Em luto, eu luto - "O mundo é nosso”, 2018-2019, da série "Pardo é papel", capa da arte!brasileiros #55. Foto: Gabi Carrera/ Divulgação
"O mundo é nosso”, 2018-2019, da série "Pardo é papel", capa da arte!brasileiros #55. Foto: Gabi Carrera/ Divulgação

Estamos de LUTO.

Nestes meses, vários pensadores da cultura brasileira morreram, após anos construindo uma obra grandiosa. O fotógrafo German Lorca, o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, quase centenários, fizeram parte da nata do pensamento moderno.

Mas, não bastasse estarmos atravessados pelas perdas de amigos, colegas e familiares, estamos atravessados pela morte de perto de meio milhão de cidadãos brasileiros. Vítimas do Covid-19, um vírus feroz mal e porcamente combatido no Brasil.

Estamos atravessados pela inevitável consciência da perda dos valores de nossa sociedade, que está em colapso. Dividida de tal forma, onde só se agudiza a violência.

Não é exagero dizer, citando palavras do escritor Bernardo Carvalho, que vivemos um momento em que se insufla a barbárie. Amplos setores da população mobilizados para negar o avanço que a pesquisa, o estudo e a ciência nos trouxeram ao longo dos últimos séculos apenas colaboraram com o avanço das doenças. Provocações contra os cuidados necessários! Provocações explícitas, em prol da “liberdade individual” e, de preferência, armada.

Instituições públicas arrasadas por profissionais fantoches, uma gangue onde todos mentem e se defendem entre si. Um país rendido a um projeto perverso, onde grandes setores da população ainda acreditam num modelo de poder, o poder da exclusão. Da punição. Religiosa, política, física, de gênero. Gente que mata gente. Sim, com balas perdidas e balas dirigidas… Voltadas a mulheres, a negros, a quem resiste.

Nós somos naturalmente frágeis. Mas essa fragilidade se acentua na medida em que amplos setores da sociedade são abandonados por esse projeto de poder, o que os torna cada vez mais despossuídos. Está se negando o básico: a comida, a educação, a saúde, a cultura.

Nessas, onde sobra a ARTE? Onde está? Já que não morreu. Mas não porque o que morre com o passar do tempo são movimentos, estilos, vanguardas; e sim porque hoje, aqui, nem todos estamos mortos. Ou porque, como diria a artista Jota Mombaça em uma das suas obras, que já capa desta revista, A Gente Combinamos de Não Morrer. 

Estamos de luto, sim, mas este, como na história de todas as culturas, é um processo necessário para homenagear o que perdemos e, apesar da dor, sermos capazes de reinvestir nossa energia e força psíquica para seguir adiante.

Cuidar-nos e cuidarmos uns aos outros, estarmos vivos, ouvindo e acompanhando onde está se produzindo, no meio a esta debacle. É necessário ler, escrever, pensar, pintar, instalar. É necessário produzir arte, garantir um corpo pulsional que, afetado pelo seu entorno, seja capaz de gritar, afetar o outro e o corpo social.

Assim, em nossas páginas a forma de fazer o luto é homenageando os  artistas, pesquisadores e editores da Enciclopédia Negra (Cia. Das Letras), que trabalharam exaustivamente para reparar, em resposta às enciclopédias clássicas do Iluminismo – que durante mais de 200 anos só reproduziram e preconizaram modelos brancos e europeus de dominação -, a ausência de centenas de homens e mulheres negros invisibilizados.

Tratamos também de várias exposições montadas por artistas e grupos sociais que não deixaram de se encontrar virtualmente. Fabio Cypriano homenageia o centenário de Joseph Beuys, um artista central na história da arte contemporânea, e ouve como exposições tradicionais, como a documenta de Kassel, se preparam para mudar completamente suas estratégias expositivas.

Há, ainda, a reportagem que está nas mãos do jovem jornalista Miguel Groisman dedicada a pesquisar artistas que documentam conflitos.

Enfim, estamos aqui e, fazendo nosso luto, lutamos.


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