Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.
O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.
Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.
Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.
Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.
Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.
Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.
Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.
Hudinilson Jr. Até 06 de setembro de 2019 Na Galeria Jaqueline Martins Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo
A exposição Maria Bonomi: a arte de amar, a arte de resistir, em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, convida o visitante a uma experiência de imersão. São mais de 250 obras distribuídas por 11 salas do histórico casarão, cobrindo sete décadas de produção. A curadoria de Paulo Herkenhoff e Lena Peres propõe um percurso não cronológico, quase em espiral, no qual as obras se cruzam, reverberam e se reatualizam. A artista surge inteira: múltipla, coerente e contraditória, como a própria história da arte moderna e contemporânea brasileira.
Logo na entrada, a exposição estabelece um diálogo entre o tempo e a matéria. Gravuras convivem com pinturas geométricas do início de carreira, trabalhos da juventude se mesclam a esculturas. Cada retomada sugere o despertar de novas camadas de sentido. Bonomi nunca se repete, ela amplia. Em suas palavras: “Gravar é ferir e, ao mesmo tempo, revelar”. Esse gesto físico, tenso e poético é o eixo que atravessa toda a mostra.
O título da exposição anuncia os dois vetores de sua vida e de sua arte: amar e resistir. Amar, no sentido de criar, cuidar e partilhar. Resistir, no sentido de permanecer, desafiar o tempo e reinventar-se. Aos 90 anos, Maria Bonomi continua a fazer da arte um laboratório de experiências.
Formada na Europa, e mais tarde aluna de Lívio Abramo em São Paulo, Bonomi sempre considerou a gravura como território. A madeira, o metal, o cimento e a fibra são seus aliados. O gesto de gravar é também uma forma de pensar o espaço, de criar um relevo entre o visível e o invisível. Como observa Herkenhoff, “em Maria, o ato de imprimir não é repetição, mas multiplicação”. Cada impressão é um novo nascimento, uma tentativa de reescrever o tempo.
O retrospecto, e não a retrospectiva, como quer Herkenhoff, reúne trabalhos históricos, como Barcos e luas, xilografia de 1956, com influência construtiva, e Pedra Robat (1974), apresentada na última Bienal de Veneza (2024), quando Bonomi foi convidada a participar da edição, cujo tema foi Stranieri Ovunque (Estrangeiros por toda parte). Estão presentes também as xilogravuras coloridas de grande formato produzidas a partir dos anos 1970, entre elas Tropicália, que estampa a capa do catálogo. No conjunto se destaca Tetraz (2005), a dança das facas, feita em papel artesanal nepalês, e os Epigramas, objetos em cobre, alumínio e latão criados a partir dos anos 1980. Neles, a artista transforma o metal em escrita, em pensamento visual. As texturas ganham voz e o relevo se converte em linguagem.
O vídeo experimental Paris Rilton (sic), de 2011, criado por Bonomi e dirigido por Walter Silveira, com trilha de Cid Campos, ironiza a futilidade do consumo e da celebridade. A artista mostra uma escultura oca, de alumínio fundido, com sulcos que evocam sensualidade e crítica social. O humor e a acidez se combinam para desmontar o mito da beleza instantânea, expondo o vazio de uma sociedade fascinada por aparências.
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Maria Bonomi, Barcos e Lua, 1956 Xilografia. Foto: Ateliê Maria Bonomi
Vista da exposição de Maria Bonomi. Foto: Leonor Amarante
Vista da exposição de Maria Bonomi. Foto: Leonor Amarante
Maria Bonomi. Foto: Ateliê Maria Bonomi
Maria Bonomi, Xilografia - China Hoy.
Maria Bonomi, Babel, litografia. Foto Romulo Fialdini
Maria Bonomi, Xilografia - A Águia, 1968
Vista da exposição de Maria Bonomi. Foto: Leonor Amarante
Em 1996, o MASP apresentou Xilogravura: do cordel à galeria, sob minha curadoria, reunindo 600 obras de artistas, colecionadores e instituições. Foi um marco na valorização da gravura brasileira. Nessa ocasião, Haroldo de Campos escreveu Elogio da Xilo, poema-manifesto sobre o embate entre corpo e matéria. O texto ganhou vida no vídeo dirigido por Walter Silveira, com as vozes de Haroldo, Beth Coelho e Arnaldo Antunes, transformando o poema em experiência sensorial. Era a própria Bonomi em cena, gravando xilos no seu ateliê, tornando o gesto visível. O resultado foi o livro Elogio da Xilo, uma coleção de xilogravuras para colecionadores.
As relações da artista com a literatura, a poesia e o teatro também se destacam em obras como Quadrantes e Amor inscrito. Esses trabalhos revelam uma subjetividade poética, um território onde a arte se confunde com a vida. O erotismo sutil e o ideário amoroso dessas obras refletem o encontro entre Maria e Lena Peres, em 2004, relação que inspirou séries como Love layers e Lena. Nelas, a artista transforma o afeto em arquitetura visual. É o amor como estrutura e resistência, como disse Herkenhoff: “Para Maria, a arte é um fenômeno entregue à percepção do outro, para a projeção de significados”.
As conexões de Bonomi com o teatro também sempre foram fortes. Na sala mais ampla e múltipla da exposição, pedaços de elementos cênicos, feitos para a peça Peer Gynt, (1971), escrita por Henrik Ibsen,flutuam no ar. A textualidade da vanguarda é sentida com o olhar e o atrevimento pelas formas indagadoras. A xilografia Palco (1962), que pode remeter ao teatro de Samuel Beckett, comprova o envolvimento contínuo de Bonomi com o teatro, desde a década de 1960. Sua obra se expande, contamina e se deixa contaminar também por textos de escritores como Clarice Lispector, sua amiga e confidente, com quem dividiu transgressões, gestos e utopias.
Nas salas seguintes, o visitante encontra a artista em diferentes papéis: criadora, ativista, arquiteta de espaços públicos. Sua trajetória se mistura com a história do país. Das décadas de repressão à redemocratização, da arte experimental dos anos 1960 ao presente, Bonomi acompanhou as transformações sociais com lucidez e coragem.
Revisitar Maria Bonomi é revisitar também essa história. Sua obra pública, espalhada por praças, metrôs e edifícios, é extensão de um pensamento coletivo. A artista constrói para o outro, para o olhar de quem passa. São obras que respiram a cidade e dialogam com a vida cotidiana, transformando o espaço urbano em experiência lúdica. Em obras como as que estão na Estação Sé do metrô, no Memorial da América Latina ou na Igreja da Cruz Torta, em São Paulo, Bonomi incorporou a elas o mundo operário, transformou o espaço público em extensão de sua poética, social e coletiva.
A curadoria de Herkenhoff e Peres opta por não fechar o discurso. Em vez de cronologia, uma rede de associações. As obras não se explicam; se respondem. Há nelas ecos, intervalos e correspondências. Cada sala é um campo de forças, um território de acertos, contradições e retornos. O visitante é convidado a circular, se perder e se encontrar entre gestos, materiais e indagações.
A exposição não apenas revisita uma carreira, celebra uma atitude diante da vida. A coerência de Bonomiestá justamente na contradição, na capacidade de mudar sem perder o controle e isso fica claro nesse retrospecto. Sua arte e vida são feitas de persistências, mas também de rupturas, quando a situação pede. Em tempos de aceleração e banalidades, Maria Bonomi reafirma a arte como permanência e seriedade. A arte de amar, a arte de resistir não é apenas o título da mostra, é o seu modo de viver desde sempre. Como fica demonstrado no final da visita, Bonomi representa uma ponte entre a técnica clássica da gravura e os traços da contemporaneidade.
“Sinto-me privilegiada por ocupar o Paço Imperial entre duas curadorias tão distintas: uma delirante e distante, outra racional e intimista. A variedade de suportes e etapas apresentadas reafirma meu propósito de compartilhar processos nascidos de uma mesma chama criadora. Tudo vibra em movimento. São oitenta anos de busca incessante, um ato de entrega, ainda não de missão cumprida.”
Quando pisou no Brasil, em 2011, em sua primeira viagem para fora da América Central, o artista guatemalteco Edgar Calel tinha apenas 24 anos. Desembarcou em Belo Horizonte (MG) para uma residência artística de 20 dias – período no qual pôde conhecer e se fascinar com o Instituto Inhotim – e seguiu para São Paulo, onde participaria de uma mostra coletiva na Galeria Vermelho. Por conta de prazos e imprevistos, acabou sem espaço para expor, mas decidiu ir para a abertura mesmo assim, vestido performaticamente com uma camiseta na qual se lia: “Eu estou aqui pela ausência de uma obra”.
Quase 15 anos passados – durante os quais expôs em diversas grandes instituições de vários cantos do mundo, incluindo a Bienal de São Paulo em 2023 –, Calel volta ao Inhotim em condições bem mais favoráveis. E não com apenas uma obra para mostrar, mas com uma exposição individual que ocupa a totalidade da espaçosa Galeria Lago, dentro do instituto mineiro localizado em Brumadinho, nos arredores de Belo Horizonte. Com 15 obras instalativas em larga escala, sendo 12 delas criadas especialmente para a mostra, o artista passou quase dois meses – junto a sua família – vivendo em Brumadinho para a montagem de “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, inaugurada neste mês de outubro.
De origem indígena, membro do povo Kaqchiqel-maia e habitante da pequena cidade de San Juan Comalapa, Calel conta que após aquela primeira vinda ao Brasil – na qual começou a entender mais sobre as diferentes culturas que o compõem –, voltou para casa com um enorme desejo de retornar ao país. E assim o fez: “À medida que fui regressando, descobri uma ligação muito especial entre o conhecimento das culturas de povos indígenas aqui do Brasil e da Guatemala”. Após visitar comunidades Guarani, quilombolas e outros povos, o artista afirma que desapareceram, para ele, “as muitas fronteiras que só existem em nossas cabeças, nas definições e termos que usamos”.
Calel percebeu os vários paralelos culturais – seja na alimentação ou na espiritualidade –, mas também sociais e políticos – como nas desigualdades que resultam na luta popular pela terra – que marcam os dois países. “Aqui e ali, os problemas são os mesmos. Não há grande diferença entre os modos de vida, de pensar e também os modos de segregação que existem, incluindo os motivos que criaram essa grande desigualdade”. E é justamente a partir desta percepção, da bagagem de vivências acumuladas em suas viagens e da vontade de colocar em diálogo os dois países que foi concebida a exposição no Inhotim.
Talvez por isso, adentrar “Aromas de um sonho” transporte o visitante brasileiro a um universo cultural distinto, por um lado, mas cheio de referências a seres e elementos que nos são bastante conhecidos. Surgem nas obras animais como a onça-pintada (ou jaguar, em espanhol, um ser sagrado tanto para os Kaqchiqel-maia quanto para diversos povos ameríndios do Brasil); objetos como velas coloridas usadas em rituais, tapetes de palha, vasos de barro e tambores; alimentos como o milho e as frutas tropicais; além de formações de relevo como as montanhas de terra fértil, de desenho tão semelhante nas regiões de Comalapa ou Brumadinho. “O Calel nos proporciona uma experiência imersiva a partir de elementos da natureza, num desenho de espaço que é cadenciado pelo território, pela comunhão – principalmente de seu núcleo familiar – e pela espiritualidade”, sintetiza Beatriz Lemos, que assina a curadoria da exposição junto a Lucas Menezes.
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Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: Marcos Grinspum Ferraz
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: Marcos Grinspum Ferraz
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Mas se há ali aproximações óbvias entre Guatemala e Brasil – como nos morros de terra simbolizados em “Aq’omanik Paruwi’Juyu’ – Cura sobre as montanhas”, há também notáveis características culturais de um universo particular aos guatemaltecos, mais especificamente ao povo Kaqchiqel e à própria família Calel. É ela, afinal, que está representada em “Kej- chi’ch’ – Veado de metal”, instalação composta por uma caminhonete vermelha ocupada por esculturas de argila que simbolizam os membros da família, trajados de roupas tradicionais repletas de padronagens coloridas.
É o ambiente familiar dos Calel, ainda, que está referenciado em uma grande sala ao final do itinerário do visitante. Ali, encontra-se um espaço cerimonial inspirado naquele que existia na casa da avó de Edgar – com objetos como máscaras, chapéus, bordados, instrumentos musicais, velas e fotos –, assim como um espaço de trabalho semelhante às oficinas da família, além de um vídeo de uma performance – “Xi ni chajij – Me cobriram de cinzas para me proteger” – realizada por Calel ao lado de seus pais. Pois para os Kaqchiqel-maia, como explica Lemos, “esse lugar do sagrado está em total simbiose com o lugar do sustento, do trabalho, do descanso, da comunhão da família e da conversa”.
Um fazer coletivo e de longa duração
Chamada por Inhotim de “exposição de longa duração”, já que fica em cartaz até 2027, a mostra de Calel teve também uma longa duração para ser gestada. Nada a mais, nas palavras de Lemos, do que “um tempo adequado e confortável de ideias, de idas e vindas”. Afinal, o respeito ao “tempo das coisas”, em oposição à usual celeridade imposta pelas sociedades ocidentais, é um dos valores básicos de “Aromas de um sonho”, assim como dos Kaqchiqel-maia e de tantos outros povos ameríndios.
E isso parece ficar claro já na primeira obra da exposição, ainda ao lado de fora da galeria, intitulada “Rajawal Ramaj – Dono do tempo” e constituída apenas por uma grandiosa rocha gnaisse encontrada por Calel na região de Brumadinho (marcada historicamente pela mineração e, recentemente, pelo desastroso rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão). Uma pedra na qual o artista percebeu a semelhança com o formato de uma tartaruga – bicho de movimentos lentos e vida longa – e apenas desenhou os olhos do animal, explicitando sua visão.
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Calel e os curadores com a obra “Rajawal Ramaj – Dono do tempo”. Foto: Marcos Grinspum Ferraz
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: Marcos Grinspum Ferraz
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Vista da performance de Edgar Calel durante a abertura da mostra “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, em cartaz no Inhotim. Foto: Marcos Grinspum Ferraz
Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: ìcaro Moreno
Sobre o longo e intenso processo de feitura da mostra, Menezes afirma também que “esta é mais do que uma exposição, é um projeto que se comunica com um tempo que não só o de agora. E está baseada em princípios inarredáveis, muito firmes, muito aterrados”. Um destes princípios, talvez o mais basilar deles, é o de um “fazer coletivo e em comunhão”, resultante da intensa troca entre a família Calel e as equipes do Inhotim.
Após uma primeira visita de Edgar a Brumadinho, para conhecer a galeria na qual exporia e observar com calma a região mineira, os curadores e outros membros dos ateliês do instituto viajaram à Guatemala para conhecer Comalapa, sua paisagem, a cultura local e a vida dos Calel. A vida em um país com mais da metade da população de origem indígena, a maioria de descendência maia, como comenta Lemos: “Foi algo muito marcante e bonito de ver. Que existe a possibilidade, na contemporaneidade, de vivenciar isso como sociedade. Quem dera a gente pudesse ter tido a oportunidade de conviver mais com as nossas culturas originárias”.
Lá, os brasileiros viram um pouco da rotina da família, descrita por Edgar como uma sucessão de fazeres coletivos que incluem trabalhar no campo, compartilhar e interpretar os sonhos, cozinhar, realizar cerimônias e produzir arte. “São muitas atividades, é quase como um ministério da Cultura e do Esporte”, brinca ele, lembrando que dois de seus irmãos são também professores de educação física. “Mas tudo que fazemos vai se desenrolando de forma muito natural. Não se pode fazer nada sem estar em comunicação, sem perguntar aos outros se estão bem, se estão mal”. E mesmo sabendo que sua produção é cada vez mais requisitada no circuito artístico internacional, Calel compreende também que “muitas vezes, antes da arte é necessário solucionar outros problemas”.
A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia
Por fim, a conclusão do projeto e a montagem de “Aromas de um sonho” se deram em Brumadinho, durante os quase dois meses de Edgar, seus pais – na primeira vez em que sua mãe viajou de avião – e três irmãos na cidade, todos trabalhando junto às equipes do Inhotim. Não interessava, para o artista, apenas transportar suas obras de Comalapa para o instituto, ou ainda vender a ele as obras de seu acervo, como conta Menezes: “Ele queria fazer junto e, para nós, esse é um princípio fundamental do projeto. Sonhar junto, criar junto e fazer junto.” Assim, segundo Calel, “o que existe é algo tão bonito e tão importante: reconhecer que a arte contemporânea está sendo feita a partir dos povos. Esse enfoque é fundamental, pois também se trata da memória dos povos que estamos transportando por meio das obras”.
Memória dos povos que é também manifesta, na visão Kaqchiqel-maia, na memória das coisas, em uma cosmovisão que vê vida nos elementos da natureza – incluindo as duas grandes pedras que simbolizam os avós de Edgar na obra “Qatit Qa Mama’ Wawe Oj k’owi Chawech – Avó, avô, estamos aqui diante de vocês”. Pedras ou avós, portanto, que podem atravessar tempos, dimensões ou territórios, segundo Calel. “Através da arte, a temporalidade pode ser estendida um pouco mais. E acredito que é muito importante pensar nas coisas que conseguem ficar depois da gente. Falo sobre isso porque dentro de mim ainda há – às vezes ouço – o som da voz da minha avó. E é por isso que faço oferendas, para que ela possa viver muitas temporalidades, muitas dimensões.”
Perguntado, afinal, sobre o título da mostra – “Aromas de um sonho” –, Calel afirma que os sonhos são uma das tantas dimensões que existem para ser vividas. “Assim, faz sentido pensar que o aroma de um sonho é também o aroma da vida, que no caso da exposição se traduz em instalações, objetos, pinturas, memórias… em ser convidado, por meio de obras, a aprender um pouco sobre a Guatemala”. Na verdade, retoma ele, a memória de uma Guatemala construída no Brasil. “Então é algo quase como um abraço de amizade, de conhecimento e colaboração.”
Na mesma linha, Lemos concluí: “A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia”.
*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim
Uýra Sodoma, Caos, da série Mil [quase] Mortos, 2018. Foto: Matheus Belém.
Entre a terra e o mar, o manguezal é um lugar de transição. Do Oiapoque, no Amapá, até Laguna, em Santa Catarina, os manguezais podem ser encontrados quase que por toda a costa brasileira. Esse ecossistema abriga formas de vida que prosperam em meio à instabilidade e sua importância é tremenda, já que protege a costa da erosão e eventos climáticos extremos.
Agora, o manguezal se tornou ponto de partida para uma reflexão sobre as interdependências entre humanos, natureza e cultura na exposição Manguezal, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB RJ), com curadoria de Marcelo Campos, pesquisador de identidades brasileiras com sólida trajetória na arte contemporânea.
A exposição partiu do livro homônimo, de Andrea Jakobsson, e propõe um olhar sobre o mangue como metáfora para a arte e para a própria experiência brasileira: um ambiente de mistura, reinvenção e sobrevivência. Em entrevista à arte!brasileiros, o curador revelou que a ideia de dedicar uma mostra inteiramente aos manguezais foi muito satisfatória, pois foi possível compor um conjunto de artistas de diferentes tempos e linguagens: “Os manguezais passaram pela arte brasileira em diversos momentos. De artistas modernistas como o Abelardo da Hora, o Lasar Segall, a artistas contemporâneos como a Uýra Sodoma e até o Carnaval carioca”, explica Campos.
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Enrico Marone
Ayrson Heráclito (Macaúbas, BA)
Bori Nanã - da série Boris, 2014
Reprodução fotográfica
MAR - Museu de Arte do Rio / Secretaria Municipal de Cultura da cidade do Rio de Janeiro Fundo Ayrson Heráclito
UÝRA Sodoma, Fogo, da Série Elementar, 2018. Foto: Matheus Belém
Azizi Cypriano e Laryssa Machada,
Evitando a erosão, 2025. Reprodução fotográfica (tríptico) Agradecimento: Dona Almirena. Coleção das artistas
No Museu de Arte do Rio, onde Campos é curador-chefe, ele tem trabalhado com projetos de curadoria compartilhada. A curadoria se assume como um dos dados de uma mostra e não como o único dado: “Com isso, a gente vem trabalhando com especialistas, que nos dão informações sobre os assuntos que transformamos em listas de obras, em ideias, em imagens”. O mesmo processo aconteceu durante a pesquisa de Mangue.
Ao mergulhar nesse universo, Campos se deparou com a informação de que o Brasil é um dos lugares mais importantes do planeta quando se fala de manguezais. “Esse lugar promove uma alteração do clima: esfria o clima quente, faz a transposição da água doce para água salgada. São coisas incríveis e riquíssimas”, aponta. No entanto, o curador lamenta que o manguezal ainda sofra com a confusão popular entre o mangue e o esgoto.
O curador fez questão de incluir artistas que já haviam se aproximado do tema em momentos cruciais da arte brasileira, como a modernista Celeida Tostes. Na época em que ela lecionava na UFRJ, a argila era retirada da borda dos mangues da Baía de Guanabara, um ato hoje impossível devido à poluição.
Na arte contemporânea, os trabalhos de Uýra Sodoma e a obra comissionada de Azizi Cypriano ganham destaque. Azizi, por exemplo, produziu uma performance e fotografias que focam na transmissão do saber.
Azizi Cypriano e a obra Movimento-grafia
Azizi Cypriano e Laryssa Machada, Evitando a erosão, 2025. Reprodução fotográfica (tríptico) Agradecimento: Dona Almirena. Coleção das artistas.
A obra de Azizi Cypriano, intitulada Movimento-grafia 10, é um trabalho inédito, comissionado para a exposição, que se aprofunda na relação entre corpo, escrita e o território do manguezal. A artista, que desenvolve a pesquisa Movimento-grafia desde 2019, que relaciona a escrita com a lama, inspirada no texto Da grafia-desenho de minha mãe, de Conceição Evaristo, encontrou no mangue um território sagrado. “O mangue é uma geografia muito misteriosa, não é todo mundo que consegue acessá-lo porque ele não é não é como uma cachoeira que ainda que seja também muito espiritual, muito poderosa, a gente consegue acessar com uma certa facilidade”.
Azizi relata que o convite para a exposição foi antecedido por uma imersão na Baía de Guanabara, junto ao grupo Guardiões do Mar. No entanto, o ponto de virada para a criação da obra foi o encontro com a comunidade do Quilombo do Feital, formada por pescadores de caranguejo, e, em especial, com a artesã Dona Almirena, que trabalha com a palha da taboa coletada no mangue, e sua filha, Val Quilombola, liderança do quilombo.
“Eu acho que a primeira coisa que eu realizo com o Quilombo do Feital é essa chegada num território do qual sem eles eu jamais poderia conhecer da maneira que eu conheci. Toda vez que a gente for adentrar o manguezal, a gente precisa pedir licença”, explica.
A performance de Azizi só foi possível a partir dessa relação profunda com a comunidade, que a acolheu e a ensinou a “chegar” no mangue. A artista descreve que, ao adentrar o manguezal, seu corpo se curva, pois é um lugar que exige lentidão e respeito: “Eu precisei entender junto com a espiritualidade que adentrar o mangue, é como se você tivesse aprendendo a engatinhar: você vai pisando devagar, conhecendo e sentindo texturas novas pela primeira vez”.
A artista incorporou à obra dois troncos do próprio manguezal, um material que, segundo ela, possui uma propriedade muito distinta e que hoje só pode ser acessado por quem adentra o mangue, visto que sua exploração é regulamentada.
O trabalho também inclui três fotografias em colaboração com a fotógrafa Laryssa Machada, intitulado Evitando a erosão. A obra é um convite à reconexão com figuras e ensinamentos ancestrais para preservar a dignidade da existência e evitar o “desgaste, o sumiço de vida”.
O Manguezal no Carnaval e na pauta global
Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carro alegórico da Grande Rio, 2025.
A exposição também celebra a forte presença do manguezal nas manifestações populares. Uma instalação de Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carnavalescos da Grande Rio, traz elementos do carro alegórico de 2025, inspirado nas Caruanas, seres mitológicos da Amazônia que habitam os manguezais.
O enredo da Grande Rio para 2026 será “A Nação do Mangue”, criado por Antônio Gonzaga que, na mostra, expõe protótipos de fantasias inéditos, reforçando a união entre cultura popular, arte e meio ambiente.
Com a exposição coincidindo com a véspera da COP 30, Marcelo Campos reflete sobre o papel da arte na sensibilização ambiental. Para ele, o poder simbólico da arte é imediato: “Quando você olha as raízes aéreas de um manguezal, imediatamente você imagina que você não quer pegar um facão e destruir aquilo. Você não quer poluir aquele rio transparente, né? Eu fico pensando que nosso papel na arte é dizer: olha, é tão forte isso, temos esse simbólico aqui de sublime, de beleza, de cultura, de produção de música, tudo vem desse lugar, o próprio movimento manguebeat. Então, porque vamos destruí-lo? Então, eu imagino que nesse momento, com esses eventos culturais, a gente precisa responder com a força do simbólico”.
“Manguezal” fica em cartaz no CCBB RJ até 02 de fevereiro de 2026, com entrada gratuita.
Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis, reúne 25 obras recentes do artista curitibano, que transpõem para o espaço expositivo os elementos visuais, sonoros e afetivos de sua produção nas ruas. A mostra está em cartaz na CAIXA Cultural São Paulo até 11 de janeiro de 2026.
Autodidata, Devis iniciou sua trajetória no graffiti aos 13 anos, na periferia de Curitiba. Em quase três décadas de atuação, levou sua pintura a todos os estados do país e a mais de vinte países, consolidando-se como um dos nomes de destaque da arte urbana brasileira contemporânea. Sua pesquisa visual incorpora elementos do pop e da cultura de rua, articulando temas ligados à identidade, à memória e à experiência coletiva no espaço urbano.
Entre os principais signos de seu trabalho estão as Lolitas — personagens de cabelos azuis e olhos expressivos, inspiradas na cultura pop do Japão, onde realizou residência artística. Mais do que ícones visuais, elas operam como mediadoras entre diferentes universos: o real e o imaginário, o local e o global, o popular e o institucional.
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Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Em Loli World Devis recria esse universo de forma expandida. Instalações sonoras, colagens, luzes e objetos compõem um ambiente imersivo que explora o cruzamento entre o grafite, a pintura e a experiência sensorial. O artista propõe, assim, uma tradução museal de sua prática urbana — uma tentativa de transportar para o interior do espaço expositivo a vitalidade e a memória das ruas.
SERVIÇO CAIXA Cultural São Paulo: Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo – SP Em cartaz até 11/01/2026 Visitação: de terça a domingo, das 08 às 19h Classificação Livre. Entrada Franca Mais informações: (11) 3321-4400. Patrocínio CAIXA e Governo Federal
Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Nádia Taquary se formou em Letras, mas logo enveredou pelos caminhos da arte-educação. Foi durante um período de recolhimento pessoal, que entrou em contato com o livro Círculo Das Contas: Jóias De Crioulas Baianas, da pesquisadora Solange de Sampaio Godoy, e se interessou pela história da joalheria afro-brasileira.
Em uma visita ao Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador, sua terra natal, Nádia se deparou com o maior acervo de pencas de balangandãs. Ao ver as peças, compreendeu a história de um objeto que seu pai, um homem negro, havia lhe dado: uma penca de balangandãs que passou por muitas mãos — da bisavó, para a avó, para o pai, até chegar a ela.
Esses objetos são conjuntos de pingentes metálicos presos a um arco, usados por mulheres negras escravizadas e libertas na Bahia dos séculos XVIII e XIX que reuniam símbolos de fé, proteção e prosperidade.
A partir dessa pesquisa, Nádia criou sua primeira obra. O trabalho intitulado Abre Caminhos é uma grande penca de balangandãs com dez dos símbolos mais recorrentes encontrados em suas investigações. A obra está em cartaz na exposição Ònà Irin: caminho de ferro, no Sesc Belenzinho — mostra individual da artista, com curadoria de Amanda Bonan, Ayrson Heráclito e Marcelo Campos, que estreou no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2023 e esteve em cartaz no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), em Salvador, até março deste ano.
Em entrevista à arte!brasileiros, Nádia fala sobre a importância da existência dessa joalheria afro-brasileira para as mulheres que, ao terem essas joias junto ao corpo, transformaram o objeto em amuleto. Quando o balangandã ganhava pingentes e peso suficientes, era possível comprar a própria liberdade ou a de um parente. “Essa história me traz um protagonismo preto muito importante e que a partir daí a minha poética vai se aprofundando e vai se desdobrando. Vai se distanciando da joalheria e adentrando outras camadas a partir do momento que eu vou conhecendo e entendendo mais sobre a história”, conta.
Sem ter tido experiência prévia, Nádia começou a esculpir as Yabás, como Oxum, Iemanjá e Oyá. “As primeiras esculturas que eu faço numa fundição, eu não tinha noção de escultura, mas modelar não foi difícil. É claro que com o tempo a gente vai aprimorando, mas tanto a aquarela, quanto a escultura, quanto a pintura, vieram de forma intuitiva. Eu acho que isso estava em mim e eu só nunca permiti acessar. Acredito que até mesmo por ter sido criada numa família em que ser artista não é uma possibilidade, acho que isso não foi estimulado o suficiente para que eu pudesse reconhecer em mim uma artista”, explica.
As cerca de 22 obras exibidas no Sesc Belenzinho foram criadas a partir das reflexões que surgiram quando a artista saiu do Brasil. Durante o período, Nádia sentiu medo — medo de deixar o ateliê, medo de estar longe de sua língua. Ao consultar o Ifá, oráculo do povo iorubá, Ogum apareceu e disse que o medo é uma energia, e que era preciso transmutar essa energia em força: “Porque onde está o medo está a força também”, revela a artista.
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Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Nádia comprou pequenos espelhos, criou uma base de papel e começou a desenhar e testar os caminhos nesses espelhos, fazendo com que eles seguissem sempre em frente e se multiplicassem em sete direções, em uma referência e uma saudação a Exu. A obra, uma maquete, se transformou na própria exposição: “A decisão curatorial foi de que [a maquete] não fosse uma obra dentro da exposição e sim que a sala expandisse e recebesse a exposição dentro dessa obra”.
Na espaço expositivo, as sete direções representam Exu, enquanto os trilhos de trem remetem a Ogum, o orixá da tecnologia e dos caminhos. “Ogum é o orixá que descobre o ferro, que forja o ferro e cria as primeiras ferramentas. Ele adentra uma floresta densa e permite que a terra seja arada, cultivada e que também se atravesse para espaços para além daquela floresta.”
Uma obra recorrente no portfólio da artista é a Mulher pássaro e a Mulher peixe que aparece nesta exposição e também na 36ª Bienal de São Paulo. A escultura parte de um itan, uma história em iorubá, em que uma menina menstrua pela primeira vez. Assustada, ela sai para lavar suas vestes em um rio e desaparece por três dias. No quarto dia, ela é encontrada no alto de uma montanha, segurando uma cabaça com um pássaro dentro. Nos itans, acredita-se que as grandes mães ancestrais levaram a menina, fizeram rituais e compartilharam informações sobre o poder feminino e o mistério da criação. “Esse poder, não é um poder de criação de filhos, é um poder de criação de tudo o que virá a ser e tudo que se desejar criar. São as forças de construção conectadas com o seu poder de criação”, explica Nádia. A cabaça seria, então, o mistério da criação, enquanto o pássaro seria uma referência a Oxalá.
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Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti
Vista da instalação de Nádia Taquary na 36ª Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
A mostra chega ao Sesc Belenzinho com a expectativa de atingir um público diverso: “Aqui no Sesc tem um público que não necessariamente vem só para exposição, às vezes ele vem para a piscina, para almoçar, e aí se depara com a exposição. Isso é muito interessante”, aponta a curadora Amanda Bonan.
O público terá até o dia 22 de fevereiro de 2026 para visitar a mostra.
No coração de Belém, o Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi torna-se, até 30 de dezembro, um território de escuta e convivência entre espécies. A exposição Um rio não existe sozinho propõe uma imersão sensível nas interdependências que sustentam a vida na Amazônia e no planeta. Idealizado pelo Instituto Tomie Ohtake para dialogar com os temas urgentes relacionados à 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que acontecerá em novembro de 2025, em Belém, o projeto reúne nove artistas e um escritório de arquitetura que dialogam diretamente com o ecossistema local, numa trama que une arte, ciência e saberes tradicionais.
Carol Pasinato, Sabrina Fontenele, Gabi Moulin, Vânia Leal e Ana Roman
A curadoria de Sabrina Fontenele e Vânia Leal surge do desejo de aproximar práticas poéticas e científicas num contexto de urgência ambiental. “Vivemos um tempo em que a crise climática se tornou realidade cotidiana. Esta exposição é uma forma de imaginar, junto com artistas e saberes tradicionais, outras possibilidades de existência mais generosas e sustentáveis”, afirma Fontenele.
Entre os artistas convidados, Rafael Segatto vê no encontro entre arte e ciência uma afinidade profunda. “Eu estou muito feliz de estar com esse trabalho no Goeldi porque é uma instituição das mais antigas do Brasil e ela tem um foco em ciência e em educação. Isso enquanto artista me interessa muito porque o meu trabalho tem uma série de atravessamentos nessas áreas”, diz. Filho de pescadores, o artista reconhece na água o elo que costura dimensões materiais e espirituais. Ao observar o ambiente, comenta sobre as penas de urubu espalhadas ao redor: “Qual museu tem urubus?”, questiona. No parque, eles habitam a samaúma próxima à sua instalação, e essa convivência interespécie, segundo ele, é parte do próprio trabalho. “Os urubus são seres importantes para o ciclo, sendo decompositores. Eles contribuem, trabalham junto comigo”, completa.
Mari Nagem parte de um evento recente para criar 41°C, obra que transforma dados científicos em imagem térmica. “Foi inspirado na seca histórica de 2023, no centro da Amazônia, numa cidade chamada Tefé”, explica. Ela lembra das águas que atingiram temperaturas inéditas e da morte de centenas de botos: “Algumas partes do rio chegaram a 41 graus. Foi um evento sem precedentes”. Ela relembra que muitos ribeirinhos tiveram que deixar suas casas porque não dava para navegar pelo rio, que era só lama. Ao transpor esse colapso climático para uma visualidade sensível, a artista propõe uma experiência de leitura das cicatrizes do território.
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Rafael Segatto, Enquanto correm as águas
Mari Nagem, 41º
Gustavo Caboco, Casa de Bicho
Gustavo Caboco, Casa de Bicho
Francelino Mesquita, Proteção Florestal
Francelino Mesquita, Proteção Florestal
Elaine Arruda, Entoar o vento e dançar marés
Elaine Arruda, Entoar o vento e dançar marés
Elaine Arruda, Entoar o vento e dançar marés
Também interessado na dimensão simbólica da natureza, Gustavo Caboco, do povo Wapichana, apresenta Casa de bicho e Antibatismo: Victoria Regia. Diante da samaúma que abriga sua instalação, ele explica que em Roraima, a árvore é chamada de casa de bicho, porque é também casa de espíritos. No contexto do parque, o nome ganha novo sentido: “Aqui no museu acaba se tornando essa casa de vários bichos, né?”. Caboco reflete sobre como um parque, apesar de não ser uma floresta, nem se parecer com uma, talvez seja o mais próximo que a gente chegue “dessa ficção do que seria uma floresta na cidade. Mas tem uma distância, né? Então, lembrar da casa de bicho é isso”.
O paraense Francelino Mesquita traz à mostra um elo entre cultura popular e preservação ambiental. Suas esculturas em miriti — matéria-prima tradicional dos brinquedos de Abaeté— derivam de uma prática reconhecida como patrimônio cultural. “A partir de 1999 decidi ressignificar, experimentar essa utilização desse Meriti de forma diferente. Trazer para as artes plásticas, trazer de uma forma mais natural para o público”, conta. O gesto de levar o material natural, sem pintura, para o espaço expositivo é, para ele, um modo de afirmar a vitalidade de um saber ancestral.
Em Entoar o vento e dançar marés, Elaine Arruda volta ao rio Tijucaquara, no Marajó, onde nasceu sua avó. “É um rio que a minha vó saiu com 12 anos de idade e veio para Belém com a família para estudar. Ela nunca mais tinha voltado. Então, quando ela fez 80 anos, eu dei de presente para ela uma viagem de retorno a essas águas.”, relata. A viagem, inicialmente familiar, tornou-se o ponto de partida para um trabalho sobre memória e território. “Você chega lá, não tem nada. Você tem um rio na sua frente para você tomar banho. Você só sai de lá quando a maré enche”. A artista traduz essa experiência em uma instalação que convoca o corpo e a lembrança como modos de pertencimento.
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Sallisa Rosa, A terra esculpe a água
Déba Tacana, Luz que Ança
Déba Tacana, Luz que Ança
Sallisa Rosa, A terra esculpe a água
Noara Quintana, Tela D'Água
Noara Quintana, Tela D'Água
Em comum, os artistas, entre os quais também estão Noara Quintana, PV Dias, Sallisa Rosa e Déba Tacana, constroem suas obras em relação direta ao lugar, incorporando elementos da paisagem e dos ciclos naturais do Parque Zoobotânico. Como afirmam os representantes do Museu Goeldi, Sue Costa e Pedro Pompei, a mostra reafirma a importância de criar vínculos afetivos com o patrimônio natural e cultural da Amazônia: “Compreender a Amazônia exige tanto precisão científica quanto abertura poética.”
Um rio não existe sozinho não busca ilustrar a natureza, mas escutá-la, reconhecendo-a como sujeito político, vivo e em transformação.
“Comigo ninguém pode” – título que toma de empréstimo o nome de uma planta que ao mesmo tempo protege e envenena – é o projeto curatorial de Diane Lima selecionado para a representação brasileira na próxima Bienal de Veneza, que abre em 9 de maio de 2026.
Em uma representação exclusivamente feminina, a proposta reúne dois nomes fundamentais da arte contemporânea brasileira e internacional: Rosana Paulino e Adriana Varejão. “Partimos de diálogos narrativos, plásticos e visuais”, sintetiza Diane, enfatizando a importância de um solo comum à obra das duas artistas que há décadas ancoram sua poética no nosso passado colonial, racista e patriarcal e que – mais recentemente – vêm olhando não apenas para as feridas, mas também para os processos de regeneração e resistência.
Entremear essas produções, criar uma base coletiva para o encontro de obras fundamentais na trajetória das duas artistas, é uma das grandes ambições desse projeto ainda em processo e sem contornos definidos, mas em plena ebulição criativa. “Uma já está influenciando a outra”, afirma Rosana. “Sem dúvida virá coisa nova, ou reedições de coisas pouco conhecidas”, complementa Adriana.
A ideia é fugir de uma certa previsibilidade, da exibição de obras já consagradas, privilegiando a descoberta de novos caminhos e também buscando tensionar a relação com o prédio (obra de 1964, ícone de uma modernidade ambígua e cheia de contradições e que atualmente passa por um importante processo de restauro) e com o espaço-sede da Bienal. “A configuração dos Giardini é uma coisa extremamente reacionária, aquela lógica de vários países construindo monumentos a si mesmos, de acordo com uma ordem financeira e política de poder. A gente vai se aproximar desse monumento de uma maneira crítica, mas também apresentando outras saídas e possibilidades”, antecipa Adriana.
A própria planta, que batiza a exposição, revela essa ambiguidade paradoxal de uma coisa que é ao mesmo tempo cura e veneno, cuja toxicidade é ameaçadora e protetiva. Como diz Rosana, quem primeiro investigou as potências metafóricas dessa espécie em série do mesmo nome, “a gente deve também olhar para as saídas senão a gente paralisa, revisitando sempre aquilo que não foi curado ainda”. Afinal, “o Brasil é curiosamente um país que nunca olhou para si”, complementa. São muitas camadas que se sobrepõem, de luta política, social, racial e de gênero. Diane acrescenta ainda a importância metafísica desse elemento numa sociedade profundamente injusta e sincrética.
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Comigo Ninguém pode N°3, from the series Senhora das Plantas | Comigo Ninguém pode N°3, da série Senhora das Plantas, 2024
MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número contribui com sua visão sobre a 36ª Bienal de São Paulo
FABIO CYPRIANO Jornalista, é crítico de arte, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano colabora com sua crítica da 36ª Bienal de São Paulo, além dos textos sobre a exposição de Beatriz González na Pinacoteca e a primeira individual do artista Thiago Martins em São Luís – MA
JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê entrevista nesta edição o intelectual Ailton Krenak e o curador da Ocupação Paulo Herkenhoff, Leno Veras
LEONOR AMARANTE jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição escreve sobre o Pompidou Paraná e a Bienal das Amazônias
LUIZA LORENZETTI é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Atualmente, é Gerente Web da Arte!Brasileiros. Nesta edição visita a exposição Línguas africanas que fazem o Brasil em Vitória – ES
Paulo Herkenhoff, diretor do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), em seu gabinete, em 2006. Nesse período, ele pediu demissão
do cargo devido ao vazamento para imprensa de detalhes do projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha para a reforma do museu. : FOTO: ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHAPRESS
“Nesta parede estão algumas das obras que guardo em minha casa. Outras doei ao MAR, o Museu de Arte do Rio”. O apontamento do crítico, gestor, professor e artista Paulo Herkenhoff ao pé de uma seleção de telas de Lygia Pape, Hércules Barsotti, Alfredo Volpi, Aluísio Carvão, Antonio Manuel, Haroldo Barroso, Katie van Scherpenberg, Rubem Ludolf, Hélio Oiticica e outros parece empurrar o pensamento do espectador para um lugar além da fruição: então é possível palmilhar o gosto pessoal de um supercurador de arte por aquilo que ele mantém pessoalmente perto de si, em sua casa?
A Ocupação Paulo Herkenhoff, em curso no Itaú Cultural da Avenida Paulista, abre essa prodigiosa caixa de curiosidade e revelações em torno da figura de um dos mais rigorosos personagens da crítica de arte do Brasil, Paulo Estellita Herkenhoff Filho, capixaba nascido em 1949 na mesma cidade do “Rei” Roberto Carlos, Cachoeiro de Itapemirim. “Tenho um especial apreço pelo neoconcretismo e pela abstração geométrica como uma arte de um Brasil exuberante e otimista”, diz Herkenhoff em outra legenda mais adiante, uma das sementes que vão sendo deixadas pelo caminho da mostra para que se possa acompanhar esse percurso do curador e artista. “A arte é uma semente; o curador, um jardineiro que deve ser atento às necessidades vitais da semente; a galeria, a terra, que não pode ser árida; o olhar do espectador é o sol que fará florescer significados inesperados do significante ‘arte’”, escreve Herkenhoff sob a foto dos pais visitando a 23ª Bienal de São Paulo.
Um assombroso Volpi sem data parece sugerir um cruzamento entre as igrejinhas de Guignard e uma abstração geométrica de Ivan Serpa. Geraldo de Barros e José Oiticica Filho arrombam as percepções sobre fotografia e construção. Uma colagem de “origamis” de Athos Bulcão surge como um flyer do concretismo. “Tudo é devoração. O homem na exploração parasitária do planeta se entre-devora”, discursa o manuscrito original de Oswald de Andrade sobre antropofagia que está ali nas imediações de uma bolsa bege de Nicola Constantino. Arthur Bispo do Rosário, Flávio Shiró, Geraldo de Barros, Paulo Mendes da Rocha, Iberê Camargo: a diversidade de interesses e o refinamento da coleção pessoal do curador, que ocupa metade da exposição, delicia a percepção. “Quero viajar cada vez menos para o estrangeiro. Eu me tornei um ‘curador local’. Não tenho mais tempo para deixar o Brasil”, escreve Paulo.
Responsável pelo “descobrimento” de diversos artistas cruciais, curador de centenas de exposições, gestor de museus no Brasil e no exterior, como o Museu de Arte do Rio (MAR), Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Bienal de São Paulo, Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, nos Estados Unidos, e a Documenta de Kassel, na Alemanha), Herkenhoff tornou-se um farol para a cultura das artes visuais no Brasil. Ao voltar-se para o curador como o próprio objeto de curadoria, a Ocupação Paulo Herkenhoff amealhou cerca de 350 obras, vídeos e objetos de coleções de 10 instituições nacionais e internacionais — mas o que fascina mesmo é poder acompanhar, pela primeira vez, uma amostra significativa da pequena coleção privada de Herkenhoff, que permite iluminar sua trajetória.
A diversidade de interesses e pesquisas de Herkenhoff dita o percurso. Vê-se, por exemplo, uma obra da Escola de Cuzco, uma magnífica Nossa Senhora de Copacabana, da coleção do Museu de Arte do Rio, que ajuda a entender o desafio de reconstituição de uma história latino-americana. “Art is a garanty (sic) of sanity”, diz a tabuleta da artista franco-estadunidense Louise Bourgeois, uma espécie de paleta de aquarela criada no ano 2000. Com um erro na grafia inglesa da palavra “garantia”, a plaqueta emoldura uma série de objetos que mostram a relação pessoal do curador e da artista.
Com curadoria do pesquisador, educador, curador e comunicador Leno Veras e expografia de Fred Teixeira, a Ocupação Paulo Herkenhoff percorre a história (e a mente) do curador em três eixos: Publicações, Exposições e Coleções. O ponto alto da mostra reúne 45 dos seus Cadernos de Anotações, célebres na cena das artes visuais.
Cadernos de Paulo Herkenhorff em sua estante, em 2025. FOTO: LETÍCIA VIEIRA /ITAÚ CULTURAL
ARTE! BRASILEIROS: O que você, como curador, acha que a diversidade de interesses desse conjunto de obras exposto revela sobre Paulo Herkenhoff?
LENO VERAS: O Paulo criou do zero muitas coleções públicas e privadas do país, um trabalho hercúleo — ainda mais sabendo-se que patrimônio, tanto o cultural quanto o histórico, anda longe de ter planos e políticas e verbas para aquisição. Então, tudo foi feito num trabalho de formação de rede e, sobretudo, de levantamento de formas de pensar a historiografia. A proposta foi pensar publicações, exposições e coleções como três níveis do pensamento do Paulo, que é sempre um pensamento esférico. Esse é um dos conceitos que a gente desenvolveu ao longo dos anos de trabalho na coleção do Museu de Arte do Rio, que foi talvez uma das mais importantes contribuições do Paulo para o campo do colecionismo público no Brasil, já que ele ali arregimenta uma coleção pública municipal do zero, pensando em linhas étnico-raciais da formação da identidade brasileira. Então é um trabalho feito com a linha árabe, uma linha judaica, uma linha sino e nipo-brasileiras, uma linha afro-brasileira, uma linha indígena e dos povos originários, construindo historiografias que revisam que já era da prática crítica do Paulo, sobretudo no contexto, por exemplo, do estudo de um dos conceitos-base dessa ideia de formação identitária a partir da colonialidade, das escolas de Belas Artes, das academias europeias, especialmente a francesa, no contexto do Rio de Janeiro. Esses debates históricos muito presentes no contexto das coleções nacionais que estão territorialmente muito alocadas ali na geografia do Paulo, que é um capixaba que vem para a cariocagem, digamos assim. Esse olhar sobre as coleções do Paulo curador, que trabalha como colecionador, é a atividade primeira, eu diria. O curador de exposições é um mediador de coleções, primeira preocupação do pensamento herkenhoffiano, um pensamento warburguiano, benjaminiano, a ideia da formação de uma história a partir dos fragmentos, pensando as coleções de imagens transversalmente, algo que envolve cultura visual, pública, popular, arquivos e documentos históricos, bibliografia histórica. Paulo, por exemplo, esteve à frente das coleções da Biblioteca Nacional, bem como do Museu Nacional de Belas Artes, Funarte, então grandes instituições com seus arquivos e bibliotecas. O Paulo colecionador, nessa mostra específica da ocupação, é o mote principal, tanto que a gente conta com coleções de pelo menos dez instituições nacionais e internacionais de grande relevância, contribuindo com tipologias diferentes de coleção, não de artes visuais, mas coleções de História, de cultura visual, coleções de documentação, coleções inclusive digitais, como videoarte do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Mas a gente tem presença do arquivo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), da biblioteca do Museu de Arte do Rio, com sua fortíssima coleção de livros de artistas, doada pelo Paulo, era a maior coleção de livros de artista no Brasil, mais de 800, o Paulo fez a doação integral para a biblioteca do Museu de Arte do Rio, por exemplo. O Museu Nacional de Belas Artes tem pinturas históricas que também tiveram relação com o processo de doação do Paulo, assim como coleções como a da própria Fundação Itaú. A gente teve diálogo com o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), com o Museu de Arte de São Paulo (MASP), no campo da documentação, com a Fundação Bienal de São Paulo e o próprio pôster original, o cartaz da 24ª Bienal, a Bienal da Antropofagia, realizada pelo Paulo, que está na exposição junto com os catálogos materialmente originais. Então tem um foco na construção de uma grade, um alicerce, que é a presença do Paulo nas coleções, não só inclusive como curador, mas também como artista, caso do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Temos várias obras que foram restauradas e gentilmente cedidas num prazo menor do que o comum, com esforços de todas essas coleções que se integraram para conosco arregimentar (o conjunto), muitos colecionadores privados, muitas coleções de artistas que foram sendo elencadas ao longo dos seus diálogo com Paulo. A ponto de a gente contar com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, que a própria Ana Maria Maiolino trouxe fisicamente um dia antes da abertura da mostra, além da sua ilustre presença na inauguração. A exposição se pensava como um conjunto de estruturas de conhecimento arregimentadas pelo Paulo. Tanto que, no eixo de publicações, há centenas de publicações, mais de cem, do próprio Paulo. Estão expostas e em rotação porque o espaço não continha, não tinha a condição de acolher a dimensão dessa estrutura de pensamento. Inclusive, na parte de documentação, a gente teve que fazer grandes escolhas e uma das frentes foi digitalizar todo esse processo que está disponibilizado por meio também de um hotsite, que fica como uma espécie de guia de pesquisa para a produção intelectual do Paulo, que se desdobra no catálogo da exposição, pequeno compêndio de grandes textos publicados ao longo da carreira do Paulo sobre importantes temas, contando também com textos originais contemporâneos. Esse tipo de costura, que vai da Documenta de Kassel à Fundação Patrícia de Cisneros, a própria Fundação Louise Bourgeois, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Todas essas instituições tiveram diálogo com a gente, cedendo imagens. Temos telas com entrevistas, mais de 20 testemunhos de grandes artistas, curadores, cientistas, pesquisadores, colecionadores, que contaram sua história oralmente, assim como a digitalização de muita documentação que está ali: cartas, ofícios, manuscritos, bilhetes.
E para encerrar esse sobrevoo, acho que o ‘crème de la crème’, o coração da exposição, são os cadernos do Paulo, cadernos nos quais, ao longo de décadas, o Paulo desenvolve as suas mnemotécnicas, a estrutura de uma forma de registro da sua reflexão crítica. Tem mais de uma centena de cadernos em processo de digitalização e muitos deles, dezenas, estão expostos fisicamente. Cadernos que, às vezes, são relacionados a artistas, a temas de arte, a espaços físicos, a épocas temporais e às vezes atravessam, de fato, anos, décadas de trabalho crítico relacionado a Tomie Ohtake ou ao Japão ou à Bienal de São Paulo ou à 24ª Bienal ou a um tema como a pop art, ou a uma área, como o Piauí. Há essa estrutura de um projeto arquivístico, memorial, que esse colecionador certamente esteve por trás. O “pensamento esférico” é um conceito que foi pela primeira vez recuperado em relação ao trabalho de Herkenhoff pela (psicanalista) Tania Rivera, que foi uma das professoras e pesquisadoras que deu aula para o grupo de desenvolvimento dessa exposição. A gente coletou testemunhos de todo mundo que colaborou de muitas maneiras, e ela trouxe esse de volta esse conceito do “pensamento esférico”, conceito desenvolvido pelo próprio Paulo em conjunto com (o filósofo e historiador da arte Georges) Didi-Huberman. Acho que tem muito a ver com esse Paulo colecionador, a formação de uma estrutura de pensamento que se vê expansiva e que é capaz de, entropicamente, dar conta dos núcleos significativos, da expansão dos questionamentos críticos, e isso tudo ainda é para mim a ciência da informação com Paulo, que coleciona conhecimento, sistematiza e, por meio disso, se arvora na construção do que isso quer dizer em relação às artes visuais, sobretudo.
ARTE! BRASILEIROS: Quais são as obras inéditas dessa exposição, coisas que nunca foram exibidas antes? Pergunto porque não me lembro de ter visto antes aquele Volpi maravilhoso.
LENO VERAS: Tem ali uma cultura visual que vai do design de um banco com orientalismo, mineiro, barroco, ao design de caixa de engraxate no século XX no Brasil, no Rio de Janeiro. Tudo isso faz parte das coleções que o Paulo arregimentou. Então, tem muita coisa nessa exposição que nunca foi exposta antes. São coleções que o Paulo envolve no seu pensamento, objetos de culto, de religiosidade diversas, além de uma série de obras de arte trazidas pelos próprios artistas a partir dessa curadoria que se pensa mais como uma infraestrutura para a ocupação do pensamento do Paulo, que é orgânico, que vai sempre se enredar e transbordar e amalgamar as peças que estão ali. Mais da metade do que a gente vê foi trazida a partir da imersão na casa do Paulo, que é um gabinete de curiosidades ‘per se’, um grande relicário da sua própria vida, que vai de grandes peças de arte doadas ou adquiridas por ele ao longo do seu diálogo direto com os artistas, seu acompanhamento crítico, até na formação de grandes coleções, com perspectivas sobre a arte brasileira, como a coleção Fadel, a própria coleção Roberto Marinho, a coleção de Luiz Chrysostomo, para citar exemplos de pessoas que estão exercendo esse olhar na formação do acervo sobre a arte contemporânea relativa ao seu próprio tempo. E muitas dessas obras também fazem parte de acervos que foram, ao longo desse diálogo, sendo doados também para coleções públicas. Esse é um trabalho que o Paulo também realiza há décadas. Algumas dessas peças estão expostas na nossa ocupação justamente por terem uma relação muito pessoal. O azulejão da Adriana Varejão que está na exposição foi de propriedade do Paulo, foi uma das peças contemporâneas mais relevantes que se juntam a uma grande coleção histórica que vem lá dos neoconcretos, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Cildo Meireles. Muitos artistas com quem ele teve diálogo muito direto… Tomie Ohtake. São diversos. Beatriz Milhazes e contemporâneos, como Rosana Paulino, o próprio Emanoel Araújo. Às vezes, a gente pode fazer genealogias, relacionar geografias: ao Centro-Oeste, ao Nordeste, ao Norte. Você vai ver ali a Cláudia Andujar, Luiz Braga. São camadas de relações também com linguagens expressivas. Um estudo sobre a gravura. A gente vai ver Lívio Abramo, Rossini Perez, Maria Bonomi. E às vezes são exposições que ele está curando hoje mesmo, como a exposição no Passeio Imperial da Maria Bonomi, que está com 90 anos. E ao mesmo tempo você vai ver as aquisições de Maria Bonomi para coleções de 30, 40 anos atrás, feitas quando o Paulo estava à frente (da implementação) dessas coleções. A ideia, nesse sentido, foi de elencar obras inéditas, muitas vezes que ninguém conhece porque estavam nos corredores do apartamento do Paulo em Copacabana, ou estavam em coleções públicas que não têm uma visibilidade tão notória. Sobretudo coleções de grandes instituições públicas no Rio de Janeiro, que por vezes têm dificuldade na promoção e circulação de suas obras. A gente vai ver, por exemplo, a primeira representação de uma mulher negra pintada a óleo, que é do MAR; a primeira representação de um instrumento afrobrasileiro, que está no Museu Nacional de Belas Artes. São peças muito relevantes para o seu contexto sócio-político, histórico, mas que muitas vezes não estão sendo vistas em práticas de exposições de arte contemporânea. E a justaposição disso tudo é um dos principais trabalhos do Paulo, práticas que são tanto anacrônicas à luz do Didi-Huberman, Walter Benjamin. Você vai ter ali, posso dizer, talvez uma dezena, de obras que ou eram desconhecidas de um público mais amplo ou realmente pouco visibilizadas a partir da falta de acesso à mediação desses conteúdos. Até uma peça de um Aleijadinho. Que não são de interesse tão prioritário, digamos assim, para as práticas expositivas de arte presentes no nosso circuito contemporâneo. Isso também era um dos objetivos da exposição. E além disso, muitos artistas estão trazendo peças a partir da abertura. Sandra Cinto levou uma obra. Teve peças até da Ocupação Krenak, empréstimo simbólico que o Paulo fez no dia da abertura. Essa é a prática que está sendo desenvolvida ali na mostra: um exercício de reflexão sobre os processos curatoriais, editoriais, expositivos, colecionísticos, e pelo próprio Paulo. É uma celebração em vida que não teria melhor forma e método do que ele mesmo promover a estruturação e a desestruturação contínua e reflexiva, dialógica, fenomenológica, que é tudo que ele sempre fez sobre si mesmo, sobre o seu pensamento, sobre sua própria memória. Cada vitrine daquela foi montada com Paulo pelo Paulo, sobretudo justapondo cada um daqueles objetos. Onde você vai ver assim, tem lá a Medalha da Ordem do Mérito da Cruz que ele recebeu das mãos da própria presidente Dilma, ao lado da publicação que ele fez na Funarte, ao lado da fotografia dele com Adriano Pedrosa, na sua própria Bienal, justaposta com um vídeo dele atuando junto com o artista dentro do Pavilhão da Bienal. E aí vem uma obra do Sidney Amaral, contemporânea, que foi adquirida por consultoria do Paulo para a Coleção do Itaú Cultural quando nós fizemos a exposição Modos de Ver o Brasil, celebrando os 30 anos do Itaú Cultural na Oca, no Ibirapuera. Essa obra retrata o próprio Sidney em relação a um prédio modernista como o da Fundação Bienal sendo espelhado. Isso tudo está em discussão junto com o poster da 24ª Bienal. São essas práticas rizomáticas, de discussão conceitual, da repetição, do duplo, da remixagem. A gente está metodologicamente exercendo esse “pensamento esférico”. Fora a parte de livros que ele levou, livro do Krenak, livro da Lilia Schwarcz, uma presença forte da Heloísa Teixeira, por exemplo, tantos outros pensadores que ele traz para dizer: “Essas são minhas referências, não são só os livros que eu escrevi, são os livros que eu li” e por aí vai.
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Paulo Herkenhoff durante entrevista concedida em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 2009. FOTO: LUCIANA WHITAKE/FOLHAPRESS
Caderno MoMA, 2000. FOTO: REPRODUÇÃO
Paulo Herkenhoff na montagem da exposição Laços do olhar, no Instituto Tomie Ohtake, em 2008. FOTO: GREG SALIBIAN/FOLHAPRESS
Herkenhorff, curador-geral da 24ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Em suas mãos, a capa de catálogo original do escultor romeno Constantin Brancusi em homenagem a Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, em 1998. FOTO: NORMA ALBANO/FOLHAPRESS
O curador Paulo Herkenhoff. [FSP-Ilustrada-18.11.96]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA*** (Foto: Rodneu Suguita/Folhapress)
ARTE! BRASILEIROS: A Ocupação Herkenhoff poderia se concentrar somente no território das ideias, mas acabou sendo algo orgânico, com intervenções do próprio Paulo escrevendo em paredes, fazendo legendas e desenhos. O artista Herkenhoff é o denominador comum de todas as outras atividades: curador, ensaísta, crítico?
LENO VERAS: Uma das coisas mais difíceis de trazer para essa exposição da ocupação Herkenhoff foi o Paulo artista. O Herkenhoff artista está presente em algumas coleções, sobretudo de arte moderna e contemporânea brasileiros, mas de modo rarefeito. Os seus vídeos, videoarte e as suas fotografias, as intervenções em jornais impressos da época, são os vestígios de práticas mais amplas, de práticas mais performáticas, e que acho que são uma ponta do iceberg. A ocupação tem uma presença maior de um conjunto que está presente no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, que são sobretudo as intervenções em notícias de jornal da ditadura civil-militar no Brasil, feitas pelo Paulo enquanto obra. A gente tem um conjunto ali de seis peças, inclusive um pequeno caderno. Essas obras foram talvez o conjunto mais expressivo que a gente conseguiu encontrar fora dos conjuntos de documentação arquivística e biblioteconômica. Ou seja, o artista Paulo ficou pouco presente, pouco evidenciado e eu acho que esse foi um trabalho feito pelo próprio curador e crítico Paulo, o de se sobrepor ao artista Paulo. Creio que o próprio Paulo pensa na sua prática artística como algo de outro momento. Mas eu concordo com a pergunta de que o artista Paulo permeia todas essas práticas. Como uma construção relacional. Ela é um tanto oitentista, eu diria assim. Tem uma construção muito voltada para o pensamento de Lygia Clark, da arte como esse espaço de terapia conjunta — na melhor acepção dessa ideia de busca por uma cura no sentido de elucidação das dúvidas ou de construção de questões, uma prática educacional, que é o que permeia a prática editorial, a prática curatorial, a prática colecionista do Paulo. São sempre processos de interesse de construção de diálogo, construção de sentidos e questionamentos sobre o que esses sentidos querem dizer para a realidade do nosso tempo, para determinadas territorialidades. Estruturas de recepção de comunidades diversas, práticas que estão pensando o conhecimento a partir de uma chave educacional desse artista educador. Eu confundo o Paulo Artista com o Paulo Educador, porque (tudo) faz parte de um método que serve para ambas as frentes. E eu concordo plenamente que essa presença do Paulo na sua própria ocupação, desmontando a própria história, questionando, inserindo textualmente, no manuscrito, pregando adesivo na parede com um bilhete ou um cartão postal que ele comprou no museu no dia anterior, revistas que trouxe da banca de jornal enquanto trabalhava na montagem, essa forma de autodocumentação que culmina na abertura da exposição na qual Paulo reencena brevemente o videoarte Estômago, no qual ele ingere uma notícia de jornal no período ditatorial brasileiro. E, hoje, ele pega um pedaço de uma notícia de crítica de arte de jornal e faz esse mesmo processo, que é uma discussão antropofágica. Então, você vê o artista Paulo pensando através da prática performática nos anos 1970, o conceito antropofágico, comendo a notícia. Ele come a notícia sobre sua própria exposição. São formas críticas, eu diria. Distintas, mas dentro de um processo metodológico que, dentro da estrutura de sentido, está muito amalgamado, liquidificado, é tudo muito viscoso mesmo nessa leitura do Paulo. Tudo se contagia ali, tudo se mescla. E o artista Paulo é responsável por essa alquimia, por distribuir esses sentidos, pesá-los, medi-los, adicionar às vezes mais sal, às vezes mais açúcar, às vezes mais pimenta. Tem sempre um sentido de uma busca pela construção coletiva, um pouco sinestésica, do que essas peças de arte têm a dizer e, no caso das próprias obras, foi muito importante para quem não conhecia. Eu mesmo tinha pouco acesso a essas obras, (que permitem) entender de onde vem essa prática tão audaciosa, enquanto curador, enquanto escritor, enquanto crítico de arte, enquanto professor, enquanto educador, enquanto pesquisador. O Paulo foi catedrático do Centro de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo junto com a Helena Nader, tem fotos disso lá, numa cartografia de arte e ciência. Helena, pesquisadora de primeira linha da SBPC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. É o Paulo Artista se transmutando em todos esses outros Paulos, o Paulo Artista presente de maneira carnal na exposição, o Herkenhoff vivo, atuando dessa maneira. Quando ele dá a mão a um artista indígena, o Denilson Baniwa, a curadora amazônica Vânia Leal, e juntos vão à ocupação Ailton Krenak, que estava sendo montada no dia da abertura da Ocupação Herkenhoff, amigos que coexistem, e vai lá e pega emprestado pedras da cenografia do Krenak para ter a presença disso aqui, e traz as pedras com esses companheiros, para junto de uma obra que vem do colecionador Ricardo Ribenboim, com as cinzas do (incêndio do) Museu Nacional, que ele pediu empréstimo na semana da montagem da exposição, é de fato um vórtex, um furacão de relações. Acho que a liberdade dessas relações está baseada numa prática artística, que é educacional, que é crítica curatorial, e que pode, inclusive, questionar esses sistemas de conhecimento que às vezes se sobrepõem à própria linguagem poética.
Em sua 36ª edição, aberta no início de setembro, a Bienal de São Paulo reafirma seu papel de difusora de uma produção artística que se desenvolve distante do grande público, sendo acessível apenas a pequenos grupos de iniciados. Em 2025, a tônica da exposição parece ser a de mesclar linguagens suaves, que se orientam por uma relação pessoal e poética com o universo das coisas, muito calcada em fazeres tradicionais, sem grandes arroubos teóricos, técnicos ou emotivos. A isso se soma uma escolha por uma montagem fluida, gerando como resultado uma mostra aprazível, ventilada, que muito se assemelha à metáfora dos estuários, uma das várias utilizadas pela equipe curatorial para definir sua intenção de iluminar momentos de encontro fértil entre águas de diferentes naturezas, doces e salgadas.
Durante quatro meses — já que este ano o período de exibição foi dilatado em um mês, o grande público (estimado em cerca de um milhão de pessoas) terá acesso a uma seleção ampla de poéticas, de lugares e autores distantes a serem observados sem a ilusão de que se trata de um resumo do maior, do melhor, ou do mais novidadeiro, mas como reflexo de um esforço narrativo autoral. O panorama — ou melhor, o percurso — proposto por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e sua equipe de curadores assistentes, Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Keyna Eleison e Thiago de Paula Souza, tem alguns traços característicos. Suas principais qualidades residem numa visão alargada de tempo, na incorporação de formas de fazer e pensar a arte, nem a partir da obediência dos modelos eurocêntricos nem de combate feroz a eles. Nota-se na seleção uma quantidade ampla de artistas, de diferentes partes do mundo, que construíram uma gramática particular, mesclando ancestralidade e reinvenção da modernidade, como é o caso, por exemplo, dos pioneiros Ernest Mancoba (1904-2002) e do marroquino Farid Belkahia (1934-2014), figuras de destaque no modernismo africano e internacional.
Curiosamente, essa mesma fluidez e amplitude são indícios de um de seus pontos mais problemáticos: a desinformação. Bastante precária, a sinalização das obras faz com que o visitante perca um tempo precioso caçando o nome do artista e da obra, que pode estar no chão, na parede, em forma de QR-Code ou que simplesmente não exista. Convém destacar a inventiva intervenção nos pilares do edifício: alguns deles foram ampliados em sua circunferência para criar uma superfície larga o suficiente para abrigar um texto explicativo acerca dos temas e participantes de cada núcleo. Mas trata-se de uma leitura mais densa, que não substitui a referência mais direta da legendagem.
O que aparentemente veio para ajudar as pessoas a se guiarem pela mostra — uma subdivisão em “capítulos”, associados a uma paleta de cores variada — na verdade amplifica essa sensação de desnorteamento. Após familiarizar-se com o título siléptico, porém pleno de significado, tirado de poema de Conceição Evaristo (“Nem todo viandante anda estradas”), surgem os nomes dos capítulos. Além de herméticos (como “Fluxos de cuidado e cosmogonias plurais” ou “Cadências de transformação”), eles são tão abertos que não faltam exemplos de trabalhos que poderiam facilmente ser deslocados de um bloco a outro sem grandes perturbações.
A falta de informação e essa trama conceitual que se aplica sobre o chão da exposição — as obras — acabam por reduzir a força de seu impacto poético. É o caso da obra de Chaïbia Talal (1929-2004), que ganha uma nova e potente dimensão quando o espectador fica sabendo que essa marroquina, nascida em 1929, casou-se aos 13 anos, teve um filho, enviuvou aos 15 e só aos 25 tornou-se artista, autodidata, quando sonhou que estranhos lhe ofereciam papéis e canetas — vindo a ser, na década de 1960, a primeira marroquina a ter uma carreira internacional.
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Obras de Chaïbia Talal (1929-2004) expostas na 36ª Bienal de São Paulo. FOTO: LEVY FANAN / FUNDAÇÃO BIENAL
Obras de Chaïbia Talal (1929-2004) expostas na 36ª Bienal de São Paulo. FOTO: LEVY FANAN / FUNDAÇÃO BIENAL
Obras de Chaïbia Talal (1929-2004) expostas na 36ª Bienal de São Paulo. FOTO: LEVY FANAN / FUNDAÇÃO BIENAL
A menção a Chaïbia — ao lado de outras artistas como a brasileira Maria Auxiliadora (1935-1974) — nos permite enfatizar dois aspectos centrais dessa 36ª Bienal: a força do autodidatismo, da pulsão artística como elemento de organização (pessoal ou social) e o peso das mulheres no rol dos artistas selecionados, sendo esta talvez a mais ampla participação feminina da história das Bienais. São elas que respondem por parte significativa dos trabalhos de maior impacto visual da mostra, ao interagir com os espaços mais sacramentados do Pavilhão: a ganesa Theresah Ankomah (1989) recobre com um gigantesco tapete de folhas de palmeira trançadas a fachada frontal do prédio, cobrindo o rigor modernista com a persistência e imperfeição do gesto artesanal e do material natural, perecível. A francesa Laure Prouvost (1978) domina o vão central do pavilhão com uma obra viva e sonora, um conjunto de elementos como plantas, sementes e uma engenhoca feita em diáfano tecido cor-de-rosa, prenhe de ovos-luz, que dança sobre a cabeça dos visitantes. A nigeriana Otobong Nkanga (1974) ocupa as grandes paredes ao fundo do prédio, nos três andares, com suas tapeçarias impressionantes, que de longe parecem um tanto abstratas, mas que na proximidade revelam-se comentários dolorosamente críticos acerca de temas fundamentais como a debacle Ambiental.
Outros trabalhos interagem de maneira desafiadora com o espaço icônico, símbolo da arquitetura moderna de Oscar Niemeyer, como o camaronês Tanka Fonka (1966), que — na parte visual de um projeto que associa diferentes linguagens — subverte a coluna central do prédio, usando-a como suporte para uma abstração cromática vibrante, povoada por signos oníricos, que remetem à cosmogonia de artistas como Paul Klee e Wifredo Lam. Já Ana Raylander Mártis dos Anjos (1995) inverte o eixo natural do prédio e sua horizontalidade, fazendo com que suas esculturas totêmicas (feixes recobertos de elementos carregados de memória familiar) atravessem de um piso para o outro, lidando de forma comovente com a lógica estrutural e escultural do amplo pavilhão, desenhando uma nova possibilidade de espaço e ao mesmo tempo iluminando o icônico espaço que abriga bienais há exatos 68 anos. Um exemplo claro do que afirmou Alya Sebti em entrevista ao dizer que a expografia seria algo como “tirar o prédio de Niemeyer para dançar”. Esse mesmo jogo de movimento e negociação com o prédio se materializa na opção cenográfica de utilizar cortinas coloridas e translúcidas para diferenciar os “capítulos” e substituir as tradicionais divisórias. Apesar de excessivos em alguns momentos, esses maleáveis campos cromáticos têm grande efeito em parte da mostra, sobretudo no andar superior, tornando ainda mais potente apresentações como a da pintura gráfica e intensamente cromática, inspirada na arte corporal indígena, de Aislan Pankararu (1990).
Brasil e África são, do ponto de vista geopolítico, as duas grandes forças da Bienal. A imponência da seleção brasileira é notável, com uma participação diversificada e ampla. Apesar de algumas representações históricas, como a de Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Zózimo Bulbul (1937-2013), o peso da produção contemporânea (com um conjunto amplo de obras comissionadas) é majoritário. Destacam-se no segmento as participações de Marlene Almeida (1942), Márcia Falcão (1985), Gervane de Paula (1961) e Antonio Társis (1995). Oriundos de diferentes regiões do País e pertencentes a diversas gerações, eles também compõem um panorama plural de questões e linguagens, da pintura à instalação, da defesa da terra e crítica ao agronegócio à investigação da representação do corpo e da paisagem urbana, desordenada e caótica.
Diversidade semelhante está presente no outro grupo mais potente da mostra. Não apenas é grande o conjunto de artistas originários de países africanos, como a atual Bienal foi capaz de quebrar uma visão monolítica dessa produção, contornando estereótipos e mostrando uma grande diversidade de linguagens, interesses e investigações vinculadas ao presente do continente e da produção artística. Evidentemente, temas como apagamento da memória, colonialismo, opressão política e de gênero estão vivamente presentes, mas sempre em conexão àquela “intratável beleza do mundo”, um dos motes adotados como lema curatorial por Ndikung, parafraseando Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau.
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Ernest Mancoba Sem título, 1993.
Maria Auxiliadora, Sem título, 1973, Mista sobre tela.
Instalação da fachada frontal do prédio de Theresah Ankomah com folhas de palmeira trançadas.
Vista da instalação de Gervane de Paula durante a 36ª Bienal de São Paulo. FOTO: PATRICIA ROUSSEAUX
Vista da instalação de Gervane de Paula durante a 36ª Bienal de São Paulo. FOTO: DANIEL YAZBEK
Há, evidentemente, na Bienal um conjunto amplo de trabalhos de cunho mais político, que se insurgem em torno de questões candentes. É possível citar intervenções como a de I Gusti Ayu Kadek Murniasih (1966-2006), balinesa que foi violentada pelo próprio pai aos 9 anos e autora de uma obra que explicita e reelabora experiências traumáticas e violentas ou a impactante cena de um mar pegando fogo em vídeo do grupo Forensic Architecture/Forensis. Mas na maioria das vezes não há gritos. Nesta edição, as obras parecem mais sussurrar do que gritar, procurando desvios, resgatando memórias e, como indica o subtítulo escolhido (“Da humanidade como prática”), acumulando forças para lidar com um mundo em deflagração.