Regina Vater. Foto: Reprodução Galeria Jaqueline Martins
Regina Vater. Foto: Reprodução Galeria Jaqueline Martins

A Celebration for the GOoD Time, de Regina Vater, em cartaz na galeria Jaqueline Martins até 30 de outubro, simboliza o desejo da artista tanto por mudanças do atual governo brasileiro quanto da política no combate à Covid-19. Torna-se evidente a relação simbólica entre a festa/performance/ritual que dá nome à exposição – realizada em 1983 no Central Park, em Nova York, onde Regina morava – e o momento em que estamos. “Os Estados Unidos viviam um clima político e social pesado com o governo de Ronald Reagan. Para piorar, havia a debacle da arte, quando a má pintura dominava o mercado. Qualquer pessoa que pintasse mal virava um grande artista.”

O evento nova-iorquino foi organizado por ela no início da primavera como um renascimento, logo após um inverno rigoroso. O tempo, no Candomblé, é um orixá cujo símbolo é uma bandeira branca que tremula no topo da árvore da vida e assim foi feito no Central Park. Regina convidou os amigos artistas Antoni Miralda, Alison Knowles, Anne Twitty, Bill Lundberg (seu marido), Catalina Parra, Coco Gordon, Karen Bacon e Marylin Wood, entre outros, para se apresentarem vestidos de branco e contribuírem com arte e comida igualmente brancas. “Algumas pessoas foram convidadas e outras se aproximaram espontaneamente. Foi uma espécie de depuração geral, limpeza de uma época muito ruim.” O vídeo que é exibido na galeria, durante toda a mostra, transparece a alegria e a suavidade do evento, com clima despojado e de esperança.

O arco que abrange essa exposição são os 40 anos de produção de uma artista que viveu em várias cidades e países realizando trabalhos colaborativos contaminados pelo entorno. Obras datadas de 1980 a 2020 tomam os três andares da galeria com instalações, vídeos, fotografias, desenhos e objetos. Toda uma zona de enigma toma conta da instalação Rama Dourada, ligada a um dos primeiros romances da humanidade, a epopeia de Gilgamesh, um antigo poema épico. “A história conta que para adentrar o mundo subterrâneo, a deusa dá a Gilgamesh uma rama dourada como passaporte. Na Eneida acontece a mesma coisa, uma deusa também oferece a rama dourada a Eneias para penetrar no mundo das almas e dos mortos, para encontrar e obter ajuda de seu pai. O rito da árvore da rama dourada tem a ver com a Amazônia e os ritmos regenerativos da natureza.”

Odorico Mendes, tataravô de Regina, traduziu Virgílio e Homero. Na década de 1840, se exilou em Paris, onde estava seu amigo e poeta Gonçalves Dias. Eles decidiram voltar juntos para o Brasil, mas ocorreu uma fatalidade. “Meu tataravô morreu de tuberculose num trem em Marselha e o navio de Gonçalves Dias naufragou nas costas do Maranhão. Os dois estavam fadados à morte. Haroldo de Campos considerava a tradução dele a melhor já publicada.” Com fortes certezas culturais, históricas e afetivas, nessa instalação Regina homenageia de uma só vez a tradição poética da humanidade, o romance gerado por Gilgamesh e o tataravô.

A utopia contida nos trabalhos da artista amplia os limites do possível, como na instalação Deus dá nozes a quem não tem dentes, apoiada num dito com timbres da cultura popular muito falado entre os que se sentiram rejeitados pela sorte, ou a tiveram e não souberam aproveitá-la. Dezenas de nozes pintadas de dourado, simbolizando a riqueza, instaladas no piso da galeria, formam um tapete diante da frase escrita na parede, como se fosse um altar, uma alegoria presente não como organização da totalidade, mas como sintaxe de fragmentos.

Em outra obra, trabalhando uma estrutura ficcional narrativa, Regina apresenta Golias, uma instalação que nasce de um desenho realizado em 1985, quando ela e o marido deixavam Nova York para Bill Lundberg assumir o convite para ensinar na Universidade do Texas, em Austin. “Nesse ínterim fiz esses desenhos sobre os mitos amazônicos e essa tartaruga que acabei materializando em uma instalação na galeria Woman in the World, no Texas, que só expunha mulheres.” A artista sempre investiu no que considera importante, desde o material utilizado até o deslocamento físico. Suas obras são potencializadas pelas descobertas e desejos pessoais. A tartaruga, vinda de uma tribo indígena, ganha potência de ninja, recebe o nome de Golias, puxa cordas, que são cordas de um estilingue gigante que atravessa a galeria. Do outro lado da peça, uma grande pedra é enlaçada por essas cordas. O que desloca esse espírito de um lugar do campo intelectual para o outro é a imaginação.

Sobre o cenário da tartaruga, o teto da galeria exibe um olho pintado por Picasso, que é o olho dele. Nessa ficção narrativa, a tartaruga Golias desafia o gigante Picasso que o pintor se tornou. “A exemplo da tela Les Demoiselles d’Avignon, ele só pegou o invólucro africano, quer dizer, as dançarinas, sem se interessar pelo significado, conteúdo e simbologia das imagens daquelas mulheres e das narrativas nelas contidas. Picasso é o próprio colonizador que se apropria de uma cultura nativa. A tela Les Demoiselles d’Avignon hoje daria para resolver muitas dívidas de alguns países africanos. A cultura ocidental é uma cultura muito oportunista, que começa pelo descobrimento – que não foi descobrimento, foi uma invasão e usurpação das terras dos povos originários para gerar lucro aos europeus.” O otimismo não é um ponto destacado do discurso da artista sobre a história oficial. “Hoje tentam se redimir e começam uma releitura de vários episódios históricos, mas nem por isso vejo melhoras na situação dos indígenas ou dos afrodescendentes.”

A artista passou a se interessar pelas culturas arcaicas desde criança, quando teve a curiosidade de entender o tempo. “Um tempo para você é uma coisa, para um astronauta é outra completamente diferente.” Com essa reflexão ela entrou nessa ancestralidade para perguntar a eles o significado do tempo. “A tartaruga tem tudo a ver com isso, ela é um ser cósmico, é um sol que corre com a lua, é o dia que corre com a noite. E, na cultura afro-brasileira tem o Deus Tempo, que Caetano cantou: ‘Tempo, tempo, tempo, tempo’, que é uma bandeira branca.” 

Regina pode mudar de territórios, cidades, continentes, mas sempre carrega dentro dela essa acumulação primitiva, a formação primeira de artista/ecologista, ativista/antropóloga afetada por uma humanidade em franca decadência. “Nossa vida é um repositório de experiências que depois se transmudam no trabalho que fazemos e se torna uma antena para o universo. Você também recebe as coisas, eterniza com o teu tempo, o chamado Zeitgeist (espírito da época) dos alemães. Quer dizer, tudo é divino e misterioso.”


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