Walnice Nogueira Galvão é uma intelectual como poucos. Seu entusiasmo é contagiante, assim como sua verve crítica, que não poupa ninguém “abaixo” de Proust e Homero, e o humor espirituoso. Discorre com imensa erudição sobre assuntos os mais diversos, de marchinhas de carnaval a reforma agrária – é colaboradora das escolas do MST, para as quais prepara livros de estudos literários. Mas é mesmo na obra de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha que se debruça constantemente, sem perder o interesse, desde sua tese de doutorado na USP, As formas do falso – um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas, de 1970, e a de livre-docência, No calor da hora – a guerra de Canudos nos jornais, em 1972.

Publicaria vários livros sobre os dois autores, em meio a outros de crítica literária ou de pesquisa cultural. Entre eles, a reunião das reportagens feitas por Euclides em Canudos e também um volume com sua correspondência. E agora preparou a edição crítica do novo lançamento de Os Sertões (trabalho este que ela ensina chamar-se “ecdótica”, expressão da Grécia antiga). Na conversa a seguir, ela conta que ficou oito anos reunindo as milhares de correções feitas por Euclides, fala dos conflitos vividos pelo autor diante da tragédia em Canudos e afirma que, se estivesse vivo hoje, o vingador dos jagunços chacinados seria “líder do MST”.

CULTURA!Brasileiros – Reunir e comentar todas as correções feitas por Euclides nas primeiras edições de Os Sertões deve ter dado um trabalho des­­comunal. Como foi isso?
Walnice Nogueira Galvão – Olha, eu não tenho nada de monge medieval (risos), mas eles preparavam edições com anotações e variantes nos mosteiros; passavam a vida inteira fazendo isso. Um por um, à mão! Me agrada muito a ideia de pensar que o que eu fiz com esse livro se localiza nessa linhagem. Fiquei oito anos fazendo esse trabalho.

Que tipo de correções ele fazia?
Ao todo, em vida, ele faz dez mil correções. É um louco, né (risos)? São, sobretudo, correções miúdas. Ele não muda nenhum capítulo, nenhum parágrafo inteiro. Você percebe que ele não está nem um pouco interessado em corrigir informação (embora ele soubesse, depois, que havia ali uma ou outra informação errada); ele está corrigindo estilo. É um artista, não um historiador. Vou te dar um exemplo que parece maluquice: ele percebeu a certa altura que usava excessivamente o particípio passado, o que deixa o texto com muitas palavras terminando em “ado”. Então ficou obsessivamente transformando, rabiscando, cortando os finais em “ado”. Sabe por quê? Porque dava um defeito de estilo chamado eco, que a gente evita até quando fala. Você não diz: eu estou com a mão no coração para fazer uma declaração. É horrível. Outra correção que ele faz muito é de pontuação. Ele cortou umas mil vírgulas, mais ou menos. Implicou também com a palavra “estrada”, pois não tinha estrada nos sertões. Então a maioria das vezes que aparece “estrada” ele troca por um sinônimo: vereda, trilha, picada, caminho. Isso dá uma percepção dos mecanismos do processo criador do Euclides.

Muita gente prefere pular a primeira e segunda partes e ir direto para A Luta, que conta da guerra. O que você acha disso?
A Luta é muito bom, mas a primeira parte, A Terra, é a de que mais gosto, acho de uma beleza extraordinária. Aquilo é uma maravilha! É como se a natureza que ele descreve estivesse dentro dele. Ela não é nem descrita, é vivida com paixão! Ele é um artista visionário.

Como você vê a posição de Os Sertões na literatura nacional?
É estranhíssima, porque é um dos livros mais renegados que já vi e, no entanto, um dos mais influentes. Os modernistas odiavam o Euclides da Cunha. Ele era tudo aquilo contra o que eles pregavam. Essa retórica altissonante, essa demagogia, esses efeitos de estilo, essa escrita caudalosa. Eles queriam o coloquial, o simples, o direto; queriam rebaixar o discurso. No entanto, o que o Euclides fez nos Sertões vai servir ao chamado romance regionalista de 30: um mapeamento dos principais temas da literatura e do pensamento social brasileiro. Ele foi levantar lebres da miséria, do sertão, do jagunço, do cangaceiro, do sertanejo, do coronel, da reforma agrária, do latifúndio, da religiosidade popular, do fanatismo religioso, do subdesenvolvimento, do colonialismo, dos retirantes, da seca. Aí nos anos 1940, o que acontece? Nascem as ciências sociais brasileiras. Que estão até hoje lidando com esses mesmos temas. O Euclides da Cunha vira um precursor da sociologia, da antropologia, da ciência política, das ciências sociais em geral.

E a questão do racismo, tão apontada no livro?
Ah, sim, aí ele se atrapalha, tropeça e cai. Toda vez que ele enfrenta esse tema de frente, envereda por umas teorias estranhíssimas que estudou na Escola Militar, provavelmente a mais avançada em sua época no Brasil, em que predomina o determinismo, o cientificismo e o positivismo. Ele se arma dessa ciência europeia e não percebe que aquilo é uma taxonomia dos recursos do mundo inteiro para que os países imperialistas possam pilhar. E isso inclui as teorias sobre as raças inferiores, que só existe para justificar que o branco europeu pudesse dominar as riquezas das colônias e escravizar seus habitantes. Isso atrapalha o Euclides. Só que quando ele descreve aquilo que viveu na guerra de Canudos, essas teorias não servem. Não tem nenhuma teoria, dessas todas da ciência europeia, que explique para ele onde é que reside a bravura, a coragem e a dignidade que levam aquelas pessoas até a morte para não se entregarem. Não tem! Isso virou o mundo dele de cabeça para baixo, completamente.

O que você acredita que ele estaria fazendo hoje?
Estaria liderando o MST. Gostou (risos)? Que é a consequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta muito dele. Eles têm um assentamento chamado Antonio Conselheiro e outro, em Mato Grosso, chamado Euclides da Cunha. Legal, né?

E o que você achou de A Guerra do Fim do Mundo, do Vargas Llosa, inspirado nos Sertões?
Eu tenho horror (risos)! Os Sertões expressa a consciência dilacerada do Euclides diante daquilo que ele viu. Aquele cara que tinha estudado a mais nova ciência europeia em todos os campos, chega lá e descobre que ela não serve para nada. Então ele se alinha, emocionalmente, ao adversário. Ele fica do lado dos jagunços, torce por eles. E fica horrorizado com o comportamento do exército dele. É um processo para ele extremamente doloroso, cheio de contradições, que ele não consegue resolver até o fim. Por isso que o livro é trágico do jeito que é. E o Vargas Llosa o que faz? Transforma o livro num best-seller. Ou seja, facilita tudo. Retira o conflito, retira as contradições, retira as antíteses, retira figuras de linguagem como o Hércules-Quasímodo e a Troia de Taipa. Fica tudo simples, fácil e bem explicado para o Vargas Llosa. Ele acabou com o livro. Ele devia ter uma tal inveja do Euclides da Cunha que faz uma coisa pior: cria um jornalista míope, que está fazendo a reportagem da guerra e que depois perde os óculos. É um insulto. Retratar o Euclides como um cara que não enxerga? Eu acho isso de uma baixeza que você não imagina.

E o que acha de outras obras que também partiram de Os Sertões?
A melhor de todas é Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, que era outro gênio. Ele mistura Euclides da Cunha com Guimarães Rosa e o José Lins do Rego de Cangaceiros e Pedra Bonita. Transfere, em ficção, a dualidade entre a violência do cangaço e o fanatismo. Não botou o Antonio Conselheiro no filme. Mas vai nas profundezas do livro e pega o fundamento.


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