"Não estudei nenhum instrumento, mas acho que basta gostar de música para apoiar os artistas e frequentar seus espaços", afirmou Sabine na edição 9 da CULTURA!Brasileiros. Foto: Diego Rousseaux

Em 1989, a alemã Sabine Lovatelli foi laureada com a Ordem do Rio Branco, a maior honraria concedida pelo governo brasileiro. A paixão de Sabine por nosso País foi consequência de outra longeva história de amor, nascida de seu encontro, na Europa, com o empresário Carlo Lovatelli, seu companheiro há 45 anos. O casal se conheceu na terra natal de Sabine em 1971, mesmo ano em que a bela jovem de olhos azuis – nascida em Iena e criada em Hannover, com estadas em Paris e Londres – decidiu aceitar o convite de Carlo para vir morar no Brasil e fazer dele sua segunda pátria.

Dez anos depois, Sabine deu início ao projeto sociocultural que rendeu a ela a prestigiosa comenda, uma aventura que partiu de outro amor incondicional de sua vida, a música clássica. Ao lado do amigo Claude Sanguszko, Sabine fundou, em 1981, o Mozarteum Brasileiro, instituição paulistana que já trouxe ao País mais de 50 das melhores orquestras do mundo, realizou mais de mil concertos e contribui para a formação e a visibilidade de músicos locais, por meio de bolsas de estudo e intercâmbios internacionais. Além disso, organizando eventos gratuitos, como os que fez por 15 anos no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e ainda faz no Parque Ibirapuera, ela também luta para desmistificar a ideia de que a música erudita é uma expressão artística destinada à elite socioeconômica.

Em 2012, Sabine expandiu a atuação do Mozarteum para o litoral sul da Bahia, com a criação do Festival Música em Trancoso. Desde então, levou um sem-número de grandes talentos da música clássica e da música popular ao idílico distrito de Porto Seguro. Dessa forma, também contribui para triplicar a circulação de pessoas no vilarejo de oito mil habitantes, com a presença de 20 a 25 mil turistas que prestigiam o evento e movimentam a economia local.

Na conversa a seguir, carregada de um delicioso sotaque alemão e realizada em seu apartamento no bairro do Jardins, em São Paulo, Sabine faz reflexões sobre a importância da música para a formação do ser humano, fala das alegrias e das adversidades que estiveram em seu caminho nos últimos 35 anos e também lamenta a perda do cantor Al Jarreau, que seria um dos destaques da sexta edição do Festival Música em Trancoso.

O evento terá início no dia 18 deste mês, com um concerto noturno que reunirá a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, sinfônica recém-criada pela instituição, e o Coro Acadêmico Yurlov da Rússia.

CULTURA!Brasileiros – Como se deu a criação do Mozarteum Brasileiro?
Sabine Lovatelli – Como sempre gostei de música clássica e frequentei muitos eventos musicais na Europa, eu achava que no Brasil havia pouco espaço para essa música. Não estudei nenhum instrumento, mas acho que basta gostar de música para apoiar os artistas e frequentar seus espaços e, então, pensei: “Acho que posso ajudar e criar algo que também fará com que eu me sinta mais parte do Brasil”. Como a música erudita veio sobretudo de países de língua alemã, tive acesso fácil às pessoas. Começamos o Mozarteum em 1981, abrindo com a Cleveland Orchestra e o maestro americano Lorin Maazel.

Nesses primeiros concertos houve também a participação de músicos brasileiros?
Trouxemos mais músicos de fora, mas já no primeiro ano começamos a fazer os Concertos do Meio-Dia, uma série de apresentações no vão livre do Masp, que durou 15 anos. Criamos, assim, uma série especial para os músicos brasileiros, em que o público de São Paulo podia ouvir boa música, de graça, no Masp. Quando fiz o Mozarteum, minha ideia era também criar algo para a cidade, levando em consideração que isso tinha de ser feito ainda mais para a juventude. O ensino de música no Brasil não é intensivo. Não temos muitas escolas, professores. Para o músico daqui se profissionalizar é um sacrifício só. No Brasil, a música clássica sempre foi tratada como uma arte elitista, o que demonstra a falta de cultura das pessoas. As coisas que ninguém sabe são sempre só para os outros, não é? Mas a música clássica não é só para a elite. Ela é uma base de informação, uma base de estudos. Depois o músico faz jazz, faz bossa nova, faz o que quiser.

Por que os Concertos do Meio-Dia chegaram ao fim?
Porque teve início uma grande reforma no museu ao mesmo tempo que o Banco Francês e Brasileiro fechou. Eles foram nosso principal patrocinador durante todos esses anos. Então, perdemos, de uma só vez, o espaço e o apoiador. Mas acho que o projeto foi muito bom. Abriu muitos caminhos para jovens músicos e também para o público de São Paulo.

Em 1985, o Mozarteum começou a promover concertos no Parque Ibirapuera, oferecendo, desde en­­­­­tão, mais de 50 apresentações gra­tuitas de algumas das melhores orquestras do mundo. Como surgiu a ideia?
Fizemos o primeiro concerto com o Bernard Haitink e a Concertgebouw Orchestra (maestro e orquestra holandeses). Foi a primeira vez que fizemos um evento ao ar livre. Depois tivemos um concerto com Zubin Mehta e a New York Philarmonic, para um público de milhares de pessoas, um mar de gente. O palco ficava na Praça da Paz e o público ultrapassava o lago, ia até o fundo do Ibirapuera. Esse concerto foi gravado e a New York costuma mostrar esse vídeo como um exemplo de como tem de ser feito um concerto ao ar livre. Toda vez que vem a São Paulo, Zubin (atualmente, o maestro indiano dirige a Orquestra Sinfônica de Israel) quer voltar a tocar no Ibirapuera. São Paulo cresceu muito culturalmente. Nesse início, tudo era sempre como um happening.

Essa informalidade facilitou a con­solidação do Mozarteum?
Sim. Tudo era mais leve, feito na base da confiança e da amizade. Tive também a sorte de ser convidada para participar das reuniões do European Conferences for Symphonies Orchestras. As conferências reuniam o top ten da Europa, orquestras como Berlin Philarmonic e Munich Philarmonic. Nas reuniões com os managers, falávamos sobre programas, salários de músicos, boas turnês. Eu era a outsider que eles poderiam evitar, mas esses managers me ajudaram muito durante anos. Hoje as organizações e a burocracia são muito maiores. Lá atrás existia uma certa dinâmica no modo de agir e decidir.

Ao longo desses 35 anos do Mozarteum, como foi possível dri­blar as instabilidades políticas e econômicas do País?
Nossos programas são feitos sempre três anos antes de acontecerem e é impossível saber o que virá pela frente. Depois, na hora em que a crise chega, a gente tem de se virar e correr atrás de dinheiro. Acho que sempre consegui fazer com que o Mozarteum tivesse um bom nome porque honramos com nossos compromissos. Se eu digo para os músicos de uma orquestra que daqui a três anos eles virão para o Brasil, eles têm certeza de que virão. Nosso maior capital é que as pessoas acreditam na gente.

E como foi idealizado o festival Música em Trancoso?
Reunimos um grupo de amigos que queria fazer algo pelo lugar. Telefonei para músicos da Berlin Philarmonic, as Irmãs Labèque (duo de pianistas francesas, formado por Katia e Marielle Labèque), vários solistas, e disse: “Vamos fazer em Trancoso um novo evento, pode ser um fracasso total, mas o lugar é muito bonito e garanto que valerá a pena participar do teste”. Já nos primeiros anos trouxemos ótimos artistas e, desde o começo, também pensei em ajudar os jovens e colocá-los ao lado desses músicos internacionais, para criarem ligações. Os músicos têm masterclasses todos os dias, com acesso livre a gente de renome, que sabe ensinar a técnica instrumental, mas que também dá dicas de vida, de como enfrentar certos momentos. No ano passado, anunciamos a formação de uma orquestra jovem na Internet, e logo havia mais de 400 inscritos. A Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro será formada por 85 jovens, todos bolsistas.

Na contramão dessas iniciativas, vemos agora, por exemplo, o fim da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo. Uma decisão como essa não deixa a impressão de que, para o poder público, música clássica é algo supérfluo?
Nossos políticos não entendem a música clássica. Como eu disse, isso demonstra falta de cultura de quem trata arte como lazer. Gente que não entende a diferença entre o que o ser humano é e o que ele poderia ser. Infelizmente, é isso que a gente sente diariamente, de Brasília para os estados e municípios. A cultura é a base do desenvolvimento do homem. Sem cultura, a humanidade não anda.

Considerar música clássica algo elitista não é também menosprezar a capacidade humana? Afinal, a música lida com algo universal, a sensibilidade…
O fato de não termos nas escolas públicas do Brasil esporte, música e arte em geral é um escândalo. Onde é que essas crianças vão aprender a ter empatia, a achar as coisas bonitas? Se você pega um desses criminosos que estão hoje na rua, é óbvio que o coitado teve uma vida difícil, que não teve acesso a nada. Entrando na história dessas pessoas você vai sentir pena, porque perceberá que elas perderam a vida. E essas questões têm de ser direcionadas para o governo, o grande responsável por isso.

Que outras ações são realizadas em Trancoso, além do festival?
Temos em julho uma semana de canto lírico (o projeto Academia Canto em Trancoso), quando escolhemos 50 alunos entre centenas de inscritos de todo o Brasil. Eles ganham uma bolsa para ficar oito dias em Trancoso ao lado de professores internacionais. No final, fazemos um concerto aberto e geralmente damos cinco ou seis bolsas de estudo na Europa. Esses alunos dizem que realmente deram um grande passo em suas carreiras. Dos que vão para a Europa, alguns conseguem emprego e ficam por lá. A Josy (a mezzo-soprano Josy Santos), por exemplo, está estudando na Ópera de Stuttgart. Nossa intenção é essa, ajudar a internacionalizar os músicos daqui. Em novembro deste ano, teremos a Orquestra Sinfônica de Bucareste e, depois, faremos uma festa de Natal para as crianças de Trancoso, com um coral e músicos locais. Além disso, sempre que possível alugamos o teatro. Ivete Sangalo, por exemplo, gravou lá um DVD fantástico. Isso ajuda a resolver as questões de manutenção do espaço.

Na edição do ano retrasado, entrevistei Cesar Camargo Mariano e ele falou, com muita alegria, sobre a relação de troca e o fascínio que a música brasileira desperta nos estrangeiros…
A parceria com Cesar nasceu quando bolei o programa do primeiro ano. Como eu ainda não sabia do que o público ia gostar, para experimentar, fizemos uma noite diferente da outra. Começamos a misturar música de câmara com bossa nova, com jazz. Faltava um dia para fechar a programação e pensei: “Por que não fazer uma jam-session entre os músicos clássicos e os populares e ver no que dá?”. Dos clássicos, muitos disseram: “Não podemos fazer isso, porque não improvisamos, fazemos tudo conforme está escrito”. Cesar, que é um ótimo músico, disse: “Fique tranquila. Vou separar uns compassos e, quando se sentirem à vontade, eles vão sair com os solos”. Eles ficaram encantados com a ideia e um clarinetista lançou o primeiro solo. Todo mundo se divertiu e se soltou, quando ele quebrou o gelo, e daí nasceu uma grande amizade entre eles.

Como foi lidar com a perda do Al Jarreau, que seria um dos destaques do festival deste ano?
Foi muito duro. Uma semana antes de ele morrer eu já sabia que ele estava no hospital, mas não imaginava que isso pudesse acontecer. A repercussão que houve no mundo todo comprova que Al deixou um legado importante para a música. Ele transformou a forma como a voz pode ser ouvida no jazz. Dias antes de partir, ele deu uma entrevista muito boa e falou de seu interesse pela bossa nova. Quando músicos como ele dizem isso, percebo o quanto precisamos reafirmar a importância da música brasileira. Assim que soubemos que ele estava doente e que não poderia vir, tivemos de repensar tudo, porque fizemos boa parte do programa em função da presença dele. Encontrei um grupo excelente, o Vocal Six, formado por seis cantores suecos que vão fazer metade da programação à capela, o forte deles, e a segunda metade com orquestra. Acho que o público vai adorar. Tem coisas de Michael Jackson, Abba, Queen e canções consagradas pelo Al Jarreau.

Como são desenvolvidas as pesquisas para definir as programações do Mozarteum e do festival Música em Trancoso?
Vou a muitos eventos de música. Agora, por exemplo, vou para o Festival de Salzburg, e também vou ver a Filarmônica de Hamburgo. Com isso, encontro pessoas que também gostam de música clássica. Ouço muitas sugestões, porque há muita coisa acontecendo na Europa e nos Estados Unidos e a gente não tem como ficar a par de tudo. Sigo muitos conselhos.

E como são definidas as atrações de música popular?
Meu grande maestro é o Cesar. Como ele não virá neste ano, eu fiz a programação. Teremos o Gershwin Piano Quartet e o quarteto de Oscar Peterson, que era meu grande amigo, com Gary Clayton, que o substitui ao piano, e os músicos que tocavam com Oscar. A apresentação deles vai ser linda. Oscar compôs músicas que tocou pouco, mas que tinham significado especial para ele, e que recentemente foram recuperadas pelo quarteto em um CD.

Que balanço pode ser feito dos 35 anos do Mozarteum e, até aqui, das cinco edições do festival?
O Mozarteum é reconhecido dentro e fora do País, e acho que a gente abriu portas e novos caminhos para os músicos. Com isso, ajudamos a elevar o nível da música erudita por aqui e estamos conseguindo fazer com que mais pessoas se interessem por ela e se ocupem dessa coisa inteligente, que abre horizontes e, como falamos antes, ajuda a construir uma vida melhor. O que me entristece é ver que os esforços dos músicos brasileiros são pouco honrados por nossos políticos. Essa frustração sempre me leva a pensar: onde podemos ajudar?

Como se sente ao encarar esse e outros desafios?
Quando fizemos a primeira edição do Música em Trancoso, perguntei às pessoas do que elas tinham gostado e o que mais ouvi foi: “Tudo”. Por isso, mantivemos essa programação tão misturada. Trancoso é um lugar pequeno, tem oito mil habitantes e esse número triplica durante a semana do festival. François, nosso arquiteto (o luxemburguês François Valentiny, autor do projeto do Teatro L’Occitane, principal palco do festival, que também ocorre em espaços públicos), vai ao festival e diz que quando passeia na praia todo mundo o cumprimenta. Isso me deixa feliz, porque percebo que as pessoas se acham corresponsáveis pelo evento. Uma vez saímos de um restaurante, tínhamos que atravessar o Quadrado (ponto central de Trancoso), e lá estavam três celistas ensaiando à meia-noite. Ficamos observando aquela música linda embaixo de um céu de estrelas e, pouco depois, chegaram um violinista, um músico da noite da bossa nova e vários outros. Quando chegou a turma do batuque, do samba de Trancoso, eles fizeram uma espécie de happening, uma música espontânea que não acontece em nenhum outro lugar. Isso é fantástico!


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