Rio Doce, no território Krenak em Resplendor, MG
Rio Doce, no território Krenak em Resplendor, MG

Men am-ním é a tradução aproximada, na língua do povo Krenak, para a palavra portuguesa “Ocupação” – na verdade, o vocábulo indígena é usado para definir um “lugar conquistado, ocupado”, um território “onde quero estar para passar o saber”. O termo originário não poderia ser mais adequado para denominar a Ocupação Ailton Krenak, aberta no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 30 de agosto.

Além da tradicional memorabilia do homenageado (a curadoria, coletiva, reuniu mais de 90 peças que remontam a história do mais destacado intelectual, filósofo, ambientalista, escritor e líder indígena brasileiro da atualidade), a mostra Men am-ním Ailton Krenak apresenta um lote respeitável da produção de artes visuais de Krenak, com cerca de 20 telas (pinturas a óleo, nanquim ou urucum), diversos desenhos e apontamentos visuais do ativista mineiro. Nascido em Itabirinha, Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, Krenak comemora 72 anos de idade no próximo dia 29 de setembro. A exposição também traz vídeos, fotografias históricas dos Botocudos (ancestrais dos Krenak), cadernos de notas, fotografias de diversas fases de sua trajetória e depoimentos de personalidades.

Krenak, desde que surgiu para o olho público em 1987, durante a Assembleia Constituinte, vestido com um terno branco e com o rosto pintado de tintura preta de jenipapo para fazer um discurso que mudou os rumos das políticas indígenas no País, alcançou uma autoridade de raros paralelos na vida nacional. Autoridade que o libera até para batizar como “Programa de Índio” uma das saletas de sua mostra na Avenida Paulista. ARTE! BRASILEIROS conversou com o filósofo. 

ARTE! BRASILEIROS: Você certamente leu ou conhece o discurso do cacique Seattle, não? De 1855.

AILTON KRENAK: A Carta do Grande Chefe?

ARTE! BRASILEIROS: Sim. De certa forma, nós temos também uma Carta do Grande Chefe, que é o seu discurso de 1988 na Constituinte brasileira. Tornou-se o nosso equivalente, não? Porque estabelece alguns parâmetros de debate sobre a questão indígena que, evidentemente, sempre existiram, mas não tinham sido formulados daquele jeito até então, e foi dentro do Congresso brasileiro. 

KRENAK: É um paralelo que me enche de orgulho. E me sugere, inclusive, que a Carta do Grande Chefe é um documento histórico que pode não ter aparentemente nenhuma relação com o que a gente pensa, aquela fala de um chefe indígena do Norte da América respondendo à pretensão do governo dos Estados Unidos de tomar um território deles, com a conversa de que veio comprar a terra. Mas, ao fazer uma análise do discurso, a gente vai começar a entender muito sobre a origem dessa potência política bélica que se constituiu nos Estados Unidos. Lá no começo, quando eles ainda precisavam de território para existir, eles foram roubar mais um pedaço de terra do povo Duwamish. O chefe Seattle era de um povo que vivia no litoral e que, provavelmente, era tão pacífico quanto os nossos parentes Potiguara ou os Tupinambá daqui do litoral da Costa Atlântica. Eles tinham uma grande área de pesca e eram prósperos, viviam numa boa. Não estavam em conflito com ninguém. E aparece um pelotão comandado por um general, o cara já era general, que vai dizer para ele: “A gente veio aqui te trazer uma proposta do grande chefe de Washington, para comprar a sua terra”. Para aquele povo Duwamish, comprar a terra era uma coisa sem sentido. Seria como alguém chegar e falar assim: “Eu vim comprar sua pele”. Total nonsense, né? O chefe Seattle escutou aquela proposta e começou a fazer uma espécie de manifesto sobre a Terra ser a nossa mãe. E é tão lindo. Se tornou um documento que viajou no tempo. No caso do século XX, foi o primeiro manifesto ecológico a animar os movimentos de libertação, o movimento hippie e a contracultura: tudo se apoiava naquela declaração de que a terra não se vende. A terra, ela vai nos sepultar. O Chefe Seattle falou: “Olha, você vai ser enterrado aqui”. Mas também é profético porque ele diz que, se o homem branco conseguir tomar essa terra, como parece que vai, porque o seu Deus, o Deus branco, é super poderoso e ele vai dar essa terra que vocês querem para vocês, então “ensina seus filhos a pisar suavemente na terra”. Essa recomendação, ela parece mais uma maldição. Porque o Seattle sabia que os brancos seriam incapazes de ensinar isso para os filhos deles. Então, é como se você estivesse entregando um dispositivo para alguém e falar: “Ó, segura bem isso aqui, tá?”. Mas você sabe que aquela coisa vai explodir um dia. Quando eu, numa circunstância imprevisível ou imprevista, fui designado para fazer a fala da defesa dos direitos indígenas no debate da Constituinte, eu não sabia o que ia fazer. Eu não tinha um texto. A gente tinha participado das mobilizações dos anos 1980, 1987, 1986, das Diretas Já, e a gente reclamava a Constituinte também como um direito, que a gente tinha o direito de participar da nova Constituição. Então aquela participação minha nos movimentos, junto com todos os movimentos sociais, ela me animou a acreditar que nós estávamos numa onda favorável para confrontar a ideia de que podiam tomar tudo dos indígenas, podiam submeter o povo indígena a uma lógica progressista, desenvolvimentista, que o Brasil tinha que fazer isso. Assim como lá na carta do Seattle, que os Estados Unidos tinham que tomar a terra daquele povo indígena. Aí eu pensei: “Quer saber? Eu vou radicalizar. Eu vou jogar uma maldição nesse Congresso. Eu vou dizer a eles que o sangue dos nossos ancestrais vai recair sobre a cabeça deles”. E eu fui lá para fazer isso. 

ARTE! BRASILEIROS: Mas você também demarcou, como se fosse uma pedra fundamental, algumas outras coisas, não? 

KRENAK: Eu não sabia que isso ia prevalecer. Eu podia sair preso de lá. 

ARTE! BRASILEIROS: Sim, você fala isso no discurso. Para eles não tomarem aquilo como um insulto. 

KRENAK: Porque eu vi que podia ser (visto assim). Eles podiam falar: “Esse cara tá insultando o Congresso Constituinte, prende ele!”. E, naquele tempo, algumas dessas pessoas golpistas que estão hoje aí andando, já estavam lá. Quer dizer, eu passei por um fio. 

ARTE! BRASILEIROS: Eles sempre estiveram lá, não é?

KRENAK: Eles sempre estiveram lá e nunca perderam tempo, porque a gente teve a promulgação da Constituinte e aí veio a eleição do Collor, que foi substituído depois pelo Itamar. E, na presidência do Fernando Henrique, o ministro (Nelson) Jobim, da Justiça, criou um pretexto para invalidar o princípio que a gente fixou na Constituição, quando criou o Marco Temporal. O pessoal fica falando dessa excrescência jurídica, que é o Marco Temporal, mas eles deveriam dizer quem botou esse ovo. 

ARTE! BRASILEIROS: (Nelson Jobim) Que era um jurista, inclusive. Tinha que ter um verniz jurídico.

KRENAK: Foi um ministro da Justiça, que era considerado assim “O Democrata”. Talvez ele fosse o democrata cristão. Porque eles ainda não tinham inventado o patriota cristão, mas eles já tinham uma versão, já estavam ensaiando. Então, eu creio que essas coisas que nós estamos tendo que ver hoje, que defrontar hoje, elas sempre tiveram por aqui, sempre estiveram aí.

ARTE! BRASILEIROS: No seu discurso de 1988, você diz, uma hora: “Vossas Excelências sabem que os povos indígenas estão muito distantes de poder influenciar a maneira com que estão sugerindo os destinos do Brasil”. Ou seja: você diz que as nações indígenas eram frágeis para ameaçar o poderio político dos brancos. Naquele ponto, essa era a situação. Mas isso mudou um pouco, não? Ou você discorda? 

KRENAK: Nós nunca deixamos de ser uma minoria radical. A gente não chega a ser 0,2% da população do país. Naquela época éramos 130 mil. 130 mil pessoas é dois Maracanã cheios, né? Se você pensar no Século 21, onde o censo diz que nós somos 1.730.000 pessoas, nós ainda somos menos que 1% da população total do país, não somos?

ARTE! BRASILEIROS: Apesar da autodeclaração de hoje, né? Que é uma novidade. Os próprios Tupinambás da Bahia, de Olivença, não “existiam” até pouco tempo. 

KRENAK: É, muitos povos declarados aculturados, integrados, assimilados sem ser consultados, agora estão se autodeclarando e reivindicando suas identidades de origem. Isso é maravilhoso. E é alguma coisa também que não se imaginava, nem os antropólogos imaginavam que fossem ouvir uma numerosa população rural no país, vivendo do Recôncavo até o Maranhão, dizendo que são Tupinambá. Não é só na Bahia, não. Os Tupinambá estão na Costa Atlântica, coincidindo com os mesmos territórios em que eles viviam no século XVII. Quer dizer, aquelas pessoas que ficaram submetidas ao regime dos engenhos de cana de açúcar, depois ao Ciclo do Café, todos esses ciclos econômicos que se transmutaram em trabalhadores de várias épocas, elas estão dizendo que são Tupinambá. Ou que são Xukuru, Cariri ou Pataxó, e Pankararu, ou Potiguara. É um fenômeno que me parece que só pode acontecer num país do tamanho do Brasil e com a história de usurpação que foi a colonização do Brasil. Porque, se a gente tivesse outra perspectiva… Nos Estados Unidos não dá para alguém, numa região qualquer dos Estados Unidos, se autodeclarar indígena. Porque a história dos Estados Unidos não deixou dúvida sobre isso. Ou ela matou todo mundo ou ela… como diz? 

ARTE! BRASILEIROS: Confinou. 

KRENAK: Ou ela confinou. Ela não deixou ninguém para reclamar depois qualquer dúvida sobre a formação daquele país. Então, eu acho maravilhoso o fenômeno que vem acontecendo no nosso país desde o final da década de 90, que independe de o Brasil ser signatário daquela Convenção 169 que reconhece a autodeclaração, da OIT. As pessoas estão tomando essa decisão de livre e soberana vontade. Da mesma maneira que as pessoas podem decidir o gênero, as pessoas também resolveram decidir o pertencimento. Tem uma discussão agora sobre pardos e pretos ou negros, né? A doutora (Carla) Akotirene diz que nós deveríamos considerar, pela história da escravidão no nosso país, que as pessoas pardas e pretas deveriam todas serem reconhecidas como a população negra do Brasil. Eu concordo com quase tudo que a Akotirene fala, mas eu acho que uma boa parte das pessoas que foram registradas pelos bispos, pelos colégios, pelos cartórios no século XIX e século XX como pardos, eram na verdade indígenas. A história pode mostrar que é verdade isso, senão essa população da Costa Atlântica estaria dizendo que era de algum povo africano. 

ARTE! BRASILEIROS: É como você disse: é por livre e soberana vontade.

KRENAK: É por livre e soberana vontade que as pessoas dizem: “Eu sou Tupinambá, eu sou Potiguar, eu sou Guarani, sou Pankararu”. Você não pode chegar e falar: “Ah, não, você é pardo”. Inclusive porque o pardo é uma categoria que se inscreve em cartório. As declarações são de pessoas negras, amarelas, indígenas e pardas. Tem todas essas cartelas (no cartório). Tem todas essas variações. Então a pessoa pode chegar lá e falar assim: Sou pardo. O censo foi melhorando a pergunta nos últimos 20 anos e a resposta foi ficando mais complexa. Antes você ou era preto ou era branco. Teve um período em que nem havia possibilidade de você declarar que fosse indígena. Ou Preto, ou branco. Tem coisa mais óbvia, né? Um país formado por pretos e brancos. Sim. 

ARTE! BRASILEIROS: E, mesmo entre os indígenas, a diversidade é muito grande. São grupos muito distintos.

KRENAK: Não só no sentido de distintos como grupos étnicos, mas são distintos também do ponto da constituição mesmo. Você vai ter pessoas que são fortonas, grandões, campeões, você vai ter pessoas miudinhas. Eu me lembro que, quando teve uma discussão sobre a primeira grande invasão da terra Yanomami, a Polícia Federal fez um debate e eu, como representante do movimento indígena, estava numa mesa onde também estava o chefe da Polícia Federal, o Tuma. O velho (Romeu Tuma). As pessoas tinham medo da presença do sujeito. Aí eu estava na mesa. Mas, em compensação, também tinha juristas de relevância, como Dalmo Dallari, e outros defensores de direitos humanos na mesa. E o sujeito lá na mesa argumentando com relação aos Yanomami. Ele (Romeu Tuma) dizia: “Mas os Yanomami, eles são tão mal formados que eles conseguem viver no meio daquela floresta onde uma pessoa não consegue nem se deslocar”. Eu escutei uma conversa dessas e fiquei pensando: “É assim que eles pensam que são os indígenas. Eles acham que existe um tipo de gente que é aceitável, e tem os outros que não são nem admitidos como ser humano, que não têm uma humanidade”. E a história do Brasil é recente. Eu não estou falando de uma coisa do século 19, não; eu estou falando de coisa de ontem. De 1986. É. Quando essa gente mandava e desmandava aqui, né? Então a mudança foi muito grande, porque eu assisti a ela.

Eu vou fazer 72 anos agora. E a metade da minha vida civil foi escutando gente decidir como eram ou quem eram os indígenas. Mas, agora, as pessoas decidem se são indígenas, declaram isso e fazem valer isso. Então, houve uma mudança. Teve uma mudança grande e, no auge dessa mudança, um antropólogo chamado Eduardo Viveiros de Castro, que é um cara muito corajoso, foi acusado de estar inventando índios quando ele disse que, no Brasil, exceto quem não é, todos são índios. Ou:  “No Brasil todos são índios, exceto quem não é”. Aí virou uma polêmica, todo mundo quebrou o pau, brigaram com ele, o pior é que ele ele apanhou de todo mundo, ele apanhou dos outros colegas antropólogos, de algumas pessoas indígenas que se achavam ofendidas com essa possibilidade de autodeclaração, mas ele tava prenunciando uma coisa que passou a acontecer de fato. Aí, quando pegaram de novo o Viveiros de Castro para esclarecer aquela fala: “Como é que fica a sua afirmação de que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é?”, ele pegou e respondeu assim: “A gente podia atualizar dizendo que no Brasil só é índio quem se garante”. Eu achei genial. Porque ele tá dizendo o seguinte: quem tem a capacidade de defender a sua (identidade), é. Se ele disser que é, é. Se afirmar, né? E sustentar que é e mostrar que é, ele é mesmo. Agora ele (Viveiros) também desnudava uma coisa gravíssima na nossa história colonial: um branco não precisa provar que é branco. Não precisa.

ARTE! BRASILEIROS: Houve mudança também em relação à representatividade. A representatividade é maior hoje também, não é? Você tem o Ministério dos Povos Indígenas, você tem secretaria indígena na Cultura. 

KRENAK: Então, diante do aparelho do Estado, cresceu a representatividade indígena, assim como cresceu também a representatividade negra. Porque, antes, era exclusividade dos brancos ocupar cargos nos ministérios. E vamos dizer que, até o Lula, também era exclusividade dos brancos ocupar a chefia do governo brasileiro. Antes do Lula, você conhece alguém que não era branco? Ocupando a chefia do governo brasileiro? 

ARTE! BRASILEIROS: Mesmo os cargos fundamentais, né? Ministros, ministros da Suprema Corte. 

KRENAK: Sempre foi um lugar de branco. A gente não é África do Sul, mas a gente também tem apartheid. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem umas imagens recentes, uma do impeachment da Dilma, outra foto do gabinete do Temer, quando ele forma o seu seu governo pós-golpe, e impressiona como todas as pessoas nas fotos são brancas.

KRENAK: É, também não dava para esperar coisa diferente do Temer. Eu só não sei porque ele não tá sendo julgado junto com esses golpistas aí. Eu não sei onde ele tava escondido no dia da depredação. Eu não sei debaixo de qual cadeira ele tava escondido. Ele tem um dedinho no golpe. Ou um pezinho no golpe, (para lembrar) o Fernando Henrique, que dizia que tinha um “pé na cozinha”. Tem uns que têm um pé na cozinha, outros que têm um pé no golpe e outros que têm o pé na tábua. São aqueles que dão linha, os fujões. 

ARTE! BRASILEIROS: Agora é irônico que o Temer tenha papel duplo no golpe, não? Porque o cara que está confrontando o aparelho do golpe é justamente uma figura que ele indicou para o STF, o Alexandre de Moraes, que foi indicado pelo Temer. 

KRENAK: É que a gente nunca sabe que vozes falam na cabeça dessas pessoas, né? Circunstancialmente, um cara pode assinar uma nomeação. Mas as vozes que falam na cabeça continuam ocultas. 

ARTE! BRASILEIROS: É. Pode ser algum tipo de idiossincrasia. Voltando aqui para a mostra: eu falei com a Daiara Tukano um dia desses, e ela diz que, para os indígenas, não existe a palavra arte.

KRENAK: Na maioria das línguas não tem. Teve uma mostra no MAR (Museu de Arte do Rio) chamada Dja Guatá Porã. Essa mostra, Dja Guatá, foi a primeira que ocupou o espaço inteiro de um museu, no Rio de Janeiro, com obras de autoria indígena. 

ARTE! BRASILEIROS: E essa Véxoa que teve aqui na Pinacoteca? 

KRENAK: Foi antes (Dja Guatá foi em 2017, Véxoa foi em 2020). Era uma ampla mostra, com ampla curadoria coletiva. A daqui, a Véxoa, teve a curadoria da Naine Terena. E a pergunta que a curadoria da Dja Guatá se colocou era: “O que é a arte?”. E a maioria das pessoas indígenas que respondeu essa pergunta dizia que no seu idioma, na sua cosmovisão, na sua visão das coisas, não existia uma palavra para designar isso que o Ocidente chama de arte. Que na verdade foi a Europa que decidiu que tem um campo do fazer que é chamado de arte. Antes da Europa decidir que tem alguma coisa que é arte, outras culturas, outros povos, não tinham ainda feito essa separação. Mas o que aconteceu é que, nessa experiência dos indígenas no Brasil, todos conseguiram buscar um sentido, uma expressão na sua própria cultura, na sua própria tradição, que dava conta de nomear essa experiência sem considerar que era um campo exclusivo da criação.

Eu fui perguntar para as pessoas mais capazes das famílias Krenak, para me instruir sobre isso, e a pessoa que me instruiu – já se encantou, não está mais viva entre nós, mas ela me disse: “Olha, é um gesto”. A mesma palavra para gesto é a palavra para isso que eles chamam de arte. E eu levei para lá essa expressão, que é Hinta. Gesto. E, sabe aquelas inscrições rupestres, essas marcas que tem nas pedras? Os antigos, os ancestrais, quando eles faziam uma incisão daquelas, quando eles faziam uma impressão daquela na pedra, eles sabiam que aquilo ia durar. Então eles chamavam aquele ato, aquela coisa, de “gesto”, que, com o tempo, pode ser chamado de arte, porque coincide com o que a arte faz. Uma tela, um desenho, uma escultura. Então, quem sabe, nas outras culturas, a aproximação com a ideia de arte tenha passado pela mesma viagem. De repente, nem os gregos chamavam de arte as primeiras expressões do que veio a ser a arte grega. Eles nomearam aquilo no caminho. Será que tudo que existe não é nomeado no caminho? Ou será que as coisas precisam de um pressuposto antes para depois existir. Não é? Só na tradição , digamos assim, que a Bíblia transmite, é que alguma coisa surge de um anúncio, né? “Fez-se luz”, aí criou o mundo e tal. Uma palavra criou, uma palavra criadora. Parece que a arte não é isso. A arte é no caminho, é no percurso.

Ailton Krenak a caminho da aldeia Ashaninka, no Acre, 1995 Foto: Hiromi Nagakura

ARTE! BRASILEIROS: E, nesse momento, essas expressões indígenas ocupam, de uns tempos para cá, os espaços convencionais. Você, por exemplo, estava naquela exposição do Jaider Esbell, no MAM de São Paulo. 

KRENAK: Sim. Era um coletivo. Chamava Moquém. 

ARTE! BRASILEIROS: E ele (Jaider Esbell) estava também lá na Bienal como co-curador. Conheci ele lá. 

KRENAK: Uma pessoa impressionante, que marca. Quem teve algum momento de encontro com Jaider, não esquece. Um cometa, né? E eu fico sempre pensando sobre como pessoas com essa intensidade de vida duram pouco. O Torquato, por exemplo. Torquato Neto. A gente podia fazer uma lista grande. São pessoas que vivem com tal intensidade que duram pouco. Até a cabeça dele, né? Ele quando conversava parecia que ele estava… Com 300 coisas para falar ao mesmo tempo. A impressão que dava era essa. Eu era uma geração adiante da turma dele e, quando ele apareceu para mim, eu fiquei pensando: “Caramba!”. Ele não gostava desse papo de movimento indígena. Achava isso uma coisa sem sentido, a ideia de movimento indígena. Então, ele atuava num espaço tão ativo que ele não precisava ficar dando nome para as coisas que estava fazendo.

Muito provavelmente, se perguntasse para o Jaider: o que é isso que você está fazendo, é arte? Ele ia desbaratinar dizendo que o que ele estava fazendo era uma rede, um balaio, um qualquer coisa. Porque ele não ia nessa história de repetir as mesmas categorias que já estavam aí disponíveis. Me impressionou muito e eu pensava assim: essa geração dele vai transtornar o ambiente em que as pessoas são chamadas genericamente de “os índios”, ou que os índios fazem artesanato ou esses papos atrasados todos; eles vão implodir com essa cápsula. E eles conseguiram mesmo fazer isso. Se eu tiver ajudado em algum sentido, isso só me anima mais ainda, porque eu me identifico muito com a geração deles. Você mencionou a Daiara, e a Daiara Tukano puxa uma lista de mulheres, jovens mulheres indígenas que fazem intervenção nisso que é galeria, museu.

ARTE! BRASILEIROS: Como Glicéria Tupinambá.

KRENAK: É. Imagina o manto Tupinambá, se ele era alguma coisa cogitada no século XX? De jeito nenhum. Ele é uma invenção dessa geração de gente como Daiara, Denilson Baniwa, que é genial, o Gustavo Caboco, a Naine Terena, que a gente já mencionou. Olinda Tupinambá, que é genial, da nova geração também. Tem uma mulher pataxó que tem uma capacidade de se expressar em diferentes materiais, em desenho, escultura e arte, na sua observação do mundo. Arissana Pataxó. Viva Arissana. Maravilhosa. Os trabalhos dela não são, não tem uma singularidade? O jeito dela lidar com a forma, com a representação das coisas, é muito próprio dela, né? E admiro muito o jeito dela atuar também, né? É muito discreta. Quando ela tá no campo da criação, ela surpreende a gente, mas quando ela não tá intervindo, ela tá cuidando da sua própria experiência de vida.

O que tem em comum nessa geração? Eu acho que todos eles descobriram que podem ser o que quiserem. Isso que é maravilhoso. Eles saíram do confinamento colonial que tinha sido estabelecido para “índio”. Esse genérico índio, ele tinha que ficar num determinado lugar. Ele tinha que usar tanga, arco e flecha. Tinha que fazer uma imitação ideal do que o pensamento branco colonial designou para ele. Ele tinha que fazer coisas espetaculares, tipo ficar deitado numa praia, esticando um arco e jogando uma flecha para o céu. Ele tinha que acertar um pássaro em pleno voo. Ele tinha que pegar um peixe com a mão. Ele tinha que virar onça. Ele podia mergulhar, sumir e aparecer jiboia em algum outro lugar. Quer dizer, ele só não podia ser humano.

A geração dessa turma que eu listei agora, eles descobriram que podem ser humanos e podem ser o que quiserem. Inclusive, voar. Ou mergulhar, ou também virar onça e tudo, mas agora sem ser caricatura. Sem ser um simulacro, sem ser o que o Gonçalves Dias queria, sem ser o que o outro lá, o José de Alencar, queria. Aliás, quando me convidaram para fazer uma releituras de O Guarani, a ópera, eu olhei também assim e falei: “Mas tão falando comigo”? Porque historicamente, ou recorrentemente, quem era chamado para isso eram os figurões manjados da dramaturgia, da cena, da arte e tudo. Convidar um indígena fora desse circuito todo para fazer uma releitura da ópera O Guarany, é uma provocação. Eu pensei: “E eles estão querendo me convocar para uma provocação. Será que eu vou encarar essa?” E aí eu fui. Fui em boa companhia. Eu fui com o Denilson Baniwa. Eu fui com os Guarani do Jaraguá. Com o Coral Guarani. E ainda tive a assistência, a generosidade da Cibele Forjaz, que é de lá da turma do Zé Celso (Martinez Corrêa), para fazer direção de palco, aquela coisa toda, né? E o pessoal que fez dramaturgia, todo mundo muito experimentado. Mas a gente decidiu que a gente ia virar a história de cabeça para baixo.

A gente estreou a ópera O Guarany no Teatro Municipal lotado e não parou de lotar até a última apresentação. Os jornais, nervosos, diziam que a elite paulista tinha contratado um identitarista, eu, para destruir Carlos Gomes. Eu pensei: “Caramba, destruir Carlos Gomes não deve ser brincadeira, hein?”. Aí a gente fez a primeira leitura, foi um sucesso imenso. Dois anos depois, a gente montou de novo, o Teatro Municipal me chamou para fazer a remontagem daquela leitura do Guarani. A gente não mexeu muito mais do que naquela primeira versão lá. A gente só aperfeiçoou alguns recursos que a gente queria botar em cena e tem um maestro Livio Tragtenberg, o Livio chegou pra mim e disse: “Você está certo. Você pode pôr a musicalidade indígena se sobrepondo aquela eloquência da ópera que o público, a audiência vai entender o que você está fazendo. Pode ir nessa”. Eu falei: “Mas tem muita gente achando que eu estou insultando a ópera”. A ópera do Theatro Municipal, a orquestra que está executando o libreto, que eu estou insultando eles quando eu ponho no palco uma orquestra Guarani. Eles dizem que não existe uma orquestra Guarani, eu disse ao Lívio. O Lívio afirmou: “Não, você pode dizer que existe, sim, porque eu estudei como os Guarani nas missões produziram a música daquela época, das missões, e como eles continuaram depois que foi desbaratinada as missões jesuíticas a aperfeiçoar a sonoridade deles, do povo Guarani, e que a sonoridade Guarani é muito complexa. Ela tem duração e ela tem a potência de conquistar aquele ambiente da ópera numa boa”. Aí a gente anunciou no programa que ia botar em cena uma orquestra Guarani. Teve um monte de gente que ficou irritada para caramba dizendo: “Mas que é isso? Não existe uma orquestra Guarani. Tem um coro Guarani, mas uma orquestra não”. A gente bancou, botou orquestra lá. Sucesso de novo. Imenso.

Então, eu acho que quando a gente fala de arte indígena, a gente não deveria pensar só nas artes plásticas. A gente deveria pensar nas intervenções que os indígenas têm feito naquilo que amplamente é chamado de arte, na música, no teatro, em qualquer coisa, no cinema também. Tem uma geração na faixa de idade da Daiara (Tukano) ou do Denilson (Baniwa) ou da Zahy Tentehar, ou da Kerexu, que está fazendo filmes. A Txai Suruí ganhou todos os prêmios aí com o filme que celebra a terra, Minha Terra Estrangeira, dirigido pelo João Moreira Salles.  Então eu estou fazendo um brainstorm, eu tô fazendo uma tempestade, puxando várias fichas, mas o que eu tô querendo dizer é: cinema, teatro, as artes dramáticas, a pintura, o desenho, as galerias de arte, os museus, as bienais, em todas elas você vai encontrar pessoas indígenas fazendo intervenção. É como se no século XXI tivesse destampado mesmo o campo da criação artística aberta para os indígenas, e eu acho que vai ser cada vez mais. Tem um coletivo indígena chamado Maku, o coletivo Maku, que foi criado pelo Ibã Huni Kuin Kaxinauá, que tem obras agora nas galerias, nos museus, na Fundação Cartier-Bresson lá na França, que comprou a obra obras deles, o que fez com que outras galerias e os outros museus se obrigassem também a ter obras deles. 

ARTE! BRASILEIROS: Assim como as obras do Jaider estão lá no Beaubourg. 

KRENAK: É, inaugurou uma obra dele aqui também no Masp. Eu não sei por que o Masp demorou tanto, já que ele é um artista daqui. Enquanto ele não foi lá para esse Beaubourg, quando eles compraram a obra dele, a partir daí virou uma coisa. Você entendeu? Parece que uma Bolsa de Valores de algum lugar do mundo fora daqui tem que dizer que alguma coisa vale para os daqui olharem e falarem: “Ah, é mesmo, vale”.

ARTE! BRASILEIROS: A sua frase “O índio vai ser aquilo que ele quiser” se aplica muito a você mesmo. Agora mesmo, você esteve no Carnaval Paulistano. E também está na Academia Brasileira de Letras (ABL). E também compôs um samba com o Diogo Nogueira, ou eu estou enganado? 

KRENAK: Olha, na verdade, o Diogo me convidou. Eu tinha a referência do pai dele, né? Do João Nogueira. 

ARTE! BRASILEIROS: Você o conheceu? 

KRENAK: O João propriamente não, mas a obra dele sim. Todo mundo ouviu, é conhecida, é igual à do Tom Jobim e tudo. Você fala: “Você conheceu o Tom Jobim?”. Não precisa ter conhecido a pessoa. A gente sabe a obra dele. Então, o João Nogueira, para mim, tem essa obra com essa expressão toda. Quando o filho dele falou comigo: “Ah, Krenak, eu queria te mandar a letra de uma música para você completar uma frase e tal, e queria te convidar para você vir para o estúdio fazer a música ali comigo”. Eu fiquei tão admirado desse convite, mas falei: “Eu não sou músico”. Mas, de novo, uma pessoa indígena conquistou o direito de ser o que ela quiser. Eu decidi: “Vou para o estúdio”. E ficou aquela coisa bonita para caramba. Eu fiquei comovido com a música. Ele não me atribuiu nenhuma tarefa de ir lá fazer tocar atabaque, nem flauta, nem nada. Simplesmente ele falou assim: “Põe a poesia que você traz aqui”. E ficou aquele diálogo respeitoso, gentil, colaborativo. Assim como o Gil também e o Emicida fizeram. Botaram a história do Tamanduá na na música do Emicida, no álbum dele Amarelo, aquele do “viver é partir, voltar e repartir”. A frase da música introduz uma história sobre o Tamanduá, que é uma história Krenak, que eu narro e o Gil conta essa história, dizendo: “E aí avô, o que você achou da gente?”. Aí ele responde: “Mais ou menos”. E tal. É frase de uma história chamada Kuán e Os Meninos Sabidos, que é de um livro que eu botei no formato de história para crianças e que tá por aí. Então essa coisa de poder escrever, publicar, distribuir, contar história, fazer filme, fazer teatro, eu acho que ela se abriu como uma possibilidade para todas as pessoas indígenas daqui para frente. 

Cotidiano de trabalho na década de 1980: a máquina de escrever e o fax eram as ferramentas de comunicação, além das fitas cassete. Foto: Acervo Angela Pappiani

ARTE! BRASILEIROS: Você tem quantos livros publicados? Você sabe? 

KRENAK: Olha, alguém já disse que eu tenho 20 títulos. Alguns são assinados junto com outros autores. Livro de autoria eu tenho Idéias para Adiar o Fim do Mundo, A Vida não é Útil, O Futuro é Ancestral. Tem esse Kuján e os meninos sabidos. Tem outras histórias que saíram por aí ao longo desses anos todos. O Lugar onde a Terra descansa. Ah, tem o Encontros, que saiu pela editora Azougue. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem também muitos no exterior, né? 

KRENAK: É que os meus livros foram traduzidos. Eu tenho títulos traduzidos em 20 línguas. Não são 20 países, são 20 línguas. Quando você publica em espanhol, todo mundo na América Latina lê. Todos os países espanhóis. São dezenas de países hispânicos. Quando você publica em inglês, na Inglaterra, você é lido pelas colônias dele todas. Mas curiosamente meus textos aqui no Brasil pela Companhia das Letras foram comprados para tradução americana dos Estados Unidos, e pelo inglês da Inglaterra. Eu achei ótimo, porque eu pude vender duas vezes o mesmo livro. Eu vendi ele para uma tradução nos Estados Unidos e para uma tradução inglesa no Reino Unido. O do Reino Unido eu sei que ele tá sendo lido na Índia, lido em tudo quanto é lugar que fala inglês. Então, eu não imaginava, eu não imaginava de jeito nenhum que eu fosse ser um autor lido fora do Brasil. Do ponto de vista assim, de autoria. Eu podia ser lido num texto, num artigo, numa reportagem, numa matéria, mas um texto de autoria, difundindo um pensamento que pode ser percebido como uma autoria de um filósofo indígena… Eu comecei a ser chamado de filósofo depois que eu publiquei Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (2019).

ARTE! BRASILEIROS: Me disseram que seu método de escrever tem a ver com o seu próprio método de contar histórias. 

KRENAK: Isso. É como agora. Isso que nós estamos fazendo aqui é o modo de fazer escrita. Eu conto para você uma história, a gente vai transcrever esse texto, alguém vai trabalhar na edição dele e ele vai sair num formato livro. Eu acho que essa experiência é contemporânea, ela tem tudo a ver com esse tempo, com as tecnologias e com as facilidades que a gente tem hoje para publicar. 

ARTE! BRASILEIROS: É quase como a escrita automática lá dos os beatniks lá dos anos 1950.

KRENAK: Provavelmente eu tenha percorrido esse mesmo percurso, mas de outra maneira. 

ARTE! BRASILEIROS: O que chama a atenção na sua Ocupação é a quantidade de telas suas que estão expostas aqui, um aspecto que é menos conhecido de sua produção. 

KRENAK: Eu acho interessante que é o seguinte: (a ocupação) é uma instalação pré-definida em termos de dimensão. Se você inventar de botar 300 obras aqui, é lógico que não cabe. Então, aquele espaço pré-define de certa maneira os circuitos que um acervo pode percorrer. Mas aqui tem uma curadoria tão genial, uma turma tão especializada, tão escolada nisso, que conseguem fazer tudo com o mesmo tamanho, o mesmo espaço. 

ARTE! BRASILEIROS: Na Pinacoteca tinha dois trabalhos grandes seus que estão ali na Ocupação. Mas há outros de colecionadores.

KRENAK: São pessoas para quem doei trabalhos. Eu nunca vendi nada. Nem uma tela. Sempre doei. Mas eu não sabia onde estavam. Um presente que eu ganhei com essa ocupação é que eles localizaram a maior parte dos meus trabalhos que estavam espalhados, localizaram e me deram um catálogo. A Ocupação Krenak está me proporcionando um catálogo das minhas obras. Agora elas têm endereço, cronologia.

ARTE! BRASILEIROS: O que significa esse trabalho de pintura para você na sua produção?

KRENAK: Isso tem a ver com a ideia das nossas diversas culturas indígenas. Nenhuma cultura indígena, nenhuma, eu posso te afirmar, guarda coisas. Coisas não são para ser guardadas. As coisas são para rodar. Circular o mundo. E a ideia de guardar uma coisa, ela tá confrontada com o entendimento de que tudo é efêmero. Arquitetura indígena é efêmera. Você não faz uma casa para durar sua vida inteira. Ao longo da sua vida, você vai fazer e desfazer várias casas. Fazer, desfazer, fazer e desfazer. Essa ideia de uma estrutura de casa que dura por gerações, isso é uma coisa tipicamente europeia. Por isso que eles fazem casas de pedra. Talvez seja por isso que a ideia de arte não coincide muito com o pensamento com a ideia indígena. Porque arte tem a ver com comércio. Não tem a ver com a permanência. Você faz uma coisa dessas para ela continuar existindo, com perenidade. E ao longo do tempo isso foi se transformando numa coisa de patrimônio. Ganhou esse atributo, de ser um patrimônio. A cultura indígena não se encaixa nessas coisas, não se encaixa no pensamento patrimonialista. Nem na cultura, nem na cultura material, nem na cultura chamada simbólica. Não tem essa pauta, não. Você não vai guardar nada. Aí a gente volta de novo à Carta do Grande Chefe, quando o general lá dos militares norte-americanos diziam para o Chefe Seattle: “A gente veio comprar a sua terra”. Você sabe que o desfecho daquela história foi trágico, não é? Eles disseram que não vendiam, os caras invadiram e mataram eles. Que é como os Estados Unidos fazem em qualquer lugar do mundo. Eles chegam e falam: “Quero te comprar”. Você fala: “Eu não tô à venda”. 

ARTE! BRASILEIROS: É o que estão fazendo agora em Gaza. Ou na Venezuela. E no Brasil também. 

KRENAK: Quero te comprar. “Eu não tô à venda”. Então, vou te matar. Então, esse podia ser o mantra deles, né? Ah, voltando àquele mesmo lugar, ao chefe Seattle, não tinha sentido aquela proposta de comprar a terra. Para o pensamento indígena, ampliando a expressão, (também) não tem sentido preservar essas coisas que você cria. Seja uma casa, um arco, uma flecha. Quando termina uma festa, por exemplo, com o Kuarup, todos aqueles adornos, tudo aquilo é descartado, é transformado em outra coisa, é trocado, é doado, mas não é guardado. Ninguém vai guardar o cocar do ano passado para usar no ano que vem. Tem até uma outra coisa muito curiosa: eu desfilei pela primeira vez numa escola de samba esse ano e eu aprendi uma coisa: eles também desmancham aquilo tudo e fazem outra coisa no ano que vem. É reutilizado. 

ARTE! BRASILEIROS: Você curtiu a experiência do Carnaval, não? 

KRENAK: Olha, para mim foi uma experiência, assim, arrebatadora. Eu fiquei muito, muito, muito comovido com tudo. Mas isso não quer dizer que eu virei um carnavalesco. Tem gente que acha que agora, ah, descobri o Carnaval. Não, não é isso. Eu não descobri o Carnaval, assim como o Cabral não descobriu o Brasil.

ARTE! BRASILEIROS: Você tá em vias de publicar alguma coisa nova, Ailton? 

KRENAK: Você está vendo como é? A gente tem sempre uma expectativa de alguma coisa nova. É nova em termos. A gente podia dizer que não tem nada mais novo do que a vida. Nada mais novo do que todo dia começar de novo. Eu estou sim com um trabalho que reúne textos inéditos que a minha editora, que agora tem sido a editora que me publica, a Companhia das Letras, vai publicar para o ano que vem. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem a ver com esse momento brasileiro?

KRENAK: Não, ele não é sobre esse momento, não é uma obra refletindo sobre a política, a realidade, digamos, regional, nossa, do Brasil ou da América Latina. Ele tem a ver, sim, com filosofia e eu acho que esse inédito vai ampliar algumas ideias que trabalho nos meus três livros, questões que se puseram para o leitor. Esse inédito também tem a função de sair daquele formato de “gibi”, daquele formato dos meus livrinhos. Dos quais todo mundo gosta; “ó o livrinho do Ailton e tal”. Eu acho que (o formato) foi uma coincidência do tempo, a gente tava saindo da pandemia, um período ainda meio assim, meio tímido da vida livreira. O mercado de livros tinha muitas editoras, muitas livrarias fechando, essa coisa toda. E, de  repente a gente tinha um livrinho que não era difícil de comprar, porque é barato, provocando uma uma reflexão sobre o medo que a gente passou na pandemia e a crise que a gente estava imbricado nela, que é esse fim de mundo, mísseis apontados para todo lado, isso tudo que está acontecendo. De uma hora para outra, nós viramos uma espécie assim de Guerra nas Estrelas de novo, com ameaças de se atravessar os continentes, bombardear. Não é brincadeira o que tá rolando agora. 

ARTE! BRASILEIROS: Essa coisa dos Estados Unidos fazendo manobras na Venezuela.

KRENAK: Aqui na nossa beirada aqui e também na Rússia, na China, na Índia. Eles todos, e o Brasil também, se sentindo bolinado pelo Trump, a irritação que está no ambiente. A gente não está muito longe daquele relógio do fim do mundo, né? Aquela imagem do relógio do fim do mundo, de que a gente estava assim a alguns minutos do fim do mundo e o ponteirinho deu mais uns pulos para a frente agora, e está bem encostando. Desde o Ronald Reagan que a gente não escutava coisas como “estamos prontos para um confronto global”, que foi o que o Putin falou. E os outros também, repetindo o mesmo refrão, parece que nós estamos num concurso de quem tem o míssil mais grande. O Ziraldo ia fazer uma boa piada com ele. Um bom cartum. Mostra o seu míssil que eu mostro o meu! Os grandes homens do mundo estão querendo medir quem tem o míssil mais comprido. Então é uma desgraça. Ao invés da gente “aprender a pisar suavemente na terra”, os caras estão tentando descobrir como roubar sem largar rastro. Eles não entenderam nada. E essa entrevista nossa já ficou parecendo aquelas entrevistas do Pasquim (risos).

 


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