Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont

Água de feijão preto, terra de diferentes cores e texturas, açafrão, polvilho, bambu, carvão, folha de mangueira, nódoa de banana, erva de passarinho, eucalipto e por aí vai. São estes e vários outros elementos que servem de base para as pinturas e esculturas da artista mineira Josi, que apresenta em São Paulo a exposição arrastar chãos, juntar imbigos, na galeria Mendes Wood DM, até 10 de agosto.

Não se trata, que fique claro, de um simples interesse de Josi por materiais diversos da natureza, ou ainda da pesquisa de uma “curiosa” pelos elementos de ambientes diversos. Nascida no Vale do Jequitinhonha e criada parte da vida em Caeté, até se estabelecer mais recentemente em Belo Horizonte, Josi tem com essas matérias uma relação quase de “entrelaçamento”, como explica a curadora da mostra Galciani Neves. “Para a Josi, é muito coerente com o jeito que ela enxerga o mundo e os pactos da vida que se valesse desses materiais que estão ao alcance da mão, com os quais ela já convivia desde criança.”

Isso fica claro, inclusive, nos próprios termos utilizados pela artista, de 41 anos, para falar de sua trajetória – razoavelmente recente – no meio artístico. “O meu trabalho é um levantamento de fervura recente, mas de uma coisa que vem se adensando há muitos anos. E essa ebulição está muito ligada ao feijão”, conta. Atuante como educadora na rede pública de ensino desde jovem e posteriormente graduada em Letras – na primeira geração com curso superior em sua família –, Josi decidiu estudar arte na Escola Guignard, da UEMG, em 2017. E pouco depois veio a história do feijão, em período no qual estudava pintura com a professora Thereza Portes.

Um dia, em 2020, quando cozinhava em uma panela de pressão, viu uma espécie de sujeira vazando. Observando aquele líquido de tom azulado, que lentamente mudava para tons mais esverdeados ou arroxeados, percebeu o potencial deste pigmento para suas pinturas. E assim começou uma longa pesquisa que Josi relaciona à ideia de “quarar reverso” – que se tornou, inclusive, título de sua primeira exposição individual, em 2022 na Casa Fiat (Belo Horizonte).

O quarar, verbo que pode soar antiquado – ou é até desconhecido – para muitos, se refere a técnicas para tirar manchas de roupas e panos, em geral ligadas à exposição ao sol. Resumidamente, algo feito para alvejar peças com manchas causadas pelo uso doméstico. Para Josi, acostumada a utilizar deste processo ao longo da vida, a ideia agora, no entanto, é criar aparecimentos, não o contrário. “Então isso me guia para pesquisar pigmento. Tudo que mancha roupa eu vou buscar para trazer para a minha pintura. Então na exposição você vai achar muitos materiais que mancham roupa, como a seiva do umbigo da banana, que impregna, as terras aguadas, que podem ser desde uma aguinha rala até um barro, e assim por diante.”

Adensamento de gente

O fato é que toda a explicação sobre o trabalho com os materiais e pigmentos só ganha sentido por sua conexão direta com os temas e assuntos que surgem nas obras. Seja nas pinturas ou esculturas, corpos e rostos – em geral de pessoas, mas por vezes de outros seres – surgem adensados, marcando presenças e se voltando contra os apagamentos. Mais uma vez, são povoamentos, espécies de “quaramentos reversos”, mas agora de seres. “Quando eu falo muito de processo, dos materiais, é porque essa matéria também puxa muito pra esses temas. (…) Tem ali uma gentaiada né, é muita gente trançada”, brinca ela. “E como a água é muito parceira na minha pintura, pode-se pensar que tem também um aguado de gente. Às vezes da linha de uma pessoa já vem outra.”

Reverter apagamentos, como identifica Galciani, que conviveu com a artista nos últimos anos, também se liga diretamente com a história de vida de Josi, que abrange presenças, mas, também, muitas ausências e desligamentos. “O trabalho dela acontece de uma maneira muito conectada com a história e de sua família, com o lugar onde ela nasceu, onde ela vive, e o lugar onde estão essas pessoas que vieram antes, dessa ancestralidade da qual ela é muita próxima. Isso tudo é muito caro e importante para a Josi.”

O corpo – representado nas obras – e o território – matéria prima da produção –, surgem fundidos no trabalho. A suposta separação entre natureza e cultura, comum ao pensamento ocidental, é substituída por uma grande fusão, em uma produção que parte muito mais de associações, conexões e ancestralidades do que de separações e categorizações. “O homem não é destituído da natureza”, destaca Galciani, completando que para Josi nada disso é apenas discurso ou teoria: “Não existe essa cisão, isso está arraigado no trabalho dela. Ela está contando uma história onde o corpo é completamente implicado e engajado no lugar. Tanto que esse lugar vem ‘matericamente’ para o trabalho”.

A segunda individual de Josi, já em uma das maiores galerias do país, mostra que a tal “fervura” de sua produção foi rápida, deixando a artista por vezes até insegura. Mas como ela mesma diz, sua história e suas “movências” são antigas, o que fica claro no próprio título da exposição: é toda uma vida de arrastar chãos, juntar imbigos, ou seja, de trabalhar com as mãos, de observar e atuar no mundo cotidianamente. “Então acho que é um encontro muito bonito entre as dinâmicas do que compõem um trabalho de arte: uma instância política, uma instância ética, uma instância técnica. O trabalho dela conjuga isso na prática, no encontro com o lugar e seus tempos e com as materialidades”, conclui Galciani.

 


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