Melvin Edwards, 'Boa sorte, primeiro dia'. (FOTO: Ding Musa)

Melvin Edwards, ‘Boa sorte, primeiro dia’. (FOTO: Ding Musa)

 

Mostra de Melvin Edwards, originalmente criada e apresentada no espaço auroras, em São Paulo, tem a sua segunda itinerância. Após ser exibida de agosto a outubro no Museu da República, no Rio de Janeiro, a exposição segue para o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), onde tem abertura no dia 8 de novembro, das 19h às 22h. A iniciativa é parte da programação do projeto HuMAMnamente Negro, que celebra o mês da Consciência Negra. A individual de Melvin é uma realização do auroras em parceria com a instituição baiana, com apoio da galeria Almeida e Dale.

Relembre matéria de Marcos Grinspum Ferraz, publicada no site da ARTE!Brasileiros na ocasião em que a mostra esteve em cartaz no auroras:

Nos 15 dias que passou no Brasil para montar sua exposição no auroras – espaço independente sediado em uma casa no Morumbi, em São Paulo –, o artista americano Melvin Edwards, de 81 anos, teve um verdadeiro surto criativo. Não só produziu as 16 esculturas e instalações que integram a mostra, como pintou, no que seria o seu “dia de folga”, 12 aquarelas que também estão expostas na casa.

“Falei para o Melvin pegar leve, mas ele dizia que estava aqui para trabalhar”, conta Ricardo Kugelmas, 40, fundador e diretor do auroras. “O próprio galerista dele comentou que há tempos ele não criava tanto.” A produção foi tão prolífica que pela primeira vez uma mostra ocupa todos os espaços da casa, desde a sala e o jardim até a sala de projetos, o corredor e um dos quartos do piso superior.

O resultado são obras abstratas – compostas de correntes, ferramentas de ferro, arames farpados e peças de aço – que facilmente remetem à segregação, preconceito, violência racial e escravidão, apesar de certa resistência do artista em afirmá-lo. “Se a cortina de arames nos faz pensar no muro de Trump ou em um campo de concentração, o Melvin não diria isso. Ele fala, inclusive, que correntes podem ser vistas como elos de conexão”, afirma Kugelmas.

O artista em frente a uma das obras da mostra. FOTO: Ricardo Kugelmas

Em entrevista recente ao jornal Folha de S.Paulo, o artista ressaltou: “Expressar-se socialmente no trabalho é natural, nós criamos a sociedade. Meu trabalho é uma expressão social, e não protesto social. Não está limitado a isso”. Se de fato sua obra transcende essas questões, é impossível não lembrar que Edwards nasceu no Texas em 1937 e vivenciou na pele a intensa segregação racial que dominava o sul dos EUA.

Anos mais tarde intitulou sua mais conhecida e longeva série de obras de Fragmentos Linchados, em referência aos linchamentos sofridos pelos negros após a abolição da escravatura nos Estados Unidos. Em 1970, Edwards foi o primeiro artista afro-americano a realizar uma mostra individual no Whitney Museum of American Art, em Nova York, e a partir desta época se aproximou também das culturas africanas, tendo inclusive estabelecido um atelier no Senegal nos anos 2000.

Proximidade com o Brasil

Fragmentos Linchados, que começou a ser produzida nos anos 1960 e continua até os dias de hoje – no auroras há seis novas peças da série – foi tema da primeira individual de Edwards no Brasil, uma retrospectiva no MASP realizada no ano passado. Foi durante a montagem da mostra que o galerista do artista, Alexander Gray, propôs a Kugelmas realizar uma exposição no auroras, onde o artista poderia mostrar outras facetas de sua obra, com peças criadas no próprio Brasil.

Foto antiga do artista com um de seus “Fragmentos Linchados”

Os materiais foram todos comprados em São Paulo, como conta Kugelmas. “Ele adorou quando entrou no primeiro ferro velho. Disse que naquelas peças estava parte da história dos últimos 150 anos do Brasil. Mas, ainda assim, ele sempre afirma que sua maior preocupação não é com a origem dos materiais, mas sim com suas possibilidades plásticas, de compor algo novo em que por vezes nem reconhecemos os objetos”, conta Kugelmas.

A relação de Edwards com o Brasil não é de hoje. Em 1986, acompanhando a poeta e ativista Jayne Cortez, sua mulher à época, viajou por diversos cantos do país. Conheceu artistas como Emanoel Araujo – hoje diretor do Museu Afro, que tem no acervo obras de Edwards – e produziu, pouco depois, trabalhos que remetem ao país, como “Palmares” – que estava exposto no MASP e acaba de ser incorporado ao acervo do museu.

Arte em ambiente doméstico

Agora, é nos vários ambientes da casa modernista de Kugelmas, projetada por Gian Carlo Gasperini em 1957, que as obras de Edwards se espalham até o dia 16 de março. Fundado em 2016, o auroras é um espaço de arte independente que tem como proposta se diferenciar tanto de galerias quanto de museus. O próprio fato de estar sediado em uma casa – onde viveram os avós de Kugelmas e ele mesmo morou até recentemente – cria um ambiente bastante peculiar.

“É uma casa, tem afeto, tem uma escala muito humana. E vai meio contra tudo o que tem acontecido em São Paulo. O vizinho semana passada subiu um muro de 30 metros, o outro colocou quatro portões… e aqui a gente está abrindo a porta da casa, tentando convidar, trazer alunos de escola pública”, diz Kugelmas, que também montou no local uma biblioteca aberta com livros de arte. Neste sentido, apesar de criticar instituições que se preocupam mais com o número de visitantes do que com a formação de um público interessado – “especialmente museus americanos” –, o diretor do auroras diz que pretende trazer cada vez mais gente para o espaço.

“Se eu já abri minha casa e estou dedicando minha vida a isso, não estou fazendo nem para os meus amigos nem muito menos para a madame que mora aqui no bairro. Estou pensando nos artistas, nos jovens artistas, nos estudantes e no cara da escola pública aqui perto”, diz ele. Após se formar em direito e trabalhar em outras áreas, Kugelmas entrou no mundo das artes em 2006, quando foi convidado para ser diretor de estúdio do artista Francesco Clemente em Nova York.

O auroras foi criado em sua volta ao Brasil, em 2016, em grande parte por influência de Tunga. “Ficamos amigos e ele me dizia que, por já ter formado uma grande rede de contatos nos EUA, eu deveria voltar para o Brasil e fazer algo aqui. Dizia que o Brasil é mata virgem, que tem muita coisa para ser feita por aqui.” Numa coincidência infeliz, Kugelmas voltou dos EUA exatamente quando Tunga morreu. Decidiu nomear o espaço em homenagem ao artista, inspirado em sua série de aquarelas Quase Auroras.

A biblioteca do auroras, que fica aberta ao público. FOTO: Marcos Grinspum Ferraz

Para não ser um projeto totalmente pessoal, o fundador logo formou um conselho com artistas como Fernanda Gomes, Claudio Cretti, Lenora de Barros, Lucia Koch e Bruno Dunley, além de nomes de outras áreas como os músicos Arto Lindsay e Rômulo Fróes e profissionais do mundo editorial como Charles Cosac e Isabel Diegues. Em pouco mais de dois anos de funcionamento, a casa apresentou exposições individuais ou coletivas com nomes de peso como os brasileiros Flavio de Carvalho, Antonio Dias, Tunga, Carmela Gross, Leda Catunda, Jac Leirner, Paulo Monteiro e Emmanuel Nassar e os estrangeiros Robert Rauschenberg, Cecily Brown, Alex Katz e David Salle. A próxima mostra será do artista conceitual americano Tom Burr.

Os trabalhos por vezes estão à venda, o que ajuda a manter o espaço – que sobrevive sem patrocínios ou editais, ao menos por enquanto –, mas segundo Kugelmas isso não é critério para incluí-los nas exposições. “Como não há uma preocupação grande em vender, como numa exposição de galeria, nem uma preocupação tão grande com a carreira, digamos assim, como numa exposição em um museu ou grande instituição, o artista tem uma enorme liberdade criativa. Ele sabe que está num espaço de projetos, onde pode arriscar.”

O auroras fica aberto apenas aos sábados ou com agendamento prévio nos outros dias. Esse sistema diminui os custos e possibilita uma existência razoavelmente barata para o espaço. Em um momento em que as artes recebem cada vez menos apoio estatal e que mesmo grandes instituições culturais se veem ameaçadas, Kugelmas considera que espaços independentes terão um papel ainda mais importante, “quase de resistência”. “Acho que com o andar da carruagem, o jeito de sobreviver será atuar cada vez mais colaborativamente, com mais articulação entre artistas, curadores, galeristas, instituições, espaços de projeto… E também realizar cada vez mais pequenas ações, arregaçar as mangas e fazer acontecer”, conclui.

Melvin Edwards 

Até 16 de março de 20019
auroras –  Avenida São Valério, 426
Entrada gratuita


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