Maio de 1968. A revista francesa Le Nouvel Observateur publica uma matéria que entraria para a história: o filósofo Jean-Paul Sartre entrevistando o então estudante Daniel Cohn-Bendit. Numa clara inversão de papeis, era o mestre que indagava ao aluno, de 23 anos, o que ele pensava sobre os rumos do país. A famosa entrevista diz muito sobre aqueles dias, quando os jovens ocupavam as ruas de Paris, questionando a tradição e propondo que “a força do movimento é que ele se apoia numa espontaneidade incontrolável”, como defendia Cohn-Bendit.
Esse sentimento de intensidade, de quem testemunha algo único na história, é um dos temas principais de No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles. O longa-metragem, que ainda não tem data de estreia, marca o retorno do cineasta às telas depois de um hiato de dez anos – seu último trabalho lançado foi Santiago, em 2007. Exibido no festival de Berlim e recentemente no É Tudo Verdade, o filme reflete sobre a construção das utopias e seus descaminhos. Como ponto de partida, o cineasta se valeu de um acervo particular: as imagens que sua mãe, Eliza Gonçalves, produziu durante uma visita à China em 1966, no início da Revolução Cultural.
Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, o diretor conta que encontrou o material enquanto editava Santiago. “Quando estava terminando o filme, senti falta de incluir imagens da minha família. Pedi que procurassem no acervo do meu pai e me mandaram uma caixa com um pouco de tudo: registros de aniversários, férias, viagens. E nessa caixa, havia um rolo de 16 milímetros, que não era um suporte usual para filmes caseiros”. O olhar estrangeiro de sua mãe foi uma boa surpresa. “Eu não conhecia as imagens e quando as vi pela primeira vez fiquei bastante tocado, elas me deram certa concretude daquilo que durante tantos anos eu a ouvi falar. Eu vi os registros dos guardas vermelhos, a muralha, os posters do Mao Tsé-tung, estava tudo lá”, afirma.
Salles não incluiu o material em Santiago e o armazenou por dois anos até começar a idealizar o novo trabalho. Em No Intenso Agora, as imagens produzidas por sua mãe se alternam com registros de Maio de 68, da Primavera de Praga e da ditadura militar brasileira. A voz em primeira pessoa do diretor narra o filme, estabelecendo a ligação entre as sequências. “Relacionar as imagens da minha mãe com as de 68 é um pouco o mistério do filme, para algumas pessoas ele funciona, para outras não. A ligação de fato não é evidente”, afirma.
Para o diretor, o que realmente une as duas experiências é o sentimento de plenitude. “No caso de minha mãe, ela tinha uma alegria de estar em um lugar totalmente diferente, conversando com pessoas que vinham de um mundo que ela não podia conceber. Ela se maravilha com isso. Já na França de 68, é uma paixão política, a ideia de fazer parte de um coletivo que caminha em direção à igualdade. Essa sensação de estar por inteiro em alguma coisa é o que tornou possível estabelecer esses paralelos entre a viagem de minha mãe, que evidentemente não foi motivada por razões políticas, e os movimentos de 1968, movidos pelo desejo de mudar o mundo”.
Em uma das primeiras cenas do documentário, um trabalhador francês fala sobre a greve de 1967, a maior da França até então: “Os operários perceberam que o essencial era a dignidade de cada um, serem homens realmente e não apenas consumidores. Não existirem apenas, mas viverem”. A fala já revela bastante do espírito que presidiria o ano seguinte. Segundo o historiador Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo, os movimentos de 68 foram uma consequência do crescimento econômico do pós-guerra. “Nas sociedades como a europeia e americana, houve uma melhoria dos padrões de vida que trouxe à tona outras reivindicações associadas à ideia da utopia, do sonho mesmo”, afirma.
Ao longo do filme, aparecem muitas imagens de estudantes rindo durante essas intensas e rápidas três semanas que, futuramente, muitos lembrariam como os melhores momentos de suas vidas. No entanto, o diretor também revela outro lado, o que o curador do É Tudo Verdade, Amir Labaki, chama de “ressaca pós-utópica”. “Qualquer paixão, seja erótica ou política, transforma-se em outra coisa, passa e perde a intensidade. A partir de então, a questão que se coloca é: como voltar a viver no cotidiano banal? Muitas pessoas que participaram dos movimentos de 68 seguiram em frente, não ficaram presas à nostalgia daquele período. Outras não conseguiram. É o caso da minha mãe, que foi muito feliz por um período e depois não teve mais capacidade de sustentar isso”, afirma Salles.
O longa-metragem não revela que a mãe do cineasta se suicidou em 1988. Porém, as referências à morte são muitas. Uma das sequências mais impactantes mostra o funeral do estudante tcheco Jan Palach, que se matou logo após os tanques soviéticos invadirem o país, encerrando o governo progressista de Alexander Dubček. Inúmeras pessoas compareceram ao enterro para se despedir não só do estudante, mas de um projeto de país que fora totalmente arruinado. O escritor e ex-presidente tcheco Václav Havel comenta o incidente: “A morte de Palach, que teria sido inexplicável em outro momento, foi perfeitamente compreendida por toda a sociedade. Porque essa morte foi uma expressão limite do nosso estado de alma”.
Mesmo ocupando um espaço menor no longa-metragem, as imagens da Primavera de Praga, e sua posterior repressão, têm grande importância na narrativa. São registros de cineastas amadores que filmam rápido, em um afã por testemunhar a história. Diferentemente das imagens de Paris, nestas há uma atmosfera de medo, uma cautela por parte dos observadores que parecem temer a repressão. Para Salles, esse material talvez seja a “maior revelação do filme”.
O diretor defende que a invasão da Tchecoslováquia foi a “pá de cal” dos sonhos da geração de 68, que via no país um caminho possível para o socialismo. “Ao contrário do Maio Francês, ali as pessoas testemunharam o seu país ser destruído. A verdade é que, com a entrada dos tanques, caiu o pano dos sonhos daquela geração, não havia mais modelos a seguir. E aí começa a tristeza”, afirma.
Desconfie das imagens
No Intenso Agora também é um filme sobre as imagens. Como um historiador que olha para um documento, Salles analisa milimetricamente o material que tem diante de si. Com seu olhar treinado, ele percebe as várias nuances que existem em uma foto. Cita como referência dois grandes nomes do cinema brasileiro: Eduardo Coutinho, a quem o filme é dedicado, e Eduardo Escorel, que é o montador do longa-metragem. “Eles me ensinaram a desconfiar das imagens”, afirma.
Ao longo do documentário, Salles congela várias cenas, procurando os vestígios, as pistas que elas carregam sobre o seu tempo. “Quem merece estar na imagem? Essa é uma questão essencial. No Brasil, por exemplo, a empregada doméstica está sempre de fora das fotos da família. A imagem se organiza da mesma maneira como as classes sociais; isso é um ponto central de No Intenso Agora”.
No caso de Maio de 1968, Salles afirma que é possível perceber que o protagonismo do movimento ainda permaneceu com os homens brancos. “Você olha para as imagens e vê, por exemplo, que os negros nunca ocupam o centro do quadro, estão sempre nas bordas. Ou que as mulheres ficam muito mais caladas, são os homens que falam”.Para poder enxergar essas nuances, Salles conta que é preciso passar muito tempo olhando para as imagens até “tornar-se íntimo delas”. O filme nasceu assim na ilha de edição, de uma vontade do diretor de analisar esse material de arquivo, que trata de uma história coletiva, mas também da sua própria.
Para tratar desse ponto de vista íntimo, Salles adotou a primeira pessoa do singular, recurso que já empregara em Santiago. O cineasta afirma que, nos últimos anos, se interessa cada vez por filmes que chama de intransferíveis: “São obras que só podem sair da sensibilidade de um indivíduo, aquele que os fez. Nesse sentido, a primeira pessoa do singular não é inevitável, mas ela se oferece de maneira sedutora”. Por isso, ele acredita que seus dois últimos trabalhos se destacam perante os demais, que não têm tons biográficos. “Não é que eu rejeite os filmes anteriores, mas tanto Santiago quanto No Intenso Agora têm um aspecto interessante por serem uma extensão de mim mesmo. Isso dá uma força a eles que gosto de encontrar em outras produções”.
A primeira pessoa é um recurso comum em muitos documentários recentes. Indagado se essa atitude seria um contraponto à busca de uma objetividade inalcançável, o cineasta responde: “Acredito que não devemos abrir mão da ideia de verdade; um mundo do puro relativismo em que qualquer versão tenha o estatuto de verdade, é um mundo perigosíssimo. Vivemos esse risco hoje. Minha posição, como cineasta, é apresentar as circunstâncias sob as quais produzo minha obra. O público precisa entender de onde você está falando, quais são condições, todas elas: de raça, gênero, classe e etc”.
Amparado nas forças das imagens, No Intenso Agora é um filme sobre o sonho de um mundo mais justo. Impossível sair do cinema sem pensar no presente. Salles garante que esse é o intuito: que as pessoas reflitam sobre a política contemporânea. Ele afirma que é possível traçar paralelos entre o que aconteceu nos anos 1960 e a situação atual. Porém, prefere deixar que as pessoas façam suas próprias associações, não querendo “determinar como elas devem pensar”.
Ainda assim, o diretor comenta os aprendizados que o ano de 1968 trouxe: “A estabilidade do sistema não está garantida. Assim como emergiu o maio francês, vieram a Primavera Árabe, os protestos de 2013 no Brasil, entre outros. Essas coisas acontecem, elas brotam onde não poderíamos imaginar. Maio de 1968 provou que essa anarquia festiva é uma possibilidade sempre à espreita dos regimes que se acham sólidos e estabelecidos”.