Revoada
Detalhe da instalação Revoada, de Antonio Obá, 2023

Escutar Antonio Obá, numa conversa demorada, pausada, reflexiva, falando de sua infância, da construção de sua carreira, de seus encontros traz, primeiramente, muita calma e, ao final, a certeza de o quanto suas memórias se refletem diretamente na sua obra.

Em Revoada, a exposição aberta em junho deste ano, na recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, em São Paulo, Antonio Obá desenvolveu um trabalho em diálogo com o edifício e a história do novo museu, que foi uma instituição de ensino construída nos anos 1950 e atribuída a Ramos de Azevedo, engenheiro e arquiteto responsável pelos projetos, entre outros, do Teatro Municipal e da própria Pinacoteca do Estado.

Na instalação, mãos suspensas, moldadas com silicone nos corpos de crianças e jovens que frequentaram as oficinas na Ocupação 9 de Julho do MSTC e no ateliê da Pinacoteca Contemporânea, entre março e abril de 2023, e depois forjadas em gesso branco, evocam, segundo ele, “mãos livres em pleno voo; mãos – o próprio ideal de sustento e liberdade presentes no ofício ao qual se dedicam. Mãos antes acorrentadas, hoje quase sem peso ou pesar, mas cientes de todos os traumas, como um ex-voto. [1]

Não é por acaso que Obá transcende a pintura, a escultura e as instalações em imagens de corpos ou crianças suspensas e, às vezes, fantasmagóricas. Ele se lembra que aos 8 anos se deparou com um salão de ex-votos na histórica igreja de Trindade, inaugurada em 1912, como o primeiro Santuário do Divino Pai Eterno, popularmente denominado Santuário Velho ou Igreja Matriz, em Goiás. Um cenário de que se recorda fotograficamente e que lhe trouxe uma enorme sensação de abismo, em que ficou “parado, suspenso”, entre “fascinado e seduzido por um mistério”.

Wade in the water
Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019

A mesma impressão, comentará mais tarde, voltou a ter quase 20 anos depois quando se defrontou com obras do artista inglês Francis Bacon, uma de suas referências na pintura e cuja potência e visualidade o capturaram, como se ele estivesse diante de um “buraco”, algo que estava ausente e o fascinava também.

O educador

Obá nasceu em 1983, em Ceilândia, no Distrito Federal, onde mora e trabalha até hoje. Desde sempre desenhou e pintou, mas cresceu como educador.

Trabalhou como professor no Centro Educacional 15 de Ceilândia, lecionou sobre arte e processos criativos, como professor do ensino médio, no Centro de Desenvolvimento de Potencial Criativo (CRIAR), para crianças e adultos em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Sempre lhe interessou o lugar que a arte e a comunicação ocupam como motivadores da autonomia, da curiosidade e do conhecimento. Como um lugar de disrupção na aprendizagem. Para ele, o campo das artes visuais “passa pela contribuição para o desenvolvimento socioeducativo humano”.

Uma das características do começo de seu percurso é ter estado muito à margem do circuito tradicional de arte, mesmo durante o período em que participou de uma coletiva no Centro Cultural Renato Russo, em 2013, em Brasília.

Um momento determinante na sua carreira foi quando decidiu trancar sua matrícula na faculdade de publicidade e optou por estudar artes visuais na UNB. Ao mesmo tempo, frequentou o Centro Cultural Elefante, uma casa de artistas criada em 2013 pela gestora paulistana Flavia Gimenes e o artista plástico carioca Matias Mesquita que, recém-chegados a Brasília, construíram na Asa Norte da capital federal um espaço de experimentação de desenho, escultura, gravura e modelagem. É aí quando começou a ter contato com a produção de artistas nacionais e internacionais. Viajou para Inhotim, conheceu o trabalho de Adriana Varejão, que lhe serviu de inspiração para a sua obra Wade in the water (After Adriana Varejão), de 2019.

A pesquisa de Obá

Alguns significantes perpassam a obra de Obá: crianças, suspensão, ambiguidade. Suas crianças têm rostos marcados, quase adultos. “Elas figuram como agentes do tempo que parecem ter a consciência que lhes é própria, mas sem nenhuma inocência. São crianças que sabem, crianças que lembram”, dizem Yuri Quevedo e Ana Maria Maia, no texto especialmente escrito para o catálogo da exposição Revoada.

Para Obá, “são como ibejis”, referindo-se às figuras simbólicas da cultura iorubá que, de forma geral, dentro dos contextos culturais do continente africano, chama de Ibeji a um orixá-criança que nomeia duas entidades infantis gêmeas. Por serem gêmeos, são associados a um princípio da dualidade humana: sorte e azar. Por serem crianças, são ligados a tudo que se inicia e brota: à nascente de um rio, ao nascimento dos seres humanos, ao germinar das plantas etc. Elas possuem um quê de leveza que lhes permite flutuar. “Mas têm que ser cuidadosos porque, caso contrário, podem atrapalhar o trabalho. […] São a criança que há dentro de nós”, diz Obá.

Suas obras trazem histórias de segregação da raça negra, de episódios de injustiças cometidas em diferentes épocas, em lugares distintos do mundo, contra negros ou negras. Em Os Banhistas n. 3 – Espreita, 2020, cujo detalhe ilustra nossa capa, Obá faz referência a uma história ocorrida em 1964, num estabelecimento ainda à época reservado a brancos, em Saint Augustine, na Flórida (EUA).

Naquela ocasião, no hotel Motor Lodge, o líder do movimento antissegracionista Martin Luther King Jr. haveria tentado almoçar e foi impedido. Ao insistir, foi preso. Dias depois, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina em sinal de protesto, e o gerente do hotel chegou a despejar um galão de ácido muriático na água. Na obra, crianças nadam tranquilas, mas na espreita, junto de um crocodilo que alude à época em que crianças escravizadas eram usadas como iscas.

Na trilogia Strange Fruit (fruto estranho), Obá evoca a canção homônima de Billie Holiday e do poeta Abel Meeropol, que escreveram sobre o linchamento de dois homens negros em 1930 no estado norte-americano de Indiana. O horror do caso foi retratado pelo fotógrafo Lawrence Beitler: os corpos, pendendo de árvores, eram observados pela multidão branca.

A ideia de corpos suspensos está sempre presente, também nas crianças pintadas sobre linhos brancos. Em Chandelier – Crianças suspensas, elas também são elevadas, como santificadas. 

O reconhecimento do público

“Cresci vendo meus dois pais trabalhando e criando relações afetivas, isso foi formador […] Sempre foi importante produzir com um tempo ao meu sabor […], sem presa, […] mas passei dez anos sem tirar férias”, diz, acerca da pressão que envolve um artista, quando passa a ser mais reconhecido e solicitado por compromissos ligados a exposições individuais e mostras coletivas.

Para Obá, o trabalho e os encontros são fundamentais durante a carreira. Um deles foi com Flavia Gimenez, no Elefante, e outro, em 2015, com Renato Silva, da galeria Mendes Wood DM, onde realizou em 2016 a sua primeira exposição, Antonio Obá. A partir daí realizou várias mostras com a galeria, dentre elas Pele de Dentro (Mendes Wood DM, Nova York, EUA, 2018) e Outros Ofícios (Mendes Wood DM, Bruxelas, Bélgica, 
2021).

Antonio Obá participou de várias coletivas nacionais e internacionais, com destaque para o 36º Panorama da Arte Brasileira, MAM, São Paulo, Brasil
 (2018), a Enciclopédia Negra, Pinacoteca, São Paulo (2021), Tuymans / Cahn / Oba (Bourse de Commerce (2021/2022) e a 12ª Bienal de Liverpool, Inglaterra, Reino Unido (2023), entre outras.

Suas obras estão presentes em várias coleções de relevo, a exemplo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte do Rio, da
 Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Pinault Collection, do 
Pérez Art Museum Miami 
e do 
Jumex Museo, do México, para citar apenas alguns.

Atualmente, prepara uma próxima exposição, a ser aberta no fim de 2023 na sede paulista da galeria. Desde 2016 vem ganhando amplíssimo reconhecimento institucional, nacional e internacional. Ao final da conversa, outra certeza: a de que o Ibeji, em Obá, vem aflorando num crescendo, na ambiguidade da leveza e da contundência, atento e forte, como é preciso. ✱


 

[1] Texto de Antonio Obá, presente no catálogo da exposição Revoada

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