Conversamos com Anne Louyot, diplomata especializada em relações culturais internacionais. Formada em Ciência Política, História da Arte e Línguas Orientais, ela iniciou sua carreira nas embaixadas da França no Brasil (1992-1995) e na Rússia, em Moscou (1995-1998) antes de assumir a direção do Fundo de Apoio à Diversidade Cultural do Ministério da Europa e dos Assuntos Exteriores (MEAE) da França. Anne também atuou como comissária-geral do Ano da França no Brasil em 2009 e da Temporada França-Colômbia em 2017.

Arte!Brasileiros participa desde maio de 2025 da Temporada França-Brasil, uma iniciativa dos governos de ambos países através dos ministérios da cultura e das embaixadas, especialmente do Instituto Guimarães Rosa do lado brasileiro, e do Institut Français, presidido por Eva Nguyen Binh, da França.

Entendemos que esta iniciativa teve uma grande importância para a cultura brasileira como um todo, num momento de tensões políticas internacionais e de disputas eleitorais que só desmerecem a oportunidade de firmar os laços culturais que já existem entre os países e criar novas oportunidades de conhecimento junto aos jovens, do ponto de vista cultural, econômico e social.

A seguir transcrevemos a conversa que, na oportunidade do encerramento de parte da Temporada, no Teatro Municipal de São Paulo, onde se apresentou a ópera-balé Les Indes Galantes, de Jean Philippe Rameau e Louis Fuzelier, tivemos com Anne Louyot sobre suas expectativas e impressões.

Anne Louyot
Anne Louyot no encerramento da temporada em São Paulo, no Teatro Municipal, na ocasião da apresentação da Ópera-Ballet “Les Indes Galantes” de Jean-Philippe Rameau. Foto: Patricia Rousseaux

arte!✱ – Como você sentiu a participação da França e a do Brasil, na sua estadia aqui, perante as expectativas que teve na França?

Anne Louyot – Eu acho que realmente a resposta dos nossos parceiros brasileiros às vezes superou nossas expectativas, porque houve um grande interesse deles pelas grandes prioridades da temporada. Claro, a questão do clima, o meio ambiente, a questão da democracia, os direitos humanos, a questão da diversidade cultural e da relação com a África. Acho que essas prioridades são também as prioridades da jovem geração brasileira e dos brasileiros comprometidos na reflexão sobre o futuro, não só da relação franco-brasileira, mas também do futuro do planeta, não?

Eu acho que não foi sempre fácil, porque o diálogo intercultural não é fácil. Às vezes tivemos que nos entender sobre os termos, os objetivos. Às vezes havia um pouco de falta de confiança, porque somos um país do norte. Claro que há tensões também entre a União Europeia e a América do Sul, mas, finalmente, apesar do contexto geopolítico muito tenso, acho que conseguimos realmente fortalecer a relação entre as duas sociedades civis, no que diz respeito a essas três grandes polaridades. E hoje eu estou muito feliz porque vejo que alguns dos projetos mais importantes vão continuar. Por exemplo o Fórum Juventude e Democracia no Festival Convergências que abriu a temporada em Brasília no mês de agosto.

arte!✱ – Surgiu alguma proposta de continuidade?

Anne Louyot – Especificamente as organizações que fizeram parte deste fórum, me propuseram continuar. A associação Convergências da França e o Coletivo Mawê e a Universidade Afrolatinas em Brasília, que organizaram o Fórum Juventude e Democracia concluíram, “bom, agora é que começou o trabalho”. Foi um encontro entre 40 jovens brasileiros selecionados pelo coletivo Mawê e a Universidade Afrolatinas e 40 jovens franceses selecionados pela ONG que se chama Convergências, na França. São jovens, não são estudantes, são pessoas já engajadas em ações cidadãs, coletivos, ONGs e iniciativas da sociedade civil. Esses jovens se encontraram, trabalharam online durante seis meses e se encontraram no mês de agosto em Brasília. Agora, eles querem continuar a trabalhar juntos.

Porém, voltando à questão do balanço geral, realmente eu estou muito satisfeita com o resultado e acho que os parceiros brasileiros, tanto institucionais como sobretudo da sociedade civil, acolheram muito bem essas prioridades e aproveitaram das oportunidades que oferecemos de parcerias com organizações francesas. Eu estou muito feliz com isso. Foi muito bom do ponto de vista, por exemplo cultural, das instituições culturais, das universidades, dos centros de pesquisa e também das organizações sociais. Trabalhamos muito bem com a CUFA, Central Única das Favelas, então o balanço geral é muito, muito positivo. Agora temos que trabalhar para que essas iniciativas possam continuar.

arte!✱ – Como podemos pensar em continuar esses encontros e a necessidade de aprofundar nosso relacionamento?

Anne Louyot – Para mim, a temporada nunca foi só uma adição de eventos. Não era minha proposta, não era nem o espírito, nem a lógica dessa temporada. O objetivo era diversificar o conhecimento da França, das culturas francesas pelo público brasileiro e abrir novas oportunidades de parceria e cooperação entre a França e o Brasil. Por exemplo, no que diz respeito à música, houve, claro, concertos, mas sobretudo houve parcerias entre festivais. Um exemplo que eu gosto muito, na música o Festival Psica 2025, que desenvolveu uma parceria muito bonita com um centro cultural e teatro, que se chama Tropiques Atrium na Martinica, Fort -de-France, para apresentar grandes nomes da música da Martinica no Brasil e que acontecerá dos dias 12 a 14 de dezembro em Belém. Essa parceria vai continuar. Eles ficaram muito felizes com essa parceria e vão continuar. Tropiques Atrium quer acolher propostas musicais do norte do Brasil e continuar a mandar artistas da Martinica para o Brasil, como é o caso do Borispercus, que é um grande percussionista martiniquês. Então, é um pouco isso. Uma proposta que buscou enriquecer as experiencias de cada lado.

O Fórum de abertura, o Fórum Juventude e Democracia vai seguir. O objetivo desse fórum é de continuar a estruturar propostas conjuntas da juventude francesa e da juventude brasileira para fortalecer a democracia. Gostaríamos de fazer a próxima edição na França mais ou menos em setembro de 2026, mas precisamos que o Brasil pense e construa apoios para poder participar. Eu posso falar em nome da França, mas não posso falar em nome da parte brasileira.

Eu sei que a ministra Margareth Menezes ficou muito feliz quando ela abriu o Fórum Democracia e Juventude e que ficou muito interessada nessa iniciativa.

arte!✱ – No próximo ano teremos eleições no Brasil. Não sei se o novo governo terá a mesma visão de construir laços culturais sólidos com outros países, mas, em todo caso, já se criou na sociedade e na juventude brasileira um bom objetivo.

Anne Louyot – Sim. A Funarte também. Eu tive uma excelente relação com a Maria Marighella (presidente da Funarte), então, acho que tem um interesse da parte do governo brasileiro. Eu sei que, claro, vai ser organizado o seguimento do lado França e Brasil, o Ministério da Cultura e o Institut Français, claro, em Paris e sobretudo a Embaixada da França e os consulados da França aqui no Brasil, com quem organizamos essa temporada que vão acompanhar o seguimentos desses projetos então, acho que uma nova edição do fórum, com certeza podemos esperar. Tem que ter também o apoio do lado brasileiro. Por exemplo, é obvio que o Fórum Convergências França-Brasil, que se reuniu em Brasília, com o apoio do Instituto Frances, o coletivo Mawê e a Universidade Afrolatinas que chegou a reunir mais de 80 jovens, debatendo em grupos de trabalho temas como igualdade de gênero, combate a desinformação, democracia e cultura, empreendedorismo social e solidário, vai continuar.

Outro evento que vai continuar é o Fórum Conexões Amazônicas, que foi organizado no final de agosto em Belém e que era um encontro entre franceses e brasileiros sobre a biodiversidade na Amazônia. Participaram em particular cientistas da Guiana Francesa. Então é uma cooperação franco brasileira em solo Amazônico e que quem organizou também do lado francês e brasileiro foi o Centro da Biodiversidade Amazônica, o CFBBA.

arte!✱ – O Museu Goeldi teve alguma participação?

Anne Louyot – Claro, uma participação muito importante. O museu Goeldi acolheu esse Fórum, Conexões Amazônicas, e eu já sei que o Centro Franco-Brasileiro da Biodiversidade Amazônica e o museu Goeldi querem continuar, vai ter uma segunda edição desse fórum Conexões Amazônicas em 2026. Isso só do lado científico.

Outro evento muito importante é o Diálogo com a África que aconteceu em Salvador, que foi aberto pelo presidente Emmanuel Macron e a Ministra Margareth Menezes. Esse fórum foi muito importante porque era a primeira vez que ocorria uma iniciativa estruturada para conectar a juventude africana, brasileira e francesa, com uma participação importante do estado da Bahia e da Prefeitura de Salvador e, do nosso lado, o Instituto Francês e vários parceiros africanos. Há muito interesse também em continuar este encontro. Foi montada uma curadoria independente, do lado francês Zara Fournier, do Institut Français, do lado africano a Lylly Houngnihin, do Benin, e a Glória dos Santos, da Universidade de Salvador, do lado brasileiro.

Então, eu falei do Fórum Democracia e Juventude, do Fórum Conexões Amazônicas, que são duas iniciativas que vão continuar e no que diz respeito ao Fórum Nosso Futuro, que foi aberto pelo presidente Macron tem também muita chance de continuar e prolongar novos encontros.

A curadora Beninense, Lylly Houngnihin por exemplo, está muito interessada em organizar um encontro, talvez menor, porque neste caso em Salvador foi um evento muito grande, lá em Cotonou, em Benim, para continuar esses intercâmbios que aconteceram lá em Salvador.

arte!✱ – Ela tem uma força incrível. Eu a entrevistei e achei excepcional a maneira em que se coloca perante o futuro.

Anne Louyot – Sim, exatamente, ela tem uma postura muito forte, porque é muito lúcida sobre os obstáculos, o legado muito dolorido da escravidão, da colonização, da exploração. Mas ela acha que devemos atuar juntos e não nos deixar concentrar só em questões de acusações, de cobranças do passado.

arte!✱ – Estas iniciativas e encontros são fundamentais porque mostram como o apagamento foi uma iniciativa em vários países. De dez anos pra cá, tem havido um claro surgimento de escritoras negras e escritores negros, editoras publicando, artistas posicionando-se no sentido de chamar a sociedade para juntos irem em frente, porque a cobrança desse passado, que é algo latente, tem que ser trabalhada.

Anne Louyot – Sim, tem que cobrar o passado, tem que reconhecer, tem que assumir isso, com certeza isso é uma base, mas uma vez que isso aconteceu, temos que ir para a frente e a Lylly quer fazer isso, ela acha que não podemos nos limitar, porque senão isso reduz o protagonismo, especialmente dos países da África. Ela acha que temos que trabalhar juntos, os países africanos, o Brasil e a França.

arte!✱ – Então ela está pensando em organizar a sequência do Festival Nosso Futuro em Benim?

Anne Louyot – Do Festival Nosso Futuro, Brasil-França Diálogos com África, em Benim. Ela tem pelo menos essa ideia. Esperamos que possa acontecer, mas a proposta, com certeza ela tem, e tenho certeza que ela vai ter o apoio do Institut Français por parte da França e, seria maravilhoso ter o apoio do Brasil para que algum grupo brasileiro possa se associar a esta ideia.

Então, estes são exemplos já mais ou menos estruturados, mas existem também outras propostas já que muitos jovens se encontraram. Eu falei com os jovens da Martinica que queriam convidar brasileiros para ir à Martinica, com os jovens de Saint-Ouen, que queriam convidar brasileiros lá no subúrbio de Paris.

Há várias possibilidades de novos encontros. Por exemplo, a Christiane Taubira-Delannon, que é a ex-Ministra da Justiça da França e que foi uma das grandes personalidades do Fórum, pode perfeitamente incentivar a continuação desses encontros. Tem muitas possibilidades, não só uma possibilidade, mas várias possibilidades.

Para o Festival Nosso Futuro, eu poderia citar outros eventos, por exemplo, a exposição sobre a coleção de Édouard Glissant.

arte!✱ – Agora acontece um seminário muito interessante no Instituto Tomie Ohtake para dar sequência a exposição “A terra, o fogo, a água e os ventos, por um Museu da Errância com Edouard Glissant”, sobre a coleção que, como diz sua convocatória propõe o debate de “um museu em movimento, não fundado na fixação de uma origem mas nas relações entre historias, geografias e linguagens que se trocam e se transformam”. Vamos acompanhar esse seminário também para escutar aquilo que apoiamos aqui na arte!brasileiros que, como mídia, há quinze anos que trabalhamos intensamente nos debates da cultura contemporânea, e somos um lugar concentrado na difusão dessas ideias. Temos todos os anos um seminário internacional junto à revista. O último foi um amplo debate nacional e internacional sobre os movimentos das lutas anti-hegemônicas nos espaços de construção de conhecimento. Então, algo que nos interessa é como esta temporada abriu um debate internacional, daí a importância para o Brasil de manter esse relacionamento.

Anne Louyot – Acho que nossos objetivos são muito parecidos e as temporadas têm esse objetivo de luta contra os hegemonismos.

arte!✱ – Sim, contra os hegemonismo, e há muitos movimentos tentando voltar atrás, há muitos retrocessos.

Anne Louyot – Sim, exatamente por isso a temporada do ponto de vista político, tem a ver também com o desejo expresso pelo presidente Lula quando ele foi para Paris de reativar os princípios do multilateralismo, porque o multilateralismo sofre muito hoje em dia, a ONU está impedida de atuar porque os grandes poderes bloqueiam a capacidade de decisão da ONU.

Então, é muito complicado e precisamos mobilizar as sociedades civis para que elas possam incentivar essa retomada de um diálogo internacional.

Temos que pelo menos criar algum lugar novo de discussão, e eu acho que compete à sociedade civil. Por isso o debate de ideias é muito importante. E por isso, na temporada, como é o caso de arte!brasileiros, exatamente com o mesmo objetivo de criar lugares, oportunidades de debates para compartilhar nossas posições, nossos objetivos, temos objetivos diferentes entre o Brasil e a França, isso temos que reconhecer, temos histórias diferentes, economias diferentes, posições geoestratégicas diferentes. Mas somos países que querem ficar independentes dos grandes poderes, somos pacíficos, democráticos. Lutamos contra as discriminações e queremos promover justamente a possibilidade de uma cultura diversa. Então compartilhamos muitos objetivos entre o Brasil e a França. A França tem uma diversidade também cultural e de populações muito parecida ao Brasil. Então acho que temos que trabalhar juntos.


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