visita sesc pompeia
"Caos + Reparo = Universo", 2014, obra de Kader Attia em cartaz no Sesc Pompeia. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

Sábado, 14 de novembro. Exatamente oito meses após um confinamento levado muito a sério, visito a primeira exposição de arte. Escolho o Sesc Pompeia por ser um dos locais mais acolhedores da cidade, pela arquitetura de Lina Bo Bardi, pelas mostras em cartaz. Exposições costumam ser o lugar da surpresa, do espanto, da pesquisa, do questionamento, é onde se pode rever o cotidiano, repensar o real, propor novos mundos, e também a possibilidade de fantasia e ativismo.

Mas em um mundo em pandemia, que no Brasil se tornou uma política de morte, o que significa retornar a uma exposição de arte contemporânea? Dá para olhar arte com máscara, medo de se aproximar de outras pessoas e a impossibilidade de tocar na obra? Ou a experiência de uma exposição está comprometida e sua arquitetura e organização não podem mais seguir parâmetros pré-11 de março de 2020, quando a OMS anunciou a pandemia?

Desde os anos 1980, com a Aids, o mundo da arte incorporou a ideia de “contaminação” como uma afirmação positiva e a palavra inundou textos curatoriais, críticos e mesmo de descrição de mostras. Talvez seja agora o momento de se rever o uso dessa palavra, especialmente porque está claro que a contaminação está em todo lugar, mesmo levando-se em conta as medidas sanitárias necessárias, e ela segue mortal.

Na visita ao Sesc, as medidas são dadas pelo número limitado de visitantes, que só podem entrar com inscrição prévia, e pela medição de temperatura na entrada. O local, além do mais, é um lugar amplo, com muita ventilação, outro aspecto importante que dificulta a contaminação.

O Sesc Pompeia tem duas mostras em cartaz, que seguem até o fim de janeiro: Farsa. Língua, Fratura, Ficção: Brasil–Portugal e Kader Attia – Irreparáveis Reparos. Como experiência, e creio que isso é importante agora mais do que nunca, a exposição do artista franco-argelino me pareceu mais adequada ao tempo presente, apesar de ambas terem sido concebidas e desenhadas no mundo pré-pandêmico.

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Esculturas de Kader Attia expostas na mostra Irreparáveis Reparos. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

É muito atual uma exposição que fale sobre reparo, como a de Attia, a partir de sua poética em abordar os legados coloniais, especialmente suas repercussões na África, e as possíveis ressignificações de objetos e ações de violência. É o caso do vídeo Mimeses como resistência, onde pássaros reproduzem os sons de motosserras, as máquinas de destruição da natureza, uma ironia sobre como vítimas assumem o discurso do poder.

Os trabalhos de Attia, além do mais, costumam criar ambientes que fazem referência a uma situação pós-apocalíptica, o que em 2020, parece muito próxima com os alarmes cada vez mais intensos de catástrofe climática e a escalada da devastação na Amazônia. Esse cenário é uma referência explícita na instalação com máscaras e esculturas de madeira chamuscadas e queimadas, originalmente vendidas a turistas na África, e que fazem referência ao incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018. A potência da obra do artista está em ser uma síntese de diversos problemas expostos de um mundo à beira do abismo.

Parte do poder da mostra, com curadoria da alemã Carolin Köchling, está justamente em trazer as histórias de grupos vulneráveis, sejam povos colonizados por outros países, sejam coletivos de mulheres trans, sejam sobreviventes da 1ª Guerra Mundial, em um ano que todo o planeta se tornou vulnerável à catástrofe.

E é muito comovente ouvir, no vídeo Refletindo a memória (2016), sobre a necessidade de se viver o luto, a partir de depoimentos sobre a Síndrome do Membro Fantasma, quando pessoas que tiveram partes do seu corpo amputadas seguem sentindo esses membros. Quando o mundo já ultrapassou 1,5 milhão de mortos por conta da COVID-19, o trabalho de Attia se torna uma reflexão sobre a própria pandemia e mostra o terror como uma construção cotidiana na história humana. Mas há também esperança, como na escultura Caos + Reparo, um globo construído por pedaços de espelhos quebrados costurados por fios de metal, um pouco a sensação de quem atravessou 2020.

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Vista da exposição “Farsa – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal”. Foto: Ilana Bessler/ Divulgação

A mostra conta com poucos trabalhos espalhados por sete salas e uma arquitetura generosa, o que transmite um sentimento de segurança, por um lado, e a possibilidade de apreensão total, por outro. É especialmente sob essa ótica que Farsa se torna uma espécie de antítese do que poderia ser uma mostra nos dias atuais. Teria sido uma ótima mostra em “condições normais”, mas já que elas não existem, a questão é porque a curadoria, a cargo de Marta Mestre e Pollyana Quintella, não a repensou para o momento.

Há desde trabalhos interativos a muitos monitores que obrigam o uso de fones dispostos no espaço, mas sem condições de higiene adequadas. Para que se aventurar a pegar um objeto que outras pessoas podem ter tocado sem limpar?

O conceito da mostra gira em torno dos limites da linguagem e da comunicação, focando artistas que trabalham no Brasil e em Portugal, em dois tempos: nos anos 1960/70 e no século 21. Há um sentido nessa escolha, o primeiro é o momento da busca de expansão da arte para novos campos além do próprio circuito, atitude que perde espaço nas décadas seguintes, para retornar nos anos recentes. São períodos importantes de renovação, transformação e transgressão.

O problema é que a mostra ambiciosa chega a ter um caráter enciclopédico: mais de cem obras de 68 artistas, a dimensão de uma bienal. Isso tudo demanda um tempo e uma concentração um tanto difíceis no novo contexto, com limitação na visita, quando não dá para ver vídeos em pequenas salas, quando não se pode manipular obras.

Farsa é um exercício de linguagem muito bem elaborado, mas creio que o momento agora é de síntese, não de dispersão. Por isso, Irreparáveis Reparos ganha potência. Consegue expressar com contundência questões relevantes, que se já mereciam atenção antes de 2020, agora são urgentes.


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