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"Sessão do Conselho de Estado" (1922), de Georgina de Albuquerque, primeira mulher premiada por uma pintura histórica

Em 1922, a famosa Semana de Arte Moderna rompeu com as tradições, imortalizando artistas como Anita Malfatti e Mário de Andrade. Nesse mesmo ano, outro acontecimento, muito menos celebrado pela historiografia, também constituiu um marco importante na arte brasileira: pela primeira vez, uma mulher era premiada por uma pintura histórica, gênero artístico mais prestigiado na época.

A paulista Georgina de Albuquerque recebeu o prêmio, concedido pela Escola Nacional de Belas Artes, pela pintura Sessão do Conselho de Estado. A partir do tema da independência do Brasil, a artista questionava as representações do poder, colocando uma mulher no centro de um acontecimento histórico. Ao invés de retratar um evento triunfal, como a famosa tela de Pedro Américo, a obra representava um episódio diplomático no qual a princesa Leopoldina ouvia as opiniões dos membros do conselho de Estado sobre a independência.

O fato de a pintura ter sido produzida por uma mulher já representava uma transgressão por si só. Na concepção da época, as artistas eram mais aptas a produzir obras delicadas, como as de natureza-morta ou reproduções, e não temas complexos, como os eventos históricos, que exigiam grande habilidade técnica. Além disso, ao representar um acontecimento político, a artista discutia um assunto da vida pública, esfera vetada às mulheres da época.

Assim como Albuquerque, muitas outras mulheres produziram trabalhos relevantes na virada do século XIX para o XX. No entanto, suas obras ainda são pouco conhecidas, mesmo pela crítica especializada. Esse ocultamento de personagens históricas tão relevantes foi o que motivou a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Ana Paula Simioni a pesquisar a trajetória dessas pintoras e escultoras.

“Existe uma névoa que acoberta a lembrança de outras artistas anteriores a Tarsila e Anita Malfatti, como se antes das modernistas simplesmente não tivessem existido artistas do então denominado ‘sexo frágil’. Existiriam artistas mulheres no século XIX? Se sim, quem foram elas? E por que sabemos tão pouco sobre elas?”, afirma Simioni na introdução da sua tese de doutorado.

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A obra ‘Estendendo a Roupa’, de Abigail de Andrade. Coleção de Sérgio e Hecilda Fadel

Em entrevista à Brasileiros, a pesquisadora pontua que as artistas do período precisaram enfrentar inúmeros obstáculos para conseguir produzir. Um dos principais era a própria profissionalização. Até 1889, as mulheres eram proibidas de se inscrever na maior parte dos cursos superiores. Apenas após a proclamação da República, o acesso foi liberado e, mesmo assim, ainda havia uma forte oposição da sociedade.

Na concepção da época, as mulheres deviam se restringir ao ambiente doméstico, sendo a maternidade a sua função primordial. Qualquer ação que pudesse desviá-las era um sinal de ameaça, como evidencia uma crônica da época publicada na revista Kosmos, em 1904: “Enquanto o homem, entregue à vida pública, desenvolve a ciência, a arte e a indústria, a mulher no lar o prepara para essa mesma vida. Ela não produz as grandes obras, mas forma os grandes homens; toda a sua glória está na dos homens que educa”.

No universo das artes, a principal instituição responsável pela formação era a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Como não havia um mercado artístico paralelo, a escola monopolizava as poucas chances de carreira e projeção, organizando exposições e concedendo bolsas para o exterior aos alunos que se destacassem.

Desde 1889, as mulheres eram aceitas dentro da instituição. Porém, havia inúmeras dificuldades, desde salas e ateliês separados ou restrições ao acesso às aulas de modelo vivo. O estudo do nu era considerado uma das etapas essenciais na formação dos artistas. No entanto, para a moral da época, era um escândalo que as mulheres se juntassem a um grupo, formado majoritariamente por homens, para contemplar modelos despidos.

Mesmo assim, em 1897, a jovem paraense Julieta de França se matriculou na aula de modelo vivo da Escolas de Belas Artes, sendo a única mulher do curso. França é uma das personalidades estudadas por Simioni, que reconstitui a trajetória da artista. Interessada pela escultura, a paraense se destacou no curso da Escola de Belas Artes, tendo sido a primeira mulher a obter o prêmio de viagem ao exterior. Na França, ela aperfeiçoou suas habilidades com o mestre da escultura Auguste Rodin, já tido como uma grande referência.

De volta ao Brasil, em 1908, a artista se candidatou ao concurso que escolheria o monumento comemorativo à proclamação da República. Porém, sua maquete foi desclassificada pela comissão julgadora. Inconformada, a artista retornou à Europa coletando avaliações positivas de artistas e professores renomados, inclusive do próprio Rodin. Com esse documento em mãos, França exigiu que a comissão revisse o seu veredito.

A atitude foi considerada um escândalo na época, já que se tratava de um questionamento dos critérios da própria academia. A paraense assim tomava uma postura de confronto, rompendo com o “esperado recato feminino”, como aponta Simioni. A decisão da comissão não foi revista, mas a polêmica prejudicou a carreira da escultora, que já era malvista por ser mãe solteira, sustentando a sua filha sozinha. Para a pesquisadora, todos esses fatores fizeram com que a trajetória de França fosse apagada, tendo a academia se recusado a celebrar a sua produção.

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 Abigail de Andrade, ‘Sem título’. Coleção de Sérgio e Hecilda Fadel

Amadoras

Em sua luta por reconhecimento, essas artistas também tiveram que se contrapor à categoria de amadoras que lhes era atribuída. A prática artística era considerada uma profissão masculina. Simioni comenta que, mesmo com a inserção do público feminino na área, o rótulo continuou sendo empregado: “Se na época, a condição de amador para os homens era uma situação transitória – uma vez aceitos na Academia, podiam se tornar profissionais –, para as mulheres o amadorismo se tornou um rótulo taxativo, quase inescapável, uma ‘condição’ permanente. Isso porque o termo também comportava toda uma carga de estereótipos negativos sobre as aptidões profissionais e intelectuais femininas”.

As artistas do período adotaram diversas estratégias para contornar esse estereótipo, afirmando-se como profissionais. Na França, por exemplo, a pintora Rosa Bonheur se vestia com roupas masculinas para poder caminhar e observar livremente os animais que depois retratava em suas telas. Não há nenhum caso conhecido no Brasil de uma mulher que tivesse adotado uma postura similar à de Bonheur. No entanto, um dos principais meios de  escapar dos obstáculos impostos era o autorretrato.

A pintora carioca Abigail de Andrade foi uma das que produziram autorretratos relevantes, que construíam sua imagem como a de uma artista confiante, organizada e metódica no trabalho. Uma das obras mais famosas de Andrade, que foi a primeira mulher premiada com a medalha de ouro em uma exposição geral, é a tela Um Canto do meu Ateliê (que ilustra a abertura da matéria). Na pintura, ela retrata a si mesma produzindo uma nova tela. O ambiente é repleto de indícios do ofício da artista, com pinturas e esculturas por toda parte, além de estudos do corpo humano. A arte como profissão era assim reforçada pela carioca, que, ao longo da sua trajetória, sofreu diversas pressões familiares devido a sua opção pelo fazer artístico.

“Por muito tempo, os artistas do século XIX foram desvalorizados no Brasil, em virtude da supremacia do olhar modernista em nossa historiografia”.

Obras como os autorretratos de Andrade ou as esculturas de França ainda são pouco conhecidas, mesmo pelo público especializado. Simioni aponta os possíveis motivos: “Por muito tempo, os artistas do século XIX foram desvalorizados no Brasil, em virtude da supremacia do olhar modernista em nossa historiografia. Dos anos 1980 para cá, isso mudou bastante. No entanto, é bom lembrar, há ainda muito por fazer. Esse desconhecimento sobre o século XIX atinge homens e mulheres, mas no caso delas talvez isso seja mais dramático justamente porque, na época, elas foram julgadas amadoras”.

Alguns trabalhos dessas artistas fazem parte do acervo de instituições como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu Nacional de Bela Artes. Porém, outras obras, como as de Abigail de Andrade, ainda pertencem a coleções privadas, estando inacessíveis ao público. Simioni acredita que, conforme mais pesquisas mostrarem a importância dessas artistas, os museus tenderão a adquirir seus trabalhos.

Indagada sobre as transformações no universo das artes e a posição ocupada pelas mulheres hoje, Simioni afirma: “Ao longo da história da arte do século XX, temos vários exemplos de mulheres que alcançaram fama e notoriedade, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lygia Clark e Adriana Varejão, entre tantas outras. Ainda assim, os seus exemplos podem ser vistos como casos ‘singulares’ e ‘excepcionais’, que acobertam uma realidade mais ampla de diversas carreiras femininas obliteradas, pouco conhecidas em períodos diversos, desde o modernismo até os dias de hoje”.

 


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