José Antônio da Silva no MAC-USP
"Autorretrato pintando" (1958), de José Antônio da Silva. Acervo MAC-USP.

Mais de cem pinturas do artista estão em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP. A mostra José Antônio da Silva: Pintar o Brasil, com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, já passou pelo Museu de Grenoble, na França, como parte da Temporada Brasil-França 2025, e pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. 

São 142 obras de Silva expostas, sendo 119 do acervo do MAC-USP, que reúne trabalhos do artista desde sua fundação e abriga o maior acervo do país de sua obra. Desde 1963, Silva teve 7 mostras individuais e pelo menos 34 coletivas no Museu.

Pérez-Barreiro ressalta que as obras não têm a pretensão de oferecer uma cronologia ou uma retrospectiva do artista, mas sim de explorar os diferentes temas de sua obra e como Silva escolheu retratá-los ao longo das décadas. 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Algodoal com troncos decepados” (1975), de José Antônio da Silva. Coleção Fernanda Feitosa e Heitor Martins. Crédito: Sérgio Guerini.

A mostra está dividida em oito núcleos temáticos que abrangem os principais assuntos do trabalho de Silva: retratos, vida no campo, campos, queimadas, naturezas-mortas, chuvas, cenas religiosas e trabalhos em papel. Segundo Pérez-Barreiro, a organização foi concebida para valorizar a espontaneidade do artista – não fazia sentido abordar sua obra por meio de uma estrutura rígida ou cronológica. “Ele voltava para muitos dos assuntos; poderia fazer uma pintura dos anos 1950 e outra dos anos 1980, e elas dialogam. Ele é um artista muito espontâneo, então queríamos respeitar esse sentido”, afirma.

Suas obras retratam muitas das transformações sociais e urbanas do Brasil do século 20 – a destruição da natureza, o avanço da agricultura e da pecuária no interior de São Paulo, a industrialização do campo com a chegada de ferrovias e indústrias. Com frequência, pintava culturas de algodão, café e cana-de-açúcar, ora enfileiradas até o limite do horizonte, como em Algodoal (1972), ora acompanhadas de trabalhadores rurais, como em Batendo Algodão (1975). 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Batendo Algodão” (1975) de José Antônio da Silva.
Coleção Vilma Eid. Crédito: João Liberato.

Entretanto, Pintar o Brasil busca demonstrar que seu trabalho não se limita ao universo rural: conta com naturezas-mortas, nas quais se observa o traço expressivo, composto por pinceladas rápidas; cenas religiosas, como Entrada de Jerusalém, de 1968; retratos, como o de sua esposa Rosinha (1957), pintado com cores vibrantes e à maneira do pontilhismo; e autorretratos, como Autorretrato”(1973). Nesta obra, o tom irônico e crítico do artista é evidenciado: sobre sua boca, há uma faixa com a inscrição: “Esta boca está amarrada. Foi a Bienal que me amarrou. Vejam”. Suas mãos, também atadas, seguram um pincel onde está escrito em outra faixa: “Liberdade pinto o que gosto e gosto do que pinto”. 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Autorretrato” (1973) de José Antônio da Silva.
Coleção Orandi Momesso. Crédito: Sérgio Guerini.

O MAC-USP conta, ainda, com 23 obras a mais do que as expostas em Grenoble e Porto Alegre, provenientes do acervo da instituição e selecionadas pela professora do Museu e historiadora da arte Fernanda Pitta. Destacam-se os 75 desenhos criados para ilustrar o primeiro livro de Silva, Romance da Minha Vida. Destes, 40 foram publicados na edição do Museu de Arte Moderna em 1949, recém-criado à época, coordenada por Carlos Pinto Alves, um dos sócios-fundadores da instituição. Os outros 35 permaneceram inéditos até agora; a mostra é a primeira em que o conjunto completo é exposto.

“Os desenhos condensam uma poética da memória: Silva narra e ilustra episódios da sua vida, transformando-os , afirma Pitta no livro que acompanha a mostra. Segundo a curadora, as obras não apenas acompanham o texto, mas também “expandem sua dramaticidade”, condensando instantes-limites da narrativa e anunciando o vocabulário plástico que se tornaria recorrente em sua pintura. Em Romance da Minha Vida, Silva é simultaneamente o protagonista e narrador, sujeito e agente de sua própria história, inaugurando uma carreira literária que teria continuidade com títulos como Maria Clara, de 1970, Alice, de 1972, Sou Pintor, Sou Poeta, de 1982, e Fazenda da Boa Esperança, de 1987. 

Também estão expostas outras obras em papel, nanquim e gouache. Entre eles estão Sucuri comendo boi, de 1958, e uma grande composição em nanquim, sem título, de 1950, que representa uma cena de campo em que dois homens conduzem carros de bois. “Procuramos dar destaque à diversidade de suportes da produção de Silva, mais conhecido por suas pinturas em tela, bem como mostrar que, em seus primeiros trabalhos, já se delineiam tanto seu estilo quanto sua poética e temáticas, mostrando um artista consciente de sua prática e interesses”, afirma Pitta. 

José Antônio da Silva
“Sucuri comendo boi” (1958), de José Antônio da Silva.
Acervo MAC-USP.

Pérez-Barreiro aponta que, apesar do estilo de Silva ser consistente ao longo das décadas, seus primeiros trabalhos apresentavam uma resolução formal relativamente simples, com cores mais apagadas e predominância de tons terrosos. A partir da experimentação, Silva passou a incorporar cores mais intensas e uma pincelada mais livre. “A última parte de sua produção, a partir dos anos 1980, mostra que ele tem total controle do pincel e das cores. O Silva pula de um estilo para o outro com absoluta segurança em seu traço”, afirma o curador.

As obras de Silva, também conhecido como “Van Gogh brasileiro”, eram comumente rotuladas como “primitivas” ou “naïf” (ingênuo, em francês) devido ao fato de o artista não possuir formação artística em Belas Artes e à predominância de temas rurais em seus trabalhos. Os curadores rejeitam essa colocação: o artista era consciente de seu valor e de seus recursos formais. “[Ele] reivindicou agência: escreveu, pintou, debateu preços, criou museus e inscreveu-se ao lado de Picasso e Van Gogh como ‘gênio’ moderno”, afirma Pitta. O “popular” em Silva não é repouso folclórico, mas movimento histórico e consciência social”.

O curador Pérez-Barreiro aponta que conhecer um pouco da história de Silva é essencial para entender melhor seus trabalhos. Antes de se consolidar como pintor, o artista exerceu diversos ofícios rurais e passou por situações de pobreza e precariedade. “Ele poderia morar no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no exterior, mas continua morando no interior. É um gesto político, de defesa do valor dessa vida e cultura caipira”. 

Segundo o curador, Silva via-se como um representante apto da arte brasileira. Um exemplo é quando foi excluído da Bienal de São Paulo, em 1957 – a comissão organizadora alegou que seu pontilhismo descartava espontaneidade supostamente apropriada a um artista “primitivo”. Como resposta, pintou a tela Enforcamento, concluída em 1967. Na obra, retrata a si mesmo no centro e, pendurados em uma forca, os cinco críticos que o rejeitaram da Bienal. “Ele afirma que eles não conhecem o Brasil. É um debate muito relevante atualmente sobre quem representa o país e quem pode falar em nome dele. Ele se sentia uma voz marginalizada mas absolutamente autorizada para falar sobre essa realidade”. 

José Antônio da Silva
Maleta de pintura de José Antônio da Silva.

O artista, que com frequência se referia a si mesmo em terceira pessoa, costumava afirmar frases como: “Quem não conhece o Silva? O Silva sou eu. O Silva é a natureza rural” e “A natureza está comigo e eu estou com a natureza. A Natureza é meu Deus e eu sou o Silva”. Sua obra se apropria de vários símbolos nacionais – um exemplo é a sua maleta de pintura, exposta no MAC, decorada com uma bandeira brasileira pintada por ele mesmo. “Se hoje temos um grande debate entre cosmopolitismo e regionalismo, ele já falava dessas coisas no século passado”, pontua Pérez-Barreiro.

Nascido em Sales de Oliveira, no interior de São Paulo, o artista expôs pela primeira vez em São José do Rio Preto, cidade onde residiu até 1973. Sua vida mudou após seus trabalhos, pintados em flanela, chamarem a atenção do júri de um concurso na Casa de Cultura de São José do Rio Preto em 1946. Dois anos depois, estreou sua primeira mostra individual na Galeria Domus, em São Paulo. Foi o início de uma trajetória vertiginosa: ao longo dos próximos anos, expôs em várias mostras por todo o Brasil, em edições da Bienal de São Paulo e, ainda, duas vezes na Bienal de Veneza – em 1966, teve uma Sala Especial dedicada à sua obra.


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