Tônia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier, em cena da primeira montagem de 'Navalha na Carne' (1968), de Plínio Marcos. Foto: Reprodução

 

Aguerrida na luta contra a escalada de horror instaurada com o golpe civil-militar de 1964, a estupenda Tônia Carrero, que nos deixou na noite deste sábado (3) aos 95 anos, quando, em meio a uma cirurgia, foi vitimada por uma parada cardíaca, foi também decisiva na defesa da livre expressão do teatro brasileiro.

Na foto acima, na primeira montagem de Navalha na Carne, de Plinio Marcos, interpretando a prostituta Neusa Sueli, Tônia contracena com Nelson Xavier (o cafetão Vado) e Emiliano Queiroz (Veludo, considerado o primeiro personagem gay com profundidade dramática do teatro brasileiro, também empregado do bordel em que Neusa trabalha).

Revelado com a montagem de dois textos não menos arrebatadores, Barrela (1958) e Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966), Plínio, com o ineditismo de sua dramaturgia violenta e marginal, despertava o fascínio de atores, diretores e dramaturgos. Egresso do circo e apadrinhado por Patrícia Galvão, a Pagu, que então residia em Santos (SP), cidade natal do palhaço, ator e dramaturgo, Plínio estava no radar dos críticos teatrais da mesma forma com que era monitorado pelos militares e pelos censores.

A revelação de que Navalha na Carne, dirigida por Fauzi Arap a pedido de Plínio, seria produzida por Tônia, que faria a protagonista, virou motivo de chacota e suspeição. Belíssima e sofisticada, segundo alguns tolos, a atriz teria desempenho inverossímil como uma prostituta segregada no universo sórdido de um bordel.

Poster original da primeira montagem de ‘Navalha na Carne’. FOTO: Reprodução

Depois da estreia paulistana censurada logo nos primeiros dias, proibição confrontada com uma temporada de montagens intimistas organizadas por Cacilda Becker e Walmor Chagas no apartamento do casal, Navalha Na Carne, que na capital paulista foi dirigida por Jairo Arco e Flecha, com Ruthnéa de Moraes (Neusa Sueli), Paulo Villaça (Vado) e Edgard Gurgel Aranha (Veludo), debutou no Rio de Janeiro, em setembro de 1967, no Teatro Maison de France. A insolente montagem, depois transferida para o teatro Gláucio Gil, onde ficou em cartaz até fevereiro de 1968, arrebatou o público e silenciou o ceticismo de quem duvidava da força dramática da atriz.

Com o êxito da temporada carioca, Navalha na Carne percorreria o País, assim planejava Tônia, mas, graças à ostensiva mordaça em torno da obra de Plínio, severamente amplificada depois de 13 de dezembro de 1968 com o advento do AI-5, o espetáculo teve sua itinerância abreviada pela mão de ferro da censura e só voltou a ser encenado em 1980, com direção de Odilon Wagner.

Plínio, como era de se esperar, foi preso naquele ano, nas dependências do 2° Exército, em São Paulo, o mesmo local onde, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi covardemente assassinado e exposto como suicida. Com o apoio de amigos como Tônia e Cassiano Gabus Mendes, então diretor da TV Tupi, que liderou uma campanha em defesa do dramaturgo, Plínio foi libertado, com a condição de acatar a ordem de interdição nacional de todas as suas peças.

Promessa não cumprida, voltou ao xilindró quando, em 26 de maio de 1969, no Teatro Coliseu, pretendia encenar Dois Perdidos Numa Noite Suja. Do presídio de Santos, foi depois transferido para o DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, em Sâo Paulo. Com o apoio de amigos, Maria Della Costa e Tônia na linha de frente, logo foi libertado e novamente orientado a não montar suas peças.

Imposição que o levou, por recomendação dos colegas de ofício, assombrados com os descaminhos do Brasil daqueles dias, a dar continuidade à faceta de ator na TV, onde, no papel de Vittorio, fez sucesso nacional na telenovela Beto Rockfeller.

No site oficial dedicado ao dramaturgo, há um relato de Plínio que dimensiona a coragem de Tônia Carrero. 

“A apresentação da peça, a portas fechadas, seria no Teatro Opinião. O Exército cercou o teatro. Proibiu a apresentação. Tônia Carrero comprou a briga. Levou a apresentação para uma casa vazia que ela tinha no morro de Santa Teresa. Pra despistar, fiquei dando entrevista aos jornalistas, enquanto o povo, que recebia senhas com o endereço da casa, ia saindo sem alarde. A casa ficou lotadinha e tinha público para outro espetáculo. Foi preciso muita coragem. Tônia precisou jogar na mesa todo o seu prestígio. Precisou encarar uma briga feia com seus parentes generais. Mas ela ganhou e estreou.”

Tônia deixa, além de suas históricas atuações em 54 peças, 19 filmes e 15 telenovelas, um legado de resistência que contrasta com o analfabetismo político e a alienação ideológica de muitos de seus pares de hoje, quando a democracia novamente esfalece. Missão cumprida. Que siga em paz!

MAIS 

Em 1969, com direção de Braz Chediak, Navalha na Carne foi vertida para o cinema. Do elenco original da peça, apenas Emiliano Queiroz. Nelson Xavier foi substituído por Jece Valadão. Tônia Carrero por Glauce Rocha. Veja abaixo o filme na íntegra.


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