Baixo Ribeiro e Mariana Martins
Baixo Ribeiro e Mariana Martins, na Choque Cultural, 2004. Foto: Rui Mendes

Uma das essências do grafite é expor conflitos, liberar energias, expor as farpas do sistema e criar uma arte instantânea, feita muitas vezes no escuro da noite, temperada com humor e resíduos ideológicos. Sintonizada com outros cosmos, há 20 anos a galeria Choque Cultural surge no circuito paulistano de arte interessada numa produção expandida, diversificada, fora do sistema tradicional de arte e que envolve outros interlocutores. Mariana Martins e Baixo Ribeiro, arquitetos e pesquisadores, abriram-se para a arte do tattoo, performance, hip hop, skate, rock punk, tudo sintonizado com a dissolução das fronteiras culturais de uma sociedade mediatizada. Eles acreditavam que o mundo da arte precisava dessa energia nova. Uma “desordem” provocadora torna-se então a mola propulsora de um programa estético cujas ideias emergem de rupturas e não de continuidades. A dimensão poética é impulsionada por sua função socializadora. Nesse contexto, a crítica formal, conservadora, que observa esse tipo de arte a distância, deu lugar a um vislumbre mais “esperto” com tentáculos em exposições experimentais de artistas e público jovens emergentes. Pioneira na arte urbana no Brasil, a Choque, logo nos primeiros anos de atividade, torna-se referência de contemporaneidade com cruzamentos de poéticas desbravadoras.

Sempre houve uma ansiedade generalizada de restituir a arte à vida, ao cotidiano e ao social. Baixo Ribeiro lembra que a Choque, acima de tudo, é uma ideia que deu certo. “Na verdade, é um conceito que, trocando em miúdos, quer dizer que, quando os diferentes são colocados em choque, eles geram energia, e a gente consegue direcionar essa energia para uma criação de impacto social. Basicamente esse é o nosso método”.

Pesquisadores inquietos, o casal amplia algumas reflexões sobre a cor tatuando seus corpos, dando vida e movimento a um emaranhado de traços que escolheram. Literalmente demonstram que a percepção do fenômeno cromático vai muito além do limite de uma tela, de um vídeo ou de um muro. O espírito do grafite começa aí, com a ideia de andar pela rua, de performar do jeito que bem entender e com quem aparecer.

Três nomes estão por trás da Choque. Além do casal fundador, atua também o historiador Eduardo Saretta, integrante do coletivo de arte SHN. E é Saretta quem faz a maior parte das viagens para organizar as produções internacionais. “Ele é responsável pelo contato com os artistas do exterior”, diz Baixo. O trio organiza exposições, com residências e intervenções pela cidade. Foi assim com a ação Buenos Aires na Choque, em 2009, quando por dois meses dez artistas fizeram residência em São Paulo e realizaram várias intervenções pela cidade. Entre eles estava TEC, artista argentino que faz parte do elenco da Choque desde 2006.

Como surgiu a ideia de lançar uma galeria tão diferente das já existentes? “Eu entrei na FAU/USP em 1982 e encontrei a Mariana e vários artistas. A gente saía de rolê com Alex Flemming, Mauricio Villaça, Carlos Matuck, Arthur Fajardo, que faziam grafite. Eram artistas que tinham uma visão da cidade como plataforma de comunicação e também de arte”. Formavam um grupo posterior ao de Alex Vallauri, pioneiro do movimento no Brasil, de Hudinilson Júnior, John Howard, Walter Silveira, autor do icônico Hendrix Mandrake Mandrix (1978/2018). Eles usavam a cidade como lugar de comunicação e como questão poética. “Hoje muita coisa está de volta e muitos trabalhos/poesias, feitos à maneira de lambe-lambe, estão estampados especialmente no centro de São Paulo. A diversidade artística é grande, alguns trabalhos são impressos em xilogravuras, outros misturam tudo e há os que se inspiram no poema haikai”.

A geração de grafiteiros posterior a Vallauri, segundo Baixo, não se ligou a eles. “O Speto, um dos artistas reconhecidos, não olhava para a obra de Vallauri”. Ele estava em contato com o hip hop, movimento forte que mistura música, dança, skate, algo ligado ao comportamental. Esse grupo queria desenvolver seu próprio estilo, fazer algo mais autoral. “O movimento musical influenciou muitos artistas, provocando a possibilidade de o artista do grafite ser um autor”. Na passagem dos anos 1990 para o 2000 foi que surgiu o grafite assinado, quando a Choque percebeu que havia artistas que dominavam a grande escala. “A gente pensou que poderia ter um mercado, a maioria dos artistas trabalhava na publicidade”. Quando o hip hop aparece com preocupação operária e fabril, as letras passam a ser feitas com spray. “Os artistas estavam animados com os trabalhos diversificados, e nesse caldo aparecem Merlin, Speto, Nunca, Os Gêmeos, entre outros, de uma geração de grafiteiros que veio para ficar”.

Com o clima de mudanças, a Choque acolhe vários tipos de colaboração, como expor em conjunto em museus e galerias daqui ou do exterior. Foi assim que a galeria se apresentou com parte de seu elenco na Jonathan Levine, em Nova York. “Essa exposição foi muito importante porque foi noticiada no New York Times, que considerou a exposição como algo novo”. Em 2009, outro marco importante, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) recebe a Choque com a mostra De dentro para fora, de fora para dentro, com a curadoria do trio. Entre as experiências que deram certo, Baixo considera um divisor de águas a exposição Choque Cultural na Fortes Vilaça, em 2006, no início da galeria. “Uma experiência profissionalizante para os jovens artistas”.

De Dentro para Fora/De Fora para Dentro
Panorâmica da exposição De Dentro para Fora/De Fora para Dentro, no Masp, 2009. Foto: Flavio Samello

Em 2002 eles decidiram produzir gravuras e com preços acessíveis a novos colecionadores. “Só que não dava para apenas vender gravuras”. A casa em que eles estavam instalados era local de trabalho. “No porão as paredes estavam repletas de pixo, stickers e no andar de cima a gente deixava o local mais arrumado para receber os compradores de gravuras”.

A efervescência que pairava na Choque não era suficiente para unir alguns grupos supostamente análogos. Baixo lembra que alguns tatuadores por exemplo não conheciam os artistas do grupo do grafite. “Para juntá-los, decidimos fazer a mostra Calaveras (Caveiras), no Dia dos Mortos, reunindo 15 artistas do grafite e 15, da tatuagem, que comercializaram seus trabalhos entre eles”. O público da Choque viu a exposição como espaço para compra de gravura. Passaram por lá pessoas da moda, da cultura digital, do vídeo ou aqueles simplesmente atraídos pela ebulição. “Chegaram também curadores, donos de empresas de publicidade, gente da área das artes como Carla Camargo, Emanoel Araújo, José Olympio, para conversar”. Foi daí que eles decidiram discutir o espaço da arte e organizaram a exposição Cata Lixo. “Falamos com o dono do restaurante próximo à galeria que abriu o espaço para que a gente fizesse qualquer coisa. Na casa de artefatos indígenas, também próxima, o proprietário sugeriu que a gente procurasse o grafiteiro Nunca, que tinha contato com artistas indígenas, e assim organizamos uma exposição com trabalhos do Diego Karaja”. O conjunto de ações realizadas pela Choque Cultural nessas duas décadas reafirma a galeria como local onde as emergências estéticas contemporâneas encontram vários canais para dialogar. ✱


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