Tadeu Chiarelli tem uma capacidade rara de conciliar investigação histórica e contato direto com a produção artística contemporânea, ao que se soma uma intensa atividade no circuito expositivo e acadêmico. Uma ilustração precisa desse movimento pendular e amplo é o lançamento pelo autor de dois livros apenas aparentemente distintos, em um intervalo de menos de um mês. No dia 26 de novembro, foi lançada na Martins Fontes da Avenida Paulista, “Apropriações”, uma ampla coletânea de textos publicados por ele entre os anos de 1980 e 2020, em torno de uma questão fundamental da arte contemporânea: o uso incontornável de imagens de segunda geração na produção artística. Houve uma mesa de conversa, com a participação de Lilia Schwarcz e Mariano Klautau Filho. Menos de um mês depois, no dia 19 de dezembro, o pesquisador retorna à mesma livraria para lançar a reedição de “Arte Brasileira”, obra do crítico oitocentista Luiz Gonzaga Duque Estrada (1863-1911) há 30 anos redescoberta em edição preparada por Chiarelli e que agora retorna com novo prefácio, notas complementares e uma extensa lista bibliográfica de trabalhos que passaram a incorporar a obra do crítico e escritor carioca. A obra marca o início de uma nova coleção de arte, intitulada “É Preciso afastar a Noite”. Em entrevista à Arte!Brasileiros, Chiarelli fala desses projetos editoriais, frutos de esforços coletivos, analisa a atual conjuntura da cena artística brasileira e defende uma postura ampla e conectada entre diferentes tempos históricos e campos de ação. “Você é crítico de arte porque você é historiador da arte, e você é historiador da arte porque você é crítico de arte”, sintetiza ele, parafraseando seus mestres Annateresa Fabris e Walter Zanini.

arte!✱ – É uma coincidência esse lançamento quase simultâneo de dois livros que abarcam dois de seus principais focos de interesse? Um olho na história e outro na arte contemporânea? 

Tadeu Chiarelli – Eles têm trajetórias diferentes. Neste ano de 2025 está completando 30 anos daquela nossa primeira edição de “Arte Brasileira”, com português atualizado, notas e texto de apresentação. No final da pandemia, eu e os editores Maria Elisa Meirelles e Vande Rotta Gomide estávamos conversando sobre criar uma nova coleção de arte e eles demonstraram o desejo de que o primeiro volume fosse o livro de Gonzaga Duque, editado por eles em 1995, esgotado desde 2003 e que marcou a história da arte. Antes da primeira publicação, o livro era muito raro, tinha dois exemplares em São Paulo, eu acho que dois ou três no Rio. À medida que isso foi republicado, todo mundo teve acesso e surgiu uma série de estudos que foram desenvolvidos a partir daí. Eu e Eliane Pinheiro fizemos aquela bibliografia tendo como parâmetro todas as obras que foram produzidas a partir de 1995.
“Apropriações” é outra história. Fazia muitos anos que tinha publicado aquele livro “Arte Internacional Brasileira”. Albano Afonso e Sandra Cinto sempre insistiam para que eu republicasse. Não queria fazer uma reedição, mas achava importante reunir algumas coisas ligadas à questão da apropriação, das imagens de segunda geração, juntando os muitos textos que dizem respeito à fotografia e à imagem fotográfica. Ao invés de fazer blocos ou capítulos, cheguei à conclusão que talvez fosse importante colocá-los em ordem cronológica, divididos por décadas, para que o leitor fosse percebendo as mudanças de raciocínio. Ficou mais orgânico.

arte!✱ – Noções como apropriação, citacionismo constituem uma chave-mestra para pensar a produção contemporânea. Essas ideias, que estão na base do ‘Apropriações’, se desdobraram na sua atuação acadêmica e na formação de outros pesquisadores – por exemplo, com a criação do grupo de estudos dedicado à arte e fotografia?

Tadeu Chiarelli – É claro que sim. Há uma coincidência aí. Foram de fato as minhas preocupações sobre apropriação que levaram à constituição do grupo Arte&Fotografia, em 2004. Ele ajudou a estruturar um momento de aprofundamento teórico, importante para muita gente e sobretudo para mim.

arte!✱ – Pensando em termos longos, temos um livro que lida com essa ideia de primeiro modernismo, lá no século 19, e outro que acompanha a cena atual. Você se recusa a ser só um historiador da arte ou só um crítico de arte?

Tadeu Chiarelli – Tem a ver com a minha formação e a grande importância de duas figuras: Walter Zanini e Annateresa Fabris. E eu acho que isso vem muito de uma tradição italiana, muito relacionada com o Argan. Eles sempre falavam: “Você é crítico de arte porque você é historiador da arte, e você é historiador da arte porque você é crítico de arte”. Então esse trânsito entre, no mínimo, esses dois períodos – a passagem do 19 para o 20 e do 20 para o 21 – é o que me caracteriza. Toda a minha formação acadêmica – mestrado, doutorado, livre-docência –, está voltada para a questão do modernismo do início do século 20. Já minha prática como curador, como crítico, está muito ligada a essa produção contemporânea. O Zanini trabalhava com videoarte e a formação dele era em arte medieval! Um dado interessante: fui me interessar em estudar a questão do “retorno à ordem”, que é o que vai fundamentar o meu doutorado, a partir da produção do Paulo Pasta.

arte!✱ – E de certa forma, pelo que você diz, Gonzaga Duque também faz isso. O que te encanta nele é essa modernidade que destoa dos dois caminhos mais naturais, entre um entusiasmo progressista e uma crítica da realidade?

Tadeu Chiarelli – Essa dualidade nele me mobilizou muito. Ele é um crítico, mas se sente obrigado a recuperar toda a história da arte do Brasil para conseguir pensar seus contemporâneos. É o mesmo movimento.

arte!✱ – “Faz bem mais de uma década que não surge um manual de história da arte no Brasil”, diz você em texto de 2002 sobre a obra de Sandra Cinto. Alguma perspectiva de sanar essa lacuna?

Tadeu Chiarelli – Naquele texto, eu estava me referindo ao livro do Zanini, que hoje é impossível encontrar. Custa uma fortuna! Não sei se você está sabendo, era para ter sido lançado este ano e foi adiado para março do ano que vem, o primeiro volume de uma série de estudos sobre arte brasileira, que a editora BEI está fazendo e que de alguma maneira vai tentar recuperar isso. O primeiro volume vai de 1889 a 1930, o segundo vai de 1931 a 1964, e o outro de 1965 a 1988… enfim. Para esse primeiro volume, o Rafael Cardoso, que foi o editor, me pediu um texto sobre o Gonzaga Duque. Foi muito interessante retomá-lo nesse momento em que estava escrevendo esse prefácio, para entendê-lo já como um modernista. Ele vai enfatizar muito a figura do Helios Seelinger, para ele o grande artista moderno, que faz parte da primeira geração dos modernistas de São Paulo e sumiu da história, foi cancelado. Eu também estou revisando essa questão da história da arte do início do século 20 a partir dessas considerações que eu venho trabalhando hoje.

arte!✱ – Vamos falar da série “É Preciso afastar a noite”? Vocês já têm novos títulos programados?

Tadeu Chiarelli – Não preciso te dizer que esse título foi pensado nos finalmente da pandemia e do governo Bolsonaro. Ele marca um lugar também, né? Estamos pensando assim: o segundo volume da coleção será uma coletânea de estudos recentes sobre o Monumento às Bandeiras, sobre Brecheret. E o terceiro volume seria uma coletânea de ensaios sobre o Gonzaga Duque, a partir de um curso muito legal que organizamos em torno dele. Participaram colegas de várias regiões do Brasil (Santa Maria, do Rio de Janeiro, São Luiz do Maranhão, Campinas…), por meio das palestras online. Tem muitas ideias novas aí!

arte!✱ – Em seu prefácio, você o coloca como um dos grandes autores que falam de arte no Brasil oitocentista, ao lado de Manuel de Araújo Porto-Alegre, Félix Ferreira e Angelo Agostini. Poderia explicar a importância deles?

Tadeu Chiarelli – Araújo Porto-Alegre é um intelectual ligado a uma academia, a Imperial de Belas Artes, mas dentro de uma facção brasileira, que não é a facção portuguesa nem a francesa. Eles acabavam se digladiando, porque os franceses diziam que a arte no Brasil começava com a chegada da Missão Francesa. Vai ser Porto-Alegre, que atua na passagem da primeira para a segunda metade do século 19, quem vai dizer que não, que tudo começa lá atrás, no período colonial. Essa moçada que chega depois – Agostini, Félix Ferreira e Gonzaga Duque – vai ter uma atitude mais ativista, que eu acho que não existia no Araújo Porto-Alegre, no sentido de intervir no debate artístico do final do século 19. Afinal, o livro do Gonzaga Duque é de 1888, ano da libertação dos escravizados e um ano antes da República. O do Félix Ferreira os textos do Agostini (mesmo não se configurando como um livro) também são deste mesmo período. A impressão que tenho é que, para aquele ambiente carioca, as artes visuais também eram um item importante na projeção de um Brasil Novo. Tem algo interessante aí. Além do Félix Ferreira, que falava em fazer gravura popular como forma de ajudar a divulgar a arte brasileira, tem uma tentativa de intervenção no circuito, o próprio Gonzaga Duque vai escrever “Revoluções Brasileiras”, no qual cria uma genealogia que começa com o Quilombo de Palmares! Tanto este livro como “Arte Brasileira” estão dentro desse mesmo viés de intervenção. E tradicionalmente os estudos sobre a inteligenzia brasileira no final do século 19 não contemplam isso, abordam apenas a literatura ou aquela sociologia que estava meio se iniciando e ponto final. Os autores não falam do Gonzaga Duque porque não conhecem o trabalho. Ele é visto como um escritor, um romancista e um poeta simbolista. Isso é uma hipótese minha. O Félix Ferreira, como não pertencia a nenhuma igrejinha, ele fica completamente desconhecido até o lançamento do nosso livro. Tinha colegas meus, especialistas em século 19, que nunca tinham ouvido falar dele. Isso é um dado importante de apagamento.

arte!✱ – Agora voltando para o “Apropriações”, que resume essa visão da imagem como centro da produção contemporânea, dos artistas considerados não serem mais criadores de obras e sim “editores”, que é central na sua trajetória. Isso chega para você como? E por que vira algo tão importante na sua crítica?

Tadeu Chiarelli – Nessa época, eu já estava na ECA e estudava muito com a Annateresa Fabris, que deixava os alunos, os estudantes, muito a par do que ocorria na arte contemporânea. Eu estudava fotografia do século 19 com ela e a gente tinha esse contato com a produção contemporânea. A partir daí eu fui me interessando por essa produção (transvanguarda, neoexpressionismo…) e comecei a perceber na produção brasileira alguns artistas que caminhavam por essas vertentes. Essa questão de revisitar o museu, mas não revisitar no sentido literal, mas via imagens, por exemplo. Entre eles estava um grande amigo, o Paulo Pasta. Isso tudo foi me levando a me aprofundar nos estudos sobre apropriação de imagens na Europa, sobretudo na Itália, e a tentar perceber no Brasil a emersão desse tipo de produção. Tem muitos críticos, não só no Brasil, que falam que isso foi uma moda, que isso foi mais um movimento que tentaram impor. Acho que não. Passados 30 ou 40 anos dessa primeira explosão, hoje em dia você não escapa mais.

arte!✱ – E a gente conhece a história da arte inclusive por meio das reproduções das obras…

Tadeu Chiarelli – Sem contar esse aspecto que você está levantando. Aí é uma outra seara, essa constatação de que os artistas lidam com as imagens que estão nos catálogos, nas revistas, na internet… Nós críticos, nós, público em geral, também fomos formados por essas imagens de segunda geração. Me lembro quando ainda morava em Ribeirão Preto e meu pai começou a colecionar para mim “Gênios da pintura”, uma publicação da Abril Cultural! Me abriu, como abriu para muita gente da minha geração, esse contato com as obras. Isso deveria ser mais estudado.

arte!✱ – Vamos falar um pouco sobre a cena contemporânea? Julio Plaza certa vez definiu as vocações de cada década. Os anos 1950 teriam sido, por exemplo, dos artistas e das poéticas. Os anos 1960 do objeto, os anos 1970 da crítica. De 2000 para a frente dominam empresários e patrocinadores, o que parece persistir até os dias atuais. Como você vê o cenário hoje?

Tadeu Chiarelli – Hoje em dia você tem o fortalecimento muito grande do colecionismo. Porém, se fossem só os colecionadores, os problemas não seriam tão graves porque os colecionadores sempre estiveram na base do circuito de arte. O que eu acho mais grave é que hoje é considerado arte aquilo que está nas galerias. Mais do que o poder dos colecionadores, você tem o poder das galerias. E aí dançou.

arte!✱ – O critério é invertido. Alguma luz no fim do túnel?

Tadeu Chiarelli – Exatamente, tudo vai se tornando cada vez mais engessado. Nosso problema, dos críticos, intelectuais, é tentar criar espaços de discussão, de resistência e manter uma certa noção daquilo que a arte pode ser. Porque eu acho que para o mercado isso não interessa. O que cair na rede é peixe, não se discute, só se referenda qualquer coisa. Cabe a nós tentar filtrar essa produção. Esse sempre foi, aliás, o papel da crítica. E agora as coisas se tornam ainda mais prementes, porque o crítico também se tornou funcionário da galeria.

arte!✱ – Aliás, essa ideia de peneira está presente na origem etimológica da palavra. Existe crítica ainda hoje no Brasil?

Tadeu Chiarelli – Acho que em alguns setores você tem um pensamento crítico ainda sendo elaborado, mas no circuitão você tem funcionários do mercado. Isso é muito difícil. Mesmo quando você quer ter uma dimensão mais crítica daquilo que está vendo, o próprio fato de o texto ser publicado num catálogo comercial já faz com que ele seja instrumentalizado, que já haja uma incorporação imediata daquilo que é falado, mesmo quando você coloca dúvidas. Enfim, acho que as artes visuais foram angariando uma dimensão permissiva – a partir dos anos 1960, 1970 – que a fragilizaram muito, em vários aspectos. É uma situação que também estamos passando no campo da literatura hoje.

arte!✱ – Falando em literatura, como você vê a polêmica em torno das declarações da professora Aurora Bernardini sobre a primazia do conteúdo sobre a forma? É possível traçar um paralelo com as artes visuais?

Tadeu Chiarelli – É aí que a gente tinha que chegar. Penso que é nosso papel. Acho que ela radicaliza um pouco, sobretudo no caso de alguns autores. Não sei você, mas “Torto Arado” foi um dos melhores romances que eu li nos últimos tempos. Tem uma dimensão psicológica, uma qualidade de texto que é maravilhoso que exista. Agora, ele é exceção e não a regra. Nosso papel é tentar ver dentro dessa nova geração, desses artistas que estão surgindo agora, aqueles que conseguem traduzir para o âmbito da arte as grandes questões da atualidade. Estava lendo há algum tempo uma entrevista da Rosana Paulino e ela dizia: “olha, a diáspora é uma questão. Mas eu não sou uma historiadora, sou uma artista”. Acho muito legal essa clareza de posicionamento. É preciso saber traduzir para o meu âmbito essa discussão.

arte!✱ – Temos um desaparecimento da crítica e consequente encolhimento do pensamento sobre arte. Como seguir nesse cenário?

Tadeu Chiarelli – Tive contato com Denis Moreira, que tem um trabalho incrível e já está na Bienal, com trabalhos com o coletivo Vilanismo. Conseguiu resolver plasticamente como discutir a questão da ancestralidade africana, com uma contribuição muito original, dialogando com a geração anterior, representada por artistas como a Rosana Paulino e o Sidney Oliveira, não usando mecanismos literais, mas muito colado à visualidade. Isso me empolga. Consegui o telefone dele, fui visitá-lo e escrevi 23 laudas sobre ele. Publiquei na Ars, revista do departamento de Artes Visuais. Se a gente acredita que as estruturas da visualidade têm força, temos que sair à procura.

arte!✱ – É interessante notar sua leitura ao longo do tempo em relação à obra de artistas fundamentais, como Rosangela Rennó, a quem você definiu para sempre como uma “fotógrafa que não fotografa”. Impossível não lembrar do trabalho que ela apresentou por ocasião da Rio 92, em torno dos assassinatos perpetrados pela polícia. Esse trabalho é de uma atualidade impressionante diante dos recentes massacres na mesma cidade.

Tadeu Chiarelli – O trabalho dela perpassa o meu trabalho. Há três artistas e amigos que são pilares do meu olhar: ela, Paulo Pasta e Ana Maria Tavares. Seu trabalho sempre ilumina, é documento de uma época, mas tem também essa atualidade. Não está fazendo narrativa pela narrativa.

arte!✱Fale um pouco sobre sua experiência institucional, como gestor em instituições como MAM, MAC e Pinacoteca e também na universidade.

Tadeu Chiarelli – Acho que foi fundamental, por acreditar em patrimônio público. Esse é também meu lado mais acadêmico. Sim, meu compromisso sempre foi com o acervo em primeiro lugar. Tem a ver com meu compromisso como professor universitário, devolvendo aquilo que recebi. A forma de fortalecer a instituição é antes de tudo seu acervo. Talvez essa concepção esteja muito antiquada.
Quando sai da Pinacoteca, me dei conta de que precisava dar aula em algum lugar. Retornei como professor sênior, retomei as orientações, não parei, e voltei a trabalhar com as disciplinas da pós-graduação. Isso me ajuda a me entender como pessoa. Sempre escrevo pensando nos meus estudantes. É o que me define.


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