Quando pisou no Brasil, em 2011, em sua primeira viagem para fora da América Central, o artista guatemalteco Edgar Calel tinha apenas 24 anos. Desembarcou em Belo Horizonte (MG) para uma residência artística de 20 dias – período no qual pôde conhecer e se fascinar com o Instituto Inhotim – e seguiu para São Paulo, onde participaria de uma mostra coletiva na Galeria Vermelho. Por conta de prazos e imprevistos, acabou sem espaço para expor, mas decidiu ir para a abertura mesmo assim, vestido performaticamente com uma camiseta na qual se lia: “Eu estou aqui pela ausência de uma obra”.
Quase 15 anos passados – durante os quais expôs em diversas grandes instituições de vários cantos do mundo, incluindo a Bienal de São Paulo em 2023 –, Calel volta ao Inhotim em condições bem mais favoráveis. E não com apenas uma obra para mostrar, mas com uma exposição individual que ocupa a totalidade da espaçosa Galeria Lago, dentro do instituto mineiro localizado em Brumadinho, nos arredores de Belo Horizonte. Com 15 obras instalativas em larga escala, sendo 12 delas criadas especialmente para a mostra, o artista passou quase dois meses – junto a sua família – vivendo em Brumadinho para a montagem de “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, inaugurada neste mês de outubro.
De origem indígena, membro do povo Kaqchiqel-maia e habitante da pequena cidade de San Juan Comalapa, Calel conta que após aquela primeira vinda ao Brasil – na qual começou a entender mais sobre as diferentes culturas que o compõem –, voltou para casa com um enorme desejo de retornar ao país. E assim o fez: “À medida que fui regressando, descobri uma ligação muito especial entre o conhecimento das culturas de povos indígenas aqui do Brasil e da Guatemala”. Após visitar comunidades Guarani, quilombolas e outros povos, o artista afirma que desapareceram, para ele, “as muitas fronteiras que só existem em nossas cabeças, nas definições e termos que usamos”.
Calel percebeu os vários paralelos culturais – seja na alimentação ou na espiritualidade –, mas também sociais e políticos – como nas desigualdades que resultam na luta popular pela terra – que marcam os dois países. “Aqui e ali, os problemas são os mesmos. Não há grande diferença entre os modos de vida, de pensar e também os modos de segregação que existem, incluindo os motivos que criaram essa grande desigualdade”. E é justamente a partir desta percepção, da bagagem de vivências acumuladas em suas viagens e da vontade de colocar em diálogo os dois países que foi concebida a exposição no Inhotim.
Talvez por isso, adentrar “Aromas de um sonho” transporte o visitante brasileiro a um universo cultural distinto, por um lado, mas cheio de referências a seres e elementos que nos são bastante conhecidos. Surgem nas obras animais como a onça-pintada (ou jaguar, em espanhol, um ser sagrado tanto para os Kaqchiqel-maia quanto para diversos povos ameríndios do Brasil); objetos como velas coloridas usadas em rituais, tapetes de palha, vasos de barro e tambores; alimentos como o milho e as frutas tropicais; além de formações de relevo como as montanhas de terra fértil, de desenho tão semelhante nas regiões de Comalapa ou Brumadinho. “O Calel nos proporciona uma experiência imersiva a partir de elementos da natureza, num desenho de espaço que é cadenciado pelo território, pela comunhão – principalmente de seu núcleo familiar – e pela espiritualidade”, sintetiza Beatriz Lemos, que assina a curadoria da exposição junto a Lucas Menezes.
Mas se há ali aproximações óbvias entre Guatemala e Brasil – como nos morros de terra simbolizados em “Aq’omanik Paruwi’Juyu’ – Cura sobre as montanhas”, há também notáveis características culturais de um universo particular aos guatemaltecos, mais especificamente ao povo Kaqchiqel e à própria família Calel. É ela, afinal, que está representada em “Kej- chi’ch’ – Veado de metal”, instalação composta por uma caminhonete vermelha ocupada por esculturas de argila que simbolizam os membros da família, trajados de roupas tradicionais repletas de padronagens coloridas.
É o ambiente familiar dos Calel, ainda, que está referenciado em uma grande sala ao final do itinerário do visitante. Ali, encontra-se um espaço cerimonial inspirado naquele que existia na casa da avó de Edgar – com objetos como máscaras, chapéus, bordados, instrumentos musicais, velas e fotos –, assim como um espaço de trabalho semelhante às oficinas da família, além de um vídeo de uma performance – “Xi ni chajij – Me cobriram de cinzas para me proteger” – realizada por Calel ao lado de seus pais. Pois para os Kaqchiqel-maia, como explica Lemos, “esse lugar do sagrado está em total simbiose com o lugar do sustento, do trabalho, do descanso, da comunhão da família e da conversa”.
Um fazer coletivo e de longa duração
Chamada por Inhotim de “exposição de longa duração”, já que fica em cartaz até 2027, a mostra de Calel teve também uma longa duração para ser gestada. Nada a mais, nas palavras de Lemos, do que “um tempo adequado e confortável de ideias, de idas e vindas”. Afinal, o respeito ao “tempo das coisas”, em oposição à usual celeridade imposta pelas sociedades ocidentais, é um dos valores básicos de “Aromas de um sonho”, assim como dos Kaqchiqel-maia e de tantos outros povos ameríndios.
E isso parece ficar claro já na primeira obra da exposição, ainda ao lado de fora da galeria, intitulada “Rajawal Ramaj – Dono do tempo” e constituída apenas por uma grandiosa rocha gnaisse encontrada por Calel na região de Brumadinho (marcada historicamente pela mineração e, recentemente, pelo desastroso rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão). Uma pedra na qual o artista percebeu a semelhança com o formato de uma tartaruga – bicho de movimentos lentos e vida longa – e apenas desenhou os olhos do animal, explicitando sua visão.
Sobre o longo e intenso processo de feitura da mostra, Menezes afirma também que “esta é mais do que uma exposição, é um projeto que se comunica com um tempo que não só o de agora. E está baseada em princípios inarredáveis, muito firmes, muito aterrados”. Um destes princípios, talvez o mais basilar deles, é o de um “fazer coletivo e em comunhão”, resultante da intensa troca entre a família Calel e as equipes do Inhotim.
Após uma primeira visita de Edgar a Brumadinho, para conhecer a galeria na qual exporia e observar com calma a região mineira, os curadores e outros membros dos ateliês do instituto viajaram à Guatemala para conhecer Comalapa, sua paisagem, a cultura local e a vida dos Calel. A vida em um país com mais da metade da população de origem indígena, a maioria de descendência maia, como comenta Lemos: “Foi algo muito marcante e bonito de ver. Que existe a possibilidade, na contemporaneidade, de vivenciar isso como sociedade. Quem dera a gente pudesse ter tido a oportunidade de conviver mais com as nossas culturas originárias”.
Lá, os brasileiros viram um pouco da rotina da família, descrita por Edgar como uma sucessão de fazeres coletivos que incluem trabalhar no campo, compartilhar e interpretar os sonhos, cozinhar, realizar cerimônias e produzir arte. “São muitas atividades, é quase como um ministério da Cultura e do Esporte”, brinca ele, lembrando que dois de seus irmãos são também professores de educação física. “Mas tudo que fazemos vai se desenrolando de forma muito natural. Não se pode fazer nada sem estar em comunicação, sem perguntar aos outros se estão bem, se estão mal”. E mesmo sabendo que sua produção é cada vez mais requisitada no circuito artístico internacional, Calel compreende também que “muitas vezes, antes da arte é necessário solucionar outros problemas”.
A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia
Por fim, a conclusão do projeto e a montagem de “Aromas de um sonho” se deram em Brumadinho, durante os quase dois meses de Edgar, seus pais – na primeira vez em que sua mãe viajou de avião – e três irmãos na cidade, todos trabalhando junto às equipes do Inhotim. Não interessava, para o artista, apenas transportar suas obras de Comalapa para o instituto, ou ainda vender a ele as obras de seu acervo, como conta Menezes: “Ele queria fazer junto e, para nós, esse é um princípio fundamental do projeto. Sonhar junto, criar junto e fazer junto.” Assim, segundo Calel, “o que existe é algo tão bonito e tão importante: reconhecer que a arte contemporânea está sendo feita a partir dos povos. Esse enfoque é fundamental, pois também se trata da memória dos povos que estamos transportando por meio das obras”.
Memória dos povos que é também manifesta, na visão Kaqchiqel-maia, na memória das coisas, em uma cosmovisão que vê vida nos elementos da natureza – incluindo as duas grandes pedras que simbolizam os avós de Edgar na obra “Qatit Qa Mama’ Wawe Oj k’owi Chawech – Avó, avô, estamos aqui diante de vocês”. Pedras ou avós, portanto, que podem atravessar tempos, dimensões ou territórios, segundo Calel. “Através da arte, a temporalidade pode ser estendida um pouco mais. E acredito que é muito importante pensar nas coisas que conseguem ficar depois da gente. Falo sobre isso porque dentro de mim ainda há – às vezes ouço – o som da voz da minha avó. E é por isso que faço oferendas, para que ela possa viver muitas temporalidades, muitas dimensões.”
Perguntado, afinal, sobre o título da mostra – “Aromas de um sonho” –, Calel afirma que os sonhos são uma das tantas dimensões que existem para ser vividas. “Assim, faz sentido pensar que o aroma de um sonho é também o aroma da vida, que no caso da exposição se traduz em instalações, objetos, pinturas, memórias… em ser convidado, por meio de obras, a aprender um pouco sobre a Guatemala”. Na verdade, retoma ele, a memória de uma Guatemala construída no Brasil. “Então é algo quase como um abraço de amizade, de conhecimento e colaboração.”
Na mesma linha, Lemos concluí: “A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia”.
*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim









