La Civilización Occidental y Cristiana (1965). Foto: Divulgação

* Por Andrea Giunta

Desde 1954 León Ferrari realiza uma obra que une poesia e política com a mesma força. Conhecemos bem a infinita variação de movimentos do traço que, ao final, completa e revela seus desenhos abstratos.

Muitas vezes abstratos na aparência, já que quando investigamos as palavras escondidas e o relato enredado pela linha apertada, nos internamos em seus questionamentos aos cânones, às hierarquias estabelecidas pelo Ocidente, aos dogmas dos livros sagrados, da sexualidade repressiva do poder politico, do poder eclesiástico. Muitas vezes ruborizados pelo que a sua escrita e as suas imagens expõem, não podemos deixar de nos sentir, ao mesmo tempo, seduzidos por sua beleza.

A obra que León realiza nos anos 1960 é delicada e monumental. Os desenhos de linhas flutuantes, apenas uma sucessão de traços sobre o papel, dialogam com suas esculturas que soldam ou enredam o arame. Convivem, ao mesmo tempo, com a sua obra paradigmática, La Civilización Occidental y Cristiana (1965), na qual um Cristo é crucificado sobre um bombardeiro americano. Depois dessa obra León abandona a arte no sentido tradicional do termo.

Em 1975 ele parte para o Brasil com Alicia, sua esposa, e toda sua família. Partem para um exílio que durou até 1991, quando regressam a Buenos Aires. Em São Paulo, León se vincula às formações experimentais da cidade com artistas como Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Fleming, Marcelo Nietsche e Hudinilson. O momento paulista não é, tão somente, o momento do retorno à arte, às esculturas soldadas, aos instrumentos abstratos (que Léon chama de Berimbau). É, também, o retorno às escrituras sagradas e ao papel que os escritos bíblicos exercem na história do Ocidente. Se é certo que é em São Paulo que Léon retoma a Bíblia e ao questionamento da cultura do ocidente, também é verdade que ele já havia antecipado seus argumentos em muitas de suas obras dos anos 1960. Como em A Arca de Noé, uma caligrafia apertada onde relata outra versão do dilúvio universal. Nessa, os homens morrem e só as mulheres sobram. Elas são como Eva, uma amante do conhecimento, que desobedece e lega à humanidade todos os prazeres do sexo – por isso León diz que se deveria fazer uma homenagem a Eva e que os cientistas deveriam considerá-la uma heroína, pois foi ela a sábia que descobriu o valor da pesquisa e do conhecimento. Nessa versão da arca de Noé, eu dizia, León descreve como as mulheres salvam a humanidade, cortando os genitais dos homens afogados e enxertando-os em uma árvore na qual sobem, em uma copulação frenética e reprodutora. Uma grande fornicação contra a qual Deus nada pode fazer, a não ser ficar observando, absorto, à distância.

Em São Paulo, León retoma a escultura e os desenhos, essa grisalha* que define os ritmos das linhas com as quais reinventa o abecedário, uma escritura de ritmos perpétuos. Penso em como sua obra esta marcada por momentos liminares, de fim e de começo, de abismo. Como quando quer falar da censura e não pode, porque não encontra as formas, e encripta as palavras em uma linha aparentemente abstrata (Carta a un general, 1963); como quando o vocabulário comum não lhe é suficiente para descrever os extremos da sensualidade e busca e copia do dicionário palavras em desuso; centenas de palavras que separa de seus significados e que utiliza por seu som; um som que evoca o amor, a descrição da beleza, o relato da aventura sensual. Os limites das palavras e o limite das formas. Toda a obra de León, poderíamos dizer, é uma exploração dos limites do que é possivel dizer mediante as formas ou mediante as palavras. Uma invenção de palavras novas, de alfabetos inéditos que nos propõe aprender, alfabetos de linhas amarradas, desviadas, enroladas; linhas ordenadas nessa textura, nessa trama de ritmos, no sussurro visual da Grisalha.

Certa vez León me disse que “se por acaso você tem que se exilar, faça isso no Brasil, lá o exílio é melhor”. Essas palavras guardam muitos dados da relação particular que ele teve com o Brasil. Aqui encontrou amigos artistas, aqui recuperou o sentido experimental da arte; aqui voltou a ler os livros sagrados; aqui realizou uma obra monumental; aqui encontrou, apesar da dor do exílio, o sentido da felicidade.

A obra de León Ferrari conta hoje com um forte e crescente reconhecimento internacional. O Leão de Ouro que recebeu na Bienal de Veneza, em 2007, representa um dos tributos máximos. Sua obra se expõe nos principais museus do mundo e é disputada por coleções públicas e privadas. Mas não são estes os aspectos que marcam seu legado: este está na obra que León realizou durante 55 anos de vida junto a sua família, seus amigos, as causas que sempre apoiou e a arte. Sua obra representa uma mensagem aberta ao passado, ao presente e às gerações futuras. León, como poucos artistas conseguem, faz uma revisão do passado e da complexidade do presente, por meio de obras que nos colocam, ao observá-las, frente a uma turbulenta e inesgotável beleza.


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