“O trabalho de Debret não se limita a refletir sobre sua época. Ao contrário, Debret interroga seu tempo ao estabelecer dois ateliês distintos, nos quais produz dois tipos de obras absolutamente diversas”, escreve o pesquisador francês Jacques Leenhardt no livro Rever Debret, publicado neste ano pela Editora 34. O autor se refere ao fato do artista Jean-Baptiste Debret ter chegado ao Brasil em 1816 como parte da Missão Artística Francesa. Sua função era atender encomendas governamentais como pintor da corte luso-portuguesa. No entanto, ao mesmo tempo que realizava essas pinturas no seu “ateliê da corte”, ele também registrava o dia a dia da população do Rio de Janeiro, com desenhos que mostravam a vida de portugueses, indígenas e africanos escravizados. Para estes trabalhos, o artista se sentava na calçada enquanto assistia ao nascimento de uma nação no seu “ateliê da rua”.

O livro de Lennhardt foi o ponto de partida para a exposição Debret em questão – olhares contemporâneos, em cartaz no Museu do Ipiranga, na qual o francês divide a curadoria com a brasileira Gabriela Longman. A mostra propõe um diálogo entre as gravuras de Debret, amplamente divulgadas no Brasil, e releituras críticas de 20 artistas contemporâneos.

“Ao que tudo indica, suas pranchas litográficas marcaram de maneira profunda o imaginário do início do século XXI: são elas, e não outras, as imagens que diversos artistas da jovem geração brasileira retomam, a fim de invertê-las”, aponta o pesquisador na publicação.

As gravuras de Debret são velhas conhecidas dos brasileiros – seja em livros didáticos ou estampadas em camisetas, calendários e até mesmo na abertura da novela Escrava Isaura (TV Globo, 1976). A intenção dos curadores aqui é recolocar essas imagens em debate, já que, por muitas vezes, elas chegavam desvinculadas do contexto crítico original.
Ao retornar a Paris, Debret dedicou-se ao livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, impresso entre 1834 e 1839. A publicação reúne cerca de 200 gravuras feitas pelo artista em território brasileiro. Ao contrário das representações da época, Debret assumiu um olhar atento às contradições sociais: registrou a organização urbana, as relações entre diferentes grupos e a centralidade do trabalho forçado na economia imperial.
Leenhardt ressalta que os textos escritos por Debret para acompanhar as imagens da Viagem “procuram explicar como se organizam, na cidade brasileira, as relações entre as camadas sociais separadas pela exclusão dos ‘selvagens’ e a marginalização dos trabalhadores escravizados”. Essa dimensão crítica foi se esvaindo ao longo do século 20, quando suas imagens foram reproduzidas massivamente sem o contexto original. Essa descontextualização suavizou a violência representada e reforçou visões idealizadas do passado colonial.

A exposição está organizada em duas partes. Na primeira, há 35 pranchas litográficas provenientes do livro de Debret. Então, na sequência, o visitante se depara com as releituras contemporâneas. Para a curadora Gabriela Longman, a escolha desses artistas se baseou, primeiramente, em artistas que tivessem uma relação direta com Debret. Alguns trabalhos já eram conhecidos da dupla curatorial, outros foram descobertos durante o processo. Somados a isso, estão duas obras inéditas de Rosana Paulino e Jaime Lauriano, feitas especialmente para a exposição.

Longman explica que apesar de Paulino nunca ter trabalhado com Debret antes, as questões presentes na exposição dialogavam fortemente com a sua pesquisa. Assim, ela foi convidada para criar uma obra inédita. O resultado é Paraíso Tropical, um tríptico que tensiona a ideia de Brasil idílico perpetuada desde o século 19, contrapondo imagens e palavras para revelar o outro lado dessa narrativa: um território marcado pelo extrativismo.

Jaime Lauriano, por sua vez, já havia apresentado uma instalação em Paris para uma versão mais sucinta desta mesma mostra, exposta na Maison de l’Amérique Latine, em Paris, entre abril e outubro deste ano em decorrência da Temporada França-Brasil. Para a versão brasileira, ele foi convidado a fazer uma criação inédita. Na instalação Brasil através do espelho, o artista amplia sua investigação em temas como etnocídio, apropriação cultural e democracia racial, estabelecendo pontes entre o passado e o presente. Lauriano também apresenta a série fotográfica Justiça e Barbárie, composta por imagens de violência que circulam nos meios de comunicação, especialmente imagens de homens negros sendo linchados.

Em seu livro, Leenhardt afirma que, se sobrevive como trauma, a história “diz respeito a toda a comunidade, exige ser atualizada, e portanto, trabalhada”, e cabe ao artista “reconfigurar o imaginário traumático engendrado pelas violências e extrair o veneno que ele contém”. É nesse horizonte que se insere a produção de Gê Viana, cuja obra parte da necessidade de reescrever imagens que marcaram a visualidade do período colonial. Em Sentem para jantar, sua releitura de O jantar, Viana elimina os personagens brancos e coloca no centro da cena uma família afro-brasileira, ocupando um espaço antes organizado por relações explícitas de dominação. A composição sugere harmonia, mas é atravessada por anacronismos, como a c riança que segura um celular ao lado de uma cadeira modernista.

O conjunto contemporâneo inclui ainda obras de artistas como Dalton Paula, Denilson Baniwa, Isabel Löfgren & Patricia Goùvea, Eustáquio Neves, Sandra Gamarra e Tiago Sant’Ana, que abordam temas como violência, apagamento, resistência e pertencimento. Outro destaque é a sala dedicada ao desfile da Acadêmicos do Salgueiro em 1959, inspirado em Debret e registrado pelo fotógrafo Marcel Gautherot.


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