes especializados.
Ainda que resistente à qualquer enquadramento de seu trabalho como “arte engajada” – “tenho ojeriza por arte panfletária”, já disse certa vez – Cildo não receia destacar a preocupação política presente em sua obra. E conta como ela surgiu. “Foi em 1969 que eu me senti impelido mesmo a tratar mais contundentemente de temas políticos”, afirma, sobre o ano em que participou de uma mostra de onde seria selecionada a representação brasileira para a Bienal de Jovens de Paris. “Três horas antes da inauguração, com a exposição já montada, os agentes do DOPS cercaram o prédio do MAM do Rio e exigiram o cancelamento da exposição. Inclusive houve o início de um inquérito policial militar envolvendo todos os artistas. E eu, que naquela exposição tinha trabalhos formais, sem cunho político, a partir dali me senti quase na obrigação de me referir a essas questões políticas na minha obra”, recorda.
Ao relacionar o contexto atual e o período ditatorial, o artista se diz indignado com os episódios recentes de censura e com o tipo de tratamento que a cultura tem recebido do governo. “A gente está testemunhando esse tipo de coisa, um idiota como esse cara que era da Funarte (o atual secretário de cultura Roberto Alvim) vir à público dizer que a Fernanda Montenegro é sórdida e mentirosa. Ela que é uma espécie de tesouro nacional. E vem um carinha qualquer e acha que pode defecar em público. Isso se tornou a característica desse governo”. E ele conclui: “Mas tem uma lei de física que diz que à toda compressão corresponde uma explosão. Então quanto mais você espremer uma coisa, vai provocar uma reação maior, isso é uma coisa básica”.
Cildo Meireles: Entrevendo
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, São Paulo
Até 02 de fevereiro
Entrada gratuita