luiz vilela
Na redação do Jornal da Tarde. São Paulo, 1968. Foto: Arquivo Pessoal

Luiz Vilela é o mineiro arquetípico: escreve quieto, mas o que escreve fala alto. E diz muito, ainda que sempre em poucas palavras. A depuração é uma marca evidente. Antonio Candido chegou a falar na “absoluta pureza de sua linguagem”. Por isso, seu estilo é enganosamente simples. Além do rigor formal, trai nas entrelinhas a formação em filosofia. Há uma aura existencialista nos personagens, sejam eles homens do povo, sejam intelectuais. O banal em suas histórias tem um vago sabor metafísico. Já a solidão é uma presença constante e a morte surge como motivo de angústia, descaso ou riso. Por outro lado, a falta de assunto pode ser matéria de diálogo, assim como o excesso dele parece levar ao silêncio ensimesmado – ou à conversa com um cachorro abandonado. Diálogo, aliás, é, por unanimidade, o ponto forte de Vilela. Suas conversas soam reais a ponto de colocarem o leitor em cena, como ouvinte.

Nascido em Ituiutaba, no último dia de 1942, Vilela começou a escrever aos 13 anos, depois de ver um meteoro atravessar o céu. A casa sempre cheia de livros também foi um grande estímulo. Aos 14 já era publicado no jornal da cidade. Foi morar em Belo Horizonte e depois mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como redator e repórter no Jornal da TardeTremor de Terra foi publicado em 1967, à sua custa, depois de  Vilela ser recusado por várias editoras. O escritor tinha 24 anos. Graficamente modesto, mas literariamente ambicioso, o livro começou ganhando o maior concurso literário brasileiro da época, o Prêmio Nacional de Ficção, desbancando nomes consagrados como Osman Lins e Mário Palmério, o que provocou controvérsia e o tornou conhecido. Tremor foi sempre elogiado, de Stanislaw Ponte Preta a Clarice Lispector, assim como praticamente todos os demais livros do autor, que incluem romances, contos e novelas. Há inúmeras dissertações e teses sobre sua obra, que tem várias traduções no exterior. O Fim de Tudo, quarta de suas antologias de narrativas curtas, ganhou o Jabuti em 1974. A Cabeça, de 2002, foi finalista do Portugal Telecom e aparece em pelo menos duas listas de melhores livros brasileiros na imprensa especializada. O romance Perdição venceu o Pen Clube do Brasil em 2012 e Você Verá, outra seleção de contos, foi agraciada pela Academia Brasileira de Letras, dois anos depois. Algumas de suas histórias foram adaptadas para cinema e também TV, na Rede Minas, Cultura e Globo.

Na conversa a seguir, realizada por e-mail, Vilela se dispôs a responder a  50 questões, para rimar com os 50 anos de Tremor, que agora ganha nova edição, assim como boa parte de sua obra, que vem sendo relançada pela Record. Generoso e bem-humorado, ele fala de quando tropeçou em García Márquez, aborda os temas principais de seus livros, cita trechos elucidadores, conta causos, fala de sua rotina em Ituiutaba, para onde voltou depois de um período nos EUA e na Europa, tenta explicar a arte do diálogo, lembra da amizade com Murilo Rubião e João Antonio e comenta o momento atual da literatura.

CULTURA!Brasileiros – No dia 20 deste mês seu livro de estreia,Tremor de Terra, completa 50 anos. O que isso significa para você?
Luiz Vilela –
 Significa muito, é claro. Sou naturalmente suspeito para falar, mas acho que o Tremor chega aos 50 anos sem uma ruga, sem um fio de cabelo branco. Ou seja, acho que ele não envelheceu nada, que ele conserva o mesmo frescor e o mesmo vigor de quando foi publicado.

E como foi a carreira do livro, que chega agora à décima edição?
Não posso me queixar. Muita coisa boa aconteceu com ele ao longo desse tempo: reedições, contos traduzidos, participação em antologias, inclusão em livros didáticos e listas de vestibular, tema de dissertações de mestrado e de teses de doutorado, adaptações para o cinema e o teatro, quadrinhos, etc. Ultimamente ele foi descoberto por jovens na Internet. Um deles, uma moça, leu-o por indicação de um escritor e fez no seu blog uma resenha a que deu o título de “Tremor de Terrade Luiz Vilela deveria sacudir o País”. Não ambiciono a tanto, mas me daria por satisfeito se ele, como fez até hoje, continuasse a sacudir alguns corações e algumas mentes…

Você escreve com prazer ou escrever é para você um processo penoso?
Escrever é muito difícil, sempre foi e continua sendo, mas é o que eu mais gosto de fazer na vida. Comecei a escrever aos 13 anos e estou com 74. Já são, portanto, mais de 60 anos escrevendo, sem falhar um ano. E não tenho nenhuma intenção de parar. Às vezes conhecidos meus me perguntam na rua se eu continuo escrevendo. Eu respondo que sim e acrescento: “Escrever é a minha cachaça…”

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Em Iowa City, Iowa, EUA, em 1969. Foto: Arquivo Pessoal

Como você chegou a esse estilo enxuto?
À custa de muito trabalho, de escrever e reescrever o texto infinitas vezes. Eu não tenho pressa. Não se pode ter pressa. A pressa, diz o provérbio, é inimiga da perfeição, e perfeição é o que eu busco nos meus escritos.

E esse ouvido apurado para o diálogo?
“Qual é a receita para se escrever um bom diálogo?”, me perguntou uma moça com pretensões a escritora. “Olha”, eu respondi, “eu, que sou mineiro, não sei nem a receita para se fazer um bom pão de queijo, quanto mais a receita para se escrever um bom diálogo.” “Não, mas diga pelo menos alguma coisa”, ela insistiu. “Bem”, eu então disse:“Para se escrever um bom diálogo é preciso, antes de mais nada, entrar na alma dos personagens; sem isso, não é possível escrever um bom diálogo”. “E como eu faço para entrar na alma dos personagens?”, ela perguntou. Eu pensei um pouco, olhei para ela e disse: “Sabe? Eu estou achando que é melhor você procurar a receita do pão de queijo…” Ela riu e mudou de assunto.

Você já tentou a poesia?
Na adolescência, e depois também, eu escrevi alguns poemas, mas nunca pensei em me dedicar à poesia. Num dos poemas, dos 15 anos, eu, que havia passado por alguns problemas de saúde, pergunto à morte: “Até quando serei a caça perseguida, / e nunca pega, / e nunca abandonada?” Em outro poema, da mesma época, quando eu ainda tinha fé religiosa, eu me dirijo a Jesus: “Essas mãos, que todos os dias prego na cruz, / são as mesmas que todos os dias me abençoam.”

E teatro?
Nos meus começos, eu escrevi de tudo. O teatro não poderia faltar, como de fato não faltou. Aos 14 anos escrevi uma peça de duas páginas datilografadas, intitulada Diálogos, com dois personagens, Plácido e Simplício, nomes, penso eu hoje, remanescentes de alguma coisa que li sobre a comédia latina. Plácido é candidato a prefeito e explica a Simplício: “Basta fazer um pouco de marmelada, inventar umas mentiras, conseguir alguns capangas e já se está no poder.” Três meses depois publiquei num  jornal da cidade um pequeno artigo intitulado “Reformar e revigorar a nossa política”. Nele eu dizia: “Suja (a política) porque os políticos, na maioria indivíduos corruptos e corruptores, desvirtuam-na, fazendo dela um palco onde se representam as mais torpes canalhices.” Alguma semelhança, por acaso, com os dias atuais?…

E as crônicas que, aos 15 anos, você mandava semanalmente de Belo Horizonte para o jornal de sua cidade?
Eu gostava muito de escrevê-las e, é claro, de vê-las publicadas. Eram crônicas com qualidade literária, como qualquer um poderá comprovar. Eu lera na época, em jornais, revistas e livros, todos os nossos grandes cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond, Bandeira, Rachel de Queiroz… Fora o prazer da leitura, aprendi muito com eles.

Além da extensão, quais as diferenças entre conto, novela e romance? Você tem preferência por algum deles?
Existem, sim, diferenças entre os três gêneros, mas explicá-las aqui seria demorado e tedioso. Quanto à preferência, eu não tenho. Gosto igualmente dos três e sempre escrevi os três. Para ficar só nos últimos tempos, em 2011 publiquei o romance Perdição, em 2013 a coletânea de contos Você Verá e em 2016 a novela O Filho de Machado de Assis. E a quem interessar possa, informo que o meu próximo livro, já escrito, é um romance.

Eu soube que em sua casa, na infância, havia sempre muitos livros…
É. Todos em casa, meus pais e meus cinco irmãos, gostavam muito de ler, e, assim, havia, como costumo dizer, livros por toda parte. Havia livros até no galinheiro, como já contei uma vez, e não era brincadeira, pois havia mesmo lá, na casinha das galinhas, um velho armário de madeira onde estavam alguns livros. Como foram parar lá, eu não sei, nem, como também já disse, se as galinhas os liam…

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Luiz autografa exemplares de Tremor de Terra no lançamento, em Belo Horizonte, em 1967. Foto: Arquivo Pessoal

Seus pais escreviam?
Não. Eles não tinham pretensões literárias. Mas tinham, isto sim, a preocupação de escrever bem, e escreviam. Os dois tiveram muito boa formação escolar. Meu pai estudou com os padres salesianos em Cachoeiro do Campo e Lorena, formando-se em Agronomia, em Niterói, pela Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária. Minha mãe estudou com as freiras dominicanas em Uberaba, no Colégio Nossa Senhora das Dores, formando-se no curso Normal.

E o curso de Filosofia, como foi?
Eu aprendi muito pouco no curso de Filosofia, e o que aprendi poderia ter aprendido sem fazer o curso, apenas com a leitura dos livros, já que a maior parte dos professores se limitava a repetir o que estava neles. O que mais aprendi de filosofia foi o que eu, desde a adolescência, li por conta própria. Alguns dos filósofos e pensadores que eu então e depois li, como Kierkegaard, Nietzsche e Unamuno, tiveram profunda influência em minha vida e em minha obra.

Como foi o tempo da revista Estória?
Os anos 1960 foram, em Belo Horizonte, um tempo de grande efervescência literária. Além da Estória, que em 2015 completou 50 anos de criação e mereceu uma edição especial do Suplemento Literário de Minas Gerais, que, aliás, surgiu um ano depois da revista, houve também o Texto, outra publicação que eu também criei, com mais dois companheiros, e que no ano passado completou também 50 anos de criação. Texto teve muita repercussão. Na Revista Civilização Brasileira, então a melhor revista de cultura do País e politicamente a mais corajosa, o historiador e crítico Nelson Werneck Sodré dedicou a ele um longo e elogioso comentário.

E o período que você passou nos Estados Unidos?
Eu fui para os Estados Unidos convidado a participar do International Writing Program, um programa que reunia em Iowa City, Iowa, por nove meses, escritores de várias partes do mundo. Eu estava com 25 anos. O programa foi ótimo. Além de conhecer um país estrangeiro e de conviver com escritores de várias nacionalidades, eu dispunha lá de todo o tempo, e pude, assim, terminar o meu primeiro romance, Os Novos, que eu havia começado três anos antes em Belo Horizonte e interrompido quando fui para São Paulo trabalhar no Jornal da Tarde.

Dos Estados Unidos você foi para Dublin, por causa de James Joyce…
Joyce era, e continua a ser, uma de minhas grandes admirações na literatura. No Brasil eu já havia lido quase toda a obra dele, e então, nos Estados Unidos, com o fim do Programa e alguns dólares no bolso,  resolvi conhecer a Europa, e o primeiro lugar que me veio à mente foi Dublin.

Você passou, depois, uma temporada em Barcelona.
Sim, e foi uma temporada muito agradável. Em Barcelona eu comi muita paella a la valenciana, vi o Museu Picasso, as obras do Gaudí e uma corrida de toros com o Antonio Ordóñez. E num fim de tarde em que eu ia passando pelo centro, vi, na porta de uma livraria, um sujeito muito parecido com o García Márquez, que eu sabia estar residindo na cidade. Parei, aproximei-me dele e perguntei: “Éres García Márquez?”. “Sí”, ele respondeu. Aí me apresentei como um escritor brasileiro e batemos um bom papo.

Seus contos, e mesmo as novelas e os romances, parecem às vezes não ter propriamente um final, mas apenas uma interrupção, como se você quisesse eliminar da trama qualquer resquício de artificialidade.
É isso mesmo. Eu fujo do artificial, na literatura e na vida.

Aliás, a trama parece ter menos importância do que os diálogos e as divagações.
Não, a trama não tem menos importância. Trama, diálogos, divagações, tudo tem a mesma importância.

Nas suas histórias o banal ganha dimensões metafísicas.
Dimensões metafísicas talvez seja um pouco exagerado, mas o banal está de fato presente em algumas de minhas histórias. No Perdição, o narrador, a certa altura, diz: “Mas o que não é banal? Tudo é banal: as coisas, as pessoas, a vida… Tudo é banal…”

Há também a dificuldade de comunicação entre os personagens, por mais que eles conversem.
Há, há isso. Sobretudo nos meus três primeiros livros, de contos, o Tremor de Terra, o No Bar e o Tarde da Noite. No conto No Bar, que dá título ao livro, o personagem diz a outro: “Você sabia que a gente só ouve a própria voz? E que eu já chorei por causa disso? E que eu também já ri por causa disso?”

A solidão também é um tema recorrente.
Sim. “Há solidão até nas coisas”, diz Nicolau, o personagem de minha novela O Choro no Travesseiro. Não sem motivo, é Edward Hopper um de meus pintores preferidos. Antes de conhecer as pinturas dele, eu, quando jovem, gostava muito do nosso Pancetti. Gostava e continuo gostando.

A morte…
Com a palavra, mais uma vez, um personagem meu, agora o Walter, do conto Os Mortos que Não Morreram, do Tarde da Noite: “A morte? A morte não interessa. A morte não tem importância. A morte é apenas o fim.”

E os bichos?
Ah, os bichos… Que triste seria a vida sem os bichos, eu disse uma vez e digo novamente aqui. Eu sempre os tive em casa, desde menino: cães, gatos, passarinhos. Mais tarde, quando adquiri um sítio, passei a ter vacas, porcos e cavalos. Eu não poderia, pois, ficar sem escrever sobre os bichos, e lá estão, nas páginas de meus livros, os cachorros Corisco, Bebé e Chicão, o galo Filomeno, o cágado Adalberto, o morcego Jonathan, o urubu Valdivino, a lagartixa Zoiuda… A fauna é variada… E vem mais bicho por aí, no meu próximo livro…

E a religião? No Perdição e em outros livros seus há uma crítica às religiões.Você atualmente tem alguma religião?
Não, não tenho. Meus pais eram católicos e eu fui educado no catolicismo. Fiz a primeira comunhão, estudei em colégio de padres e tudo o mais. No começo da juventude, eu perdi a fé, como então se dizia. Hoje não tenho mais religião nenhuma. Nem religião, nem qualquer espécie de crença em alguma divindade ou na sobrevivência de algo depois da morte.

Por último, o humor…
“Rir é o melhor remédio”, diziam, no título, as páginas de anedotas dos velhos almanaques de farmácia. Ou então Rabelais: “Rions, rions, que le rire est propre de l’homme”.

Seu primeiro romance, Os Novos, foi lançado em 1971 por uma pequena editora, porque outros editores temiam represálias da ditadura. Foi também um livro que dividiu opiniões, já que muita gente de sua geração se viu retratada e não gostou. O que você sentiu quando foi atacado por Os Novos?
Senti o que qualquer autor sentiria quando atacado por um livro seu. Eu não gostei, evidentemente. Mas o que na ocasião me deixou mais chateado foi que os ataques partiram sobretudo das pessoas de quem eu mais esperava compreensão, ou seja, os meus companheiros de turma literária. Anos mais tarde, Wilson Martins, numa de suas colunas de crítica no Jornal doBrasil, lembrou, com razão, que o livro, “segundo se diz, deixou de mau humor não poucos de seus modelos, se não todos.”

E em relação a O Inferno É Aqui Mesmo, que foi taxado de “vingança pessoal” por um colega do Jornal da Tarde?
Eu já disse, e aqui repito pela enésima vez, que meu romance não é uma vingança contra ninguém nem contra nada e que eu guardo de meus tempos no Jornal da Tarde as melhores lembranças. Em 1993, em um número especial sobre escritores e jornalistas mineiros, lançado por ocasião de um evento em Belo Horizonte, a revista IstoÉ, falando a meu respeito, disse que o Inferno “até hoje costuma atormentar seus companheiros da época”. Isso quando já haviam se passado quase 15 anos da publicação do livro. E agora, que já se passaram quase 40, será que há ainda alguém atormentado com ele? Espero que não…

Como você vê a crítica em geral?
A crítica é necessária. Ela faz parte do jogo. Dela já recebi, ao longo de minha trajetória, confetes e pedradas. Mais confetes do que pedradas, mas já recebi os dois e acho que nenhum escritor até hoje recebeu somente um deles.

E os trabalhos acadêmicos sobre a sua obra?
Dos que eu consegui ler até o fim, alguns são razoáveis. Poucos, bem poucos eu chamaria de bons. O que neles particularmente me irrita, quando não me faz rir, é o excesso de interpretações. Eu até já criei uma palavra para isso: interpretose. Interpretam tudo, cada detalhe do texto, e aí, é claro, acabam vendo chifre na cabeça de cavalo. A menos que seja um unicórnio, né?

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Vilela em seu sítio, 1984. Foto: Arquivo Pessoal

Por que os brasileiros, e especialmente os mineiros, são tão bons no gênero conto?
Bem, falando apenas dos mineiros, o que  eu posso dizer é que o mineiro gosta muito de contar histórias. Eu até já escrevi sobre isso para um guia de viagens, o Guia Brasil. Meu texto se intitula exatamente “Contar histórias”. Nele eu menciono uma palestra que fiz em São Paulo, na qual eu disse que, se o mineiro não contar histórias, ele fica doente, e lembro que depois, na Flip de 2004, da qual participei, entrevistado por um repórter da revista de domingo do Financial  Times, fui mais incisivo e disse que, se o mineiro não contar histórias, ele fica doido. Lá está, na revista: “’Mineiros who don’t recount casos go crazy’, he says. ‘Telling stories is our way of exorcising madness.’”

Ainda sobre conto, no ano passado foi comemorado o centenário de nascimento de Murilo Rubião… 
Sim. Embora com uma diferença de idade de mais de 20 anos entre nós, Murilo e eu fomos muito amigos. Por causa do Suplemento Literário, de que foi ele o criador, nos encontramos muitas vezes em Belo Horizonte, quando eu ainda estava lá ou quando eu, depois, lá ia. Sempre atencioso, Murilo foi praticamente a todos os meus lançamentos. Tenho várias fotos em que estamos juntos e algumas cartas dele. De vez em quando ele me mandava também algum bilhete, como este, de 1968, num cartãozinho, cobrando um conto que eu havia prometido para o jornal: “Vilela, velho de guerra, os leitores não podem esperar muito. Muito menos este seu amigo e colega. Fogo na canjica e apareça logo. Abraços. Murilo.” Em 1979, numa edição especial da Manchete, dedicada a Minas, Joel Silveira, escrevendo sobre as “novas gerações culturais” do estado, disse: “Quando, por exemplo, um Roberto Drummond, um Wander Piroli ou um Luiz  Vilela chama Rubião de mestre, o qualificativo é expresso com bom humor, jamais com ironia. Pois mestre Rubião é.”

E os escritores, também mineiros, Roberto Drummond, Oswaldo França Júnior e Wander Piroli? O que você teria a dizer sobre eles?
Principalmente que foram três grandes amigos meus, três grandes amigos que eu perdi e dos quais sinto muito a falta. Os três tinham personalidades bem diferentes, mas eu me dava bem com todos. Temo que, como tantos outros escritores dessa geração que também já morreram, eles hoje quase não sejam mais lidos. É triste, o escritor morre e vem logo o esquecimento…

Outra data lembrada no ano passado foi a dos 20 anos da morte de João Antônio. Vocês se conheceram?
Sim, nos conhecemos e fomos amigos. Nos encontramos a primeira vez em 1968, em São Paulo, quando eu trabalhava no Jornal da Tarde. Depois disso, tivemos vários outros encontros: em São Paulo de novo, no Rio, em Belo Horizonte e até em Ituiutaba, quando, por indicação minha, ele foi convidado para uma feira de livros. Ele veio, almoçou um dia lá em casa (“louvor e gratidão ao tutu e à linguiça de dona Aurora”, disse depois, gentilmente, numa carta) e, como não podia deixar de ser, passamos um fim de tarde jogando sinuca, esporte de que éramos fãs incondicionais e que entrou para os nossos livros. Voltando à tal carta, no final ele escreveu: “Eu continuo na minha romançaria braba e sem jeito. Pretendo morrer assim, companheiro. Depois, naturalmente, de viver uma velhice irresponsável”.  Ele não chegou à velhice, morrendo poucos meses antes de completar 60 anos. “Abraços os mais anarquistas”, terminava a carta, bem ao seu estilo.

E os autores de hoje, você acompanha?
Acompanho as notícias, mas ler os livros é quase impossível. Se eu fosse ler só os que os autores me enviam, já não sobraria tempo para eu fazer mais nada.

Qual é a sua opinião sobre as oficinas de criação literária?
Em resumo, uma oficina não faz um escritor, mas pode, sim, ajudar um escritor a se fazer.

Você já deu muitas palestras ao longo de sua carreira…
Sim, mas palestras no sentido genérico em que se usa hoje essa palavra no meio literário. Só uma vez levei por escrito um texto meu, que li para a plateia. Foi em 1978, no XII Encontro Nacional de Escritores, em Brasília. O texto, “Por que escrevo ficção”, foi mais tarde publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais. Meu mediador na palestra foi o Paulo Rónai. Paulo Rónai, veja só, Paulo Rónai, em cujo livro didático de francês, dele e de Pierre Hawelka, Mon Second Livre, eu, aos 12 anos, na segunda série do curso ginasial, em minha cidade, estudara. E agora ali estava ele ao meu lado, em carne e osso, mediando uma palestra minha… Quanto aos debatedores, um de cada lado da mesa, foram o Antonio Carlos Villaça e o Cyro dos Anjos. O encontro foi gravado e eu conservo em meus arquivos essa preciosa fita. Iniciando sua fala, Villaça, em tom descontraído, diz: “Na última fila, estão lá, conversando baixinho, Murilo Rubião e Samuel Rawet, dois grandes criadores, dois grandes ficcionistas”.  Ouvindo isso hoje, é como se eu estivesse vendo de novo os dois escritores, lá no fundo do auditório. Pois é… Murilo, Rawet, Villaça, Cyro, Rónai, todos já se foram…

Qual é o seu livro preferido?
Não gosto muito desse tipo de pergunta. Mas vá lá… Meu livro preferido é a Bíblia. Isso daria até manchete, hem? “Escritor ateu declara que seu livro preferido é a Bíblia”… Por causa de minha educação católica, eu tive desde muito cedo contato com a Bíblia.  Aos 13 anos, na ânsia de tudo conhecer, eu não só a quis ler, como também ter uma. Juntei então meu dinheirinho e fui ao salão paroquial. Um padre, que já me conhecia do ginásio, me atendeu. Eu disse que queria comprar uma Bíblia. “É para quem?”, ele perguntou. “Para mim”, eu respondi. Ele arregalou os olhos e ficou ali parado, sem saber o que fazer. Então, sem dizer mais nada, foi lá dentro e buscou uma Bíblia. Eu paguei e fui embora, levando comigo a Bíblia, que até hoje tenho.

Você disse numa entrevista que pretendia ler os Sermões Completos do Padre Antonio Vieira. 
Pretendia e pretendo ainda, mas, a essa altura do campeonato, não sei se conseguirei realizar tal intento. Vieira é uma de minhas maiores admirações literárias. Eu o li a primeira vez no ginásio, numa antologia de português. Foi o célebre trecho sobre Santo Inácio de Loyola.  Depois li no Diário, jornal de Belo Horizonte, que meu pai assinava, o sermão do “Bom Ladrão”. Gostei muito e até anotei num caderno algumas frases. Nessa época a Editora das Américas lançou, em vários volumes, a coleção completa dos Sermões. No entusiasmo dos meus 14 anos, pedi a papai que a comprasse.  Ele, sempre comedido nos gastos, e com razão, pois não era rico e tinha seis filhos por educar, não titubeou e, para a minha grande alegria, comprou a coleção. É a coleção que eu tenho e da qual já li alguns volumes.

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Aos 13 anos, na fazenda de seu pai. Foto: Arquivo Pessoal

Antonio Candido disse que a sua força está no diálogo e também na “absoluta pureza de sua linguagem”. Como vai a nossa linguagem escrita?
Mal, muito mal. É um massacre diário. Nos jornais, nas revistas, na publicidade, nos comunicados, nos contratos, nos anúncios, nos avisos, na Internet, em tudo. Um massacre. São erros de concordância, de regência, de vocabulário, fora os cacófatos, os pleonasmos e tudo o mais. Um massacre.

Você ficou incomodado com alguma das várias adaptações feitas de seus contos para o cinema e a televisão? Por outro lado, gostou em particular de alguma?
As adaptações já somam, a essa altura, mais de uma dúzia. As autorizadas, pois há as não autorizadas, que circulam pela Internet. Destas, só de um conto, o Fazendo a Barba, eu já vi três. Quanto às adaptações autorizadas, eu gosto especialmente de duas: Françoise, com a Débora Falabella, e A Cabeça, com a Giulia Gam. Uma adaptação com bons momentos, e as ótimas interpretações de Daniel Dantas, Lília Cabral e Maitê Proença, é Tarde da Noite, dirigida pelo Roberto Farias e levada ao ar pela Globo na série “Brava Gente”.

E adaptações para o teatro?
Houve também algumas. Ainda no ano passado, um grupo de teatro do Rio, o Tábula Rasa, apresentou lá o espetáculo Chuva, uma montagem de cinco contos meus.

O que você achou do Prêmio Nobel de Literatura dado a Bob Dylan?
Eu nunca pensei em ganhar o Prêmio Nobel, mas, depois de vê-lo concedido ao Dylan, fiquei mais animado e já estou até pensando em contratar um professor para me ensinar a tocar guitarra. O que vocês acham?

Outra notícia que ocupou a mídia no fim do ano passado foi a morte de Fidel Castro. Em 1991 você esteve em Cuba como jurado do Premio Casa de las Américas. Você conheceu lá o Fidel?
Sim, conheci. Ao término de nossos trabalhos com o prêmio, fomos convidados para um jantar no Palácio de la Revolución. Fidel, em seu habitual traje militar, nos recebeu na entrada, apertando a mão de cada um, a quem era apresentado por um escritor cubano. Ele não participou do jantar, mas no final, vindo de dentro e acompanhado de guarda-costas, apareceu de novo. De pé, cercado pelas pessoas, ficou mais de uma hora no salão respondendo a todo tipo de pergunta. Então se despediu e voltou, com os guardas-costas, para os seus aposentos. Nós, os escritores e demais convidados, continuamos ainda por algum tempo no salão, batendo papo, bebendo vinho e fumando charuto…

Depois de viver em Belo Horizonte, São Paulo, Iowa City e Barcelona, por que você decidiu voltar para Ituiutaba?
Há sobre isso várias versões: que eu vim no encalço de uma bela mulher, que eu vim por desilusão com o mundo lá fora, que eu vim para me tornar fazendeiro… Antes de me decidir por alguma delas, eu gostaria de ouvir a versão da Bissa, a minha personagem de O Filho de Machado de Assis, para quem o escritor teve uma filha e esta se chamava Carolina…

Como é hoje a sua cidade?
Carros. Carros e mais carros. E motos. Motos e mais motos. Assim é hoje a minha cidade.

E como é o seu cotidiano?
Eu moro atualmente sozinho e passo a maior parte do tempo em casa, escrevendo, lendo, ou cuidando de alguma coisa.

Você participa das redes sociais?
Não, não participo, nem tenho nenhuma intenção de participar. Estar o tempo todo conectado? Que horror…

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Luiz Vilela hoje. Aos 74 anos, está há mais de seis décadas escrevendo. Foto: Arquivo Pessoal

Ituiutaba o prestigia como escritor?
Digamos, mineiramente, que, de um modo geral, mais ou menos, e até certo ponto sim…

Nas informações biográficas de seus livros há uma menção a um meteoro que em 1956 cruzou os céus de sua cidade…
Na verdade foi um meteorito, como vim a saber há pouco tempo, e não um meteoro. Ele foi batizado de Migomaspa, por ter atravessado, num percurso de 800 quilômetros, quatro estados: Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e São Paulo. Num diário meu, dos 13 anos, em 3 de junho de 1956, às 18h25, eu anotei: “Estava penteando o cabelo para ir ao Cine Capitólio, quando minha mãe disse: ‘Luiz, muitas pessoas estão olhando para o céu, que será?’ Saímos eu e ela para vermos o que havia acontecido. Olhamos para o céu e vimos um rolo de fumaça que se ia alongando e afinando, até perder-se de vista. Perguntamos a algumas pessoas que estavam na calçada o que viram. Disseram-nos que tinham visto uma bola de fogo e logo depois o rolo de fumaça. Segundo a opinião do povo e de professores, o fenômeno não passava de um meteoro.”

Qual é o lugar da literatura no século XXI, numa sociedade dominada pela cultura de massa, pelas novas mídias e pela economia de mercado?
Não sei qual é o lugar, mas qualquer que ele seja, grande ou pequeno, ou até mesmo lugar nenhum, eu acho que enquanto existir o homem existirá a literatura. Bem, eu talvez não ache tanto assim, mas não custa, em tempos tão sombrios como os nossos, terminar a entrevista com uma nota de otimismo, não é?


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