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O mundo reinventado de Hudinilson Junior para conferir em mostra

Hudinilson em seu ateliê
Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.

O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.

Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.

obra "Sem Título" do artista,
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.

Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.

Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.

Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.

Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Hudinilson Jr, Amantes e Casos

Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.

Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.

Hudinilson Jr.
Até 06 de setembro de 2019
Na Galeria Jaqueline Martins
Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo

Música melhora a matemática, teatro refina interpretação de texto

Nesta quarta-feira, 25, em Brasília, durante 10 horas, em uma jornada imersiva com a participação de uma centena de pessoas – especialistas e representantes públicos de quatro países (Alemanha, Colômbia, França e Brasil), secretários de Cultura e Educação de quatro estados do País (Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais e Bahia), três secretários de Estado do governo brasileiro e dezenas de especialistas, educadores e pensadores –, debateram-se as possibilidades, o histórico e as potencialidades de um tema de importância crucial para o futuro: a implementação da arte e da cultura na formação de crianças e adolescentes. Foi durante o seminário internacional Experiências Internacionais que conectam arte, cultura e educação. O simpósio foi realizado para apresentar e debater o estudo inédito Relatório de Boas Práticas: Recomendações para a Construção de Políticas Públicas de Arte, Cultura e Educação, realizado pela Fundação Itaú com apoio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ministérios da Educação e da Cultura e Inep.

A meta do encontro era muito clara: apresentar evidências concretas das inúmeras vantagens de se incluir, na educação de crianças e adolescentes, o contato com currículos artísticos integrados. De posse dessas informações, o poder público terá, futuramente, condições de trabalhar de forma concreta no impulsionamento de políticas públicas “mais equitativas e inovadoras” de incremento social, conforme o estudo. Os resultados mostraram o que é até evidente: a integração das artes aos currículos das escolas melhoram o desenvolvimento socioemocional dos jovens, a participação, os laços sociais, aumenta a pontuação em provas de escrita e ajuda estudantes com baixo desempenho, porta a melhores resultados acadêmicos futuros. Há resultados específicos entre as estatísticas apresentadas, como por exemplo; a educação musical na escola melhora as habilidades cognitivas, como consciência fonológica, matemática e velocidade de processamento; e a educação teatral ajuda a desenvolver habilidades verbais e a interpretação de texto. Um exame dos resultados do PISA (Programme for International Student Assessment, ou Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, realizado a cada 3 anos pela OCDE) identificou uma relação positiva entre a participação dos jovens de 15 anos em atividades artísticas e culturais e o desempenho acadêmico em matemática e leitura em alguns países (como Canadá, Estônia, Noruega e Reino Unido).

Não são conclusões das quais a sociedade já não tenha consciência: segundo o estudo, no Brasil, 8 em cada 10 pais ou responsáveis de crianças e adolescentes pedem para o poder público aumentar a oferta de atividades culturais nas escolas; 80% dos estudantes afirmam que gostariam de ter mais atividades culturais nas escolas; e 38% citam a escola como o local em que têm efetivo contato com atividades culturais. Mas, para os realizadores do simpósio, o Brasil (e boa parte da América Latina) ainda enfrenta um ambiente árido para que se demonstrem concretamente esses benefícios e suas vantagens, daí a importância desse primeiro estudo e do debate que acarretou. “Sabemos que é importante, mas constrangemos sua aplicação”, disse Esmeralda Macana, coordenadora do Observatório Fundação Itaú. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Brasil, documento normativo que orienta o planejamento pedagógico nacional, tem cinco menções às artes em sua conformação.

Diana Toledo, executiva do Education Policy Outlook da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável por apresentar esse primeiro relatório (que é resultado de um acordo entre Fundação Itaú e o governo brasileiro em 2024), elogiou a postura do Brasil em trabalhar com constância e continuidade na coleta de dados e explicou a relevância da parceria da OCDE com os dois ministérios e com a Fundação Itaú. “(O Brasil) é um contribuinte muito importante, coletando dados e informações de qualidade”, assinalou.

Há diversos estudos recentes realizados no Brasil que atestam como os setores artístico e cultural têm contribuído de forma considerável para o crescimento econômico e promovido habilidades e capacidades de inovação que terminam beneficiando outros setores, além de criar postos de trabalho qualificados. Entre 2012 e 2020, a taxa média de crescimento anual da economia da cultura e do setor criativo foi de 2,2% ao ano, em comparação a -0,4% da economia nacional em geral, segundo dados levantados em 2022 pelo Observatório Fundação Itaú.

Os painéis do dia foram capitaneados tanto por especialistas e ativistas independentes quanto por dirigentes do Estado brasileiro, e foi interessante observar a sinergia entre essas forças em relação ao assunto debatido. Fabiano Piúba, que é Secretário Nacional do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura (MinC) leu um pequeno manifesto escrito, com grande receptividade, e relatou uma experiência quando secretário de Cultura do Ceará, entre 2016 e 2022, quando promoveu um programa de oferta de projeção de filmes para escolares no Cine São Luiz. Ali, ficou sabendo que para quase 100% dos estudantes (e também dos professores) participantes, aquela era a primeira vez que entravam numa sala de cinema, exclusão cultural a que chamou de “perversidade”.

Kátia Schweickardt, secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, após emocionar os presentes ao falar de sua experiência em comunidades ribeirinhas da Amazônia, de onde é oriunda, demonstrou grande engajamento do governo federal na problemática apresentada. Após definir-se como mulher preta, destacou que, à revelia disso, não é pautada apenas pela pauta identitária e que, para seguir a orientação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, de ampliar a jornada escolar, vê necessidade também de expandir os ambientes, e a cultura se adequa com precisão a essa demanda. “O Bumbódromo é um grande espaço educador, assim como as escolas de samba e todos os mestres da cultura”, afirmou. Kátia destacou que, desde que Lula iniciou o programa Escola em Tempo Integral, em 2023, o percentual de municípios que tinham políticas de educação integral pulou de 17% para 66%, com quase 2 milhões de matrículas.

Marcela Rocio Herrera Oleas, especialista científica do DLR Projektträger da Alemanha, falou sobre a instituição Kultur Macht Stark, e afirmou que a experiência alemã, que atendeu 1,5 milhão de participantes desde 2013, com mais de 50 mil atividades culturais e 50 milhões de euros de investimento, se baseia numa filosofia muito básica: as ideias têm que vir de baixo, e que antes de se iniciar um movimento social, deve-se iniciar um movimento de base, permitindo que apareçam várias soluções para lugares diversos, e não apenas uma para todos. Cada núcleo do Kultur Macht Stark deve ter pelo menos três parcerias locais para se realizar. O perfil dos professores, em geral oriundos da classe média, também não dá conta da especificidade de cada comunidade, por isso é importante envolver atores locais, de clubes a igrejas. “Não é só comer o pastel, mas inventar a receita”, afirmou.

Solmar Diáz, do Ministério da Cultura da Colômbia, falou sobre a experiência de educação integral em seu País e disse que, para o governo, trata-se de uma aposta estratégica de ressignificação do tempo escolar – nesse processo, se reconhece a integralidade do ser humano, algo que pode permitir o pleno desenvolvimento das dimensões da personalidade, com um reconhecimento cultural, socioafetivo e cognitivo das potencialidades de cada indivíduo. Na Colômbia, explicou Solmar, a ação educativa nas áreas recém-saídas de conflitos impõe também o reconhecimento de uma “pedagogia crítica do corpo”, para fazer frente aos traumas de guerras.

Instado a comentar como os indígenas brasileiros encaram tais questões, o escritor e ativista Daniel Munduruku brincou: “Tá todo mundo querendo adotar o modo indígena de educar”, divertiu-se. “Quem sabe agora a gente passe a ouvir as populações originárias”. Munduruku explicou que a experiência indígena, embora diversa no País, pressupõe uma educação para o todo, sistêmica, e sua tradição não vê as coisas de forma separada há muito tempo – arte e cultura não estão dissociadas de todas as outras atividades cotidianas. Ele contou o caso que lhe foi relatado pelo indigenista Orlando Villas-Boas, de uma mãe que fazia cerâmicas muito refinadas e o filho pequeno, assim que ela finalizava um vaso, ia lá e o quebrava. E a mãe fazia outro igualmente bem-acabado. Villas-Boas foi até ela, inconformado, para perguntar porque não fazia um vaso qualquer, feinho, já que seria mesmo quebrado. Ela respondeu-lhe que era assim mesmo que fazia. Ou seja: não se trata de dar destinações diferentes às coisas, elas são como devem ser.

O presidente da Fundação Itaú, Eduardo Saron, que abriu o simpósio, destacou que o fato de a escola ser o equipamento público mais presente no território brasileiro projeta a educação como “o catalisador das soluções, não só para o processo de ensino-aprendizagem, mas também das soluções (para as questões) que os territórios oferecem, a partir deste catalisador chamado escola pública”, capaz de contribuir para o desenvolvimento de uma nova subjetividade.

O secretário de Cultura do Espírito Santo, Fabrício Noronha (que também preside o Fórum Nacional do Secretários de Cultura), afirmou que esse novo e desafiador momento da educação no País abre perspectivas também novas, cujas demandas podem ser incorporadas às políticas do Sistema Nacional de Cultura (SNC), e que exigem uma convergência de agendas à qual ficará atento. “Saio daqui muito inspirado para várias ações lá no nosso território”, afirmou, adiantando que a inauguração do Cais das Artes, centro arquitetônico ousado de Paulo Mendes da Rocha prestes a ser inaugurado, deve abrigar projetos da rede estadual de formação do Espírito Santo.

Bel Mayer, educadora e coordenadora do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Apoio Comunitário (IBEAC), expôs em um dos painéis a experiência de conquistar bibliotecas comunitárias no bairro de Parelheiros, na capital paulista, algo que parecia impossível há alguns anos (não havia nenhuma) e hoje o bairro já conta com um conjunto de seis instituições. Ela disse que é preciso adotar novas políticas de estímulo para as produções culturais, alertando para uma prevalência de editais de apoio pelo País todo. Recordou de amigos que chegam se lamentando que deixaram de se classificar para um edital por 0,2 ponto e que isso não lhe parece justo. “O que significa 0,2 ponto para engavetar um projeto de cultura?”. Bel lembrou uma consideração que ouviu do antropólogo mineiro Tião Rocha: “É preciso deixar de é-ditais para passar a ser é-de-todos”.

O jornalista Jotabê Medeiros viajou a Brasília a convite da Fundação Itaú

Livro sobre Zé Celso nos abre apetite de vida

O devorador: Zé Celso, vida e arte
Livro: O devorador: Zé Celso, vida e arte

Entrevistas, depoimentos históricos e ensaios inéditos compõem um banquete editorial sobre José Celso Martinez Corrêa — o Zé Celso, fundador do Teatro Oficina. Lançado em maio de 2025, o livro da Edições Sesc presta homenagem ao famoso encenador, que marcou a história da arte brasileira por suas críticas políticas, pela antropofagia posta em palco e pela escolha de uma poética que celebrava a liberdade. O devorador: Zé Celso, vida e arte é organizado pelo jornalista Claudio Leal e compila textos de autorias diversas para nos servir um retrato multifacetado do artista, que faleceu em julho de 2023 aos 86 anos. 

Nascido em 1937, em Araraquara (SP), José ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco nos anos 1950; mas ao invés de tornar-se advogado, uniu-se a outros estudantes para criar um grupo teatral. Em 1961, profissionalizaram o Teatro Oficina,“destinado a questionar, provocar, inverter, convulsionar tudo”, como pontua o escritor e jornalista Ignácio Loyola Brandão. 

A companhia mudaria sua composição e sua linguagem estética ao longo dos anos, persistindo ainda hoje como importante coletivo artístico. Se em 1964, o crítico de arte Sábato Magaldi se referiu a uma das montagens do grupo — Pequenos burgueses, do dramaturgo Máximo Gorki — como “o melhor espetáculo realista que o Teatro Brasileiro já encenou”; em 1967, eles surpreenderam. Mudaram os rumos do teatro nacional com a primeira encenação de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade. As diversas peças que se seguiram na história do Oficina, propuseram resistência artística à ditadura civil-militar brasileira e uma crítica latente à classe média. Nos anos 1990, deram traços brasileiros à tragédia grega, com a icônica encenação de As bacantes, de Eurípedes e, nos anos 2000, reconstruíram Os sertões, de Euclides da Cunha, para pensar o massacre de Canudos e as possibilidades de desmassacre nas Canudos modernas. Desde a fundação, como grupo amador, Zé esteve na linha de frente da companhia. “Foram mais de trinta grandes espetáculos e ele se excedeu em cada um”, destaca Ignácio Loyola Brandão. No dia de sua morte, consequência de um incêndio no apartamento onde morava, Zé seguia trabalhando, desta vez dedicado a uma montagem teatral de A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. 

Assim como nesta matéria, em O devorador, o diretor e o Teatro Oficina são duas esferas que por vezes se misturam. A história do criador e da criatura não são a mesma, mas se entrelaçam e atravessam. Isso talvez seja explicado pelo fato de que, como escreve Bete Coelho para o livro, Zé tinha um “modo de viver em que não se separa vida da profissão”.  

O banquete 

Em um dos primeiros textos dessa leitura, o músico José Miguel Wisnik nos alerta sobre outra característica central de Zé: “seu apetite de vida em ato era assombroso”. A publicação parece espelhar isso, já que só redigir um perfil do artista não daria conta dessa fome de mundo. 

Como conta a artista Monique Gardenberg, “Zé era seu interesse pelas coisas, pelo outro. A quantidade de perguntas que me fazia. Quando falávamos ao telefone, ficávamos horas. O mundo precisava parar, ele queria saber de tudo. O que eu estava lendo, se estava gostando, por que estava gostando, o que tinha achado de determinado filme, no que estava trabalhando”. O devorador se constrói assim, propõe uma longa conversa, que vai do íntimo de José — com textos pessoais de familiares e amigos de longa data, bem como fotos da infância — às esferas amplas de seu trabalho teatral e os registros fotográficos do mesmo.

A publicação leva o título um passo além e parece trazer para si o instinto antropofágico, ao devorar características do próprio Teatro Oficina. Como as peças da companhia, é de longa-duração: construída em 11 atos em mais de 500 páginas altas — um livro de grande estatura, que nos remete à arquitetura da sede do grupo, projetada por Lina Bo Bardi e Edson Elito na Jaceguai 520. Fazendo par aos numerosos coros das peças de Zé Celso, traz um numeroso conjunto de autores e entrevistados — 49 para sermos exatos. Dentre esses nomes, estão grandes artistas da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia; nomes que marcaram a história do teatro, como Gerald Thomas e Ruy Cortez; figuras centrais no Teatro Oficina do ontem — como Ítala Nandi e Renato Borghi — e do hoje — como Camila Motta e Sylvia Prado; teóricos que acompanharam Martinez Corrêa na história da arte brasileira e Marcelo Drummond, que acompanhou José nos amores da vida. 

O livro conta ainda com projeto gráfico de Mateus Valadares, que revela uma lombada de costuras aparentes, uma capa tripla que se desdobra em pôster e um caderno de imagens colorido com fotos de diversos períodos da vida-obra do encenador. 

 

A boca que tudo come

“Perdoem este texto pessoal, não tem outro jeito”, grafa Ignácio Loyola Brandão em seu relato sobre o amigo Zé Celso. Não perdoamos, mas agradecemos. Há beleza em sermos conduzidos por alguns textos neste tom, que mergulham no íntimo da celebridade teatral brasileira para nos lembrar que “o Zé era uma pessoa normal. Precisava comer, cagar, tomar banho. Horas no banho enquanto não secasse a Cantareira”, como relata Marcelo Drummond.

Em paralelo, textos como os dos professores Silvia Fernandes e Paulo Bio Toledo permitem um olhar teórico às contribuições do encenador para a cena artística e política nacional. Nos conduzem por suas referências, o contato com Glauber Rocha, o contexto que permitiu o nascimento do Teatro Oficina — junto ao Teatro de Arena e paralelo ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Assim, transformam o livro em um importante material de estudo para pesquisadores da área, para além de um memorial bonito e nostálgico. 

Somos ainda conduzidos a descrições detalhadas e históricas de quem viveu montagens dirigidas por Zé Celso, como é o caso do texto de Camila Mota sobre Os sertões; ou lutou ao lado dele pelo Parque do Bixiga, como a arquiteta Marília Piraju. Nos deparamos também com ensaios poéticos e inventivos em linguagem, como o de Letícia Coura, artista do Teatro Oficina, e os escritos do próprio Zé Celso (que com seus negritos, caixas altas e espaçamentos, dão corpo à palavra). 

Isso porque, o encenador não deixaria um ensaio literário como esse sem alguns momentos de sua interrupção. Ao longo do livro, Claudio Leal cuidadosamente costura textos antigos de Zé, que complementam o panorama de cada capítulo. Assume também a ousadia de colocar no livro concordâncias e discordâncias dessas visões de mundo do homenageado. 

“O Zé provocava. Ele não tinha problema com a adversidade, tampouco com a diversidade”, diz Bete Coelho. E, assim, encontramos diversidade e adversidade ao folhear o livro. As opiniões conflitantes das atrizes Myriam Mehler e Ítala Nandi sobre os gestos radicais no Teatro Oficina são um exemplo. Bem como a sequência de textos sobre O rei da vela. Nela, somos confrontados com a dura preferência de Augusto de Campos pelas poesias e escritos de Oswald frente à encenação histórica do Teatro Oficina e, na página seguinte, é Tom Zé que nos pega à mão, conduzindo pelo pranto emocionado que viveu em 1967 ao sair do teatro de “coração rasgado” com a peça que revolucionaria o teatro brasileiro.

É com essas contracenações que O devorador: Zé Celso, vida e arte conta a história de Martinez Corrêa, da infância às prospecções de um futuro – agora sem Zé. Como pontua o ator Renato Borghi, “Zé Celso mudou o panorama do teatro brasileiro”. De agora em diante, como diz Camila, é preciso “adorar seu trabalho e seu legado que está presente em muitos corpos, estilhaçado em mil pedaços, devorado por muita gente”. 

Ítala Nandi lembra que quando o Teatro Oficina pegou fogo, em 1966, enquanto ela e outros atores choravam, “Zé sumiu e voltou de terno. Ele ficou tirando fotos em cima dos escombros, dizendo: ‘Aqui vai surgir um novo Teatro’”. Frente ao novo incêndio, de 2023, a companhia segue trabalhando essa herança teatral e essa força para fazer um novo teatro. Como encerra Camila Mota, “vai dar um trabalhão… Tudo a fazer!”.

O México de André Toral

André Toral

Em “Relatório de Viagem”, exposição que inaugura neste sábado, 14 de junho, na Graphias, André Toral reúne um conjunto diverso de trabalhos produzidos a partir de um encontro concreto – e simbólico – com o México. Combinando estratégias de reportagem visual, garimpo iconográfico e sobreposição de estereótipos oriundos da memória coletiva, o artista estabelece um painel difuso, sobrepõe tempos históricos distintos e explora um leque amplo de experimentações compositivas e técnicas. Como num jogo de memória, ou numa lógica de quebra-cabeça, o espectador se vê diante de uma espécie de charada visual. 

Toral não apenas associa ícones distintos (como uma indígena de costas, com traje e penteado típico, seres oriundos da mitologia mexicana, fragmentos da arquitetura colonial do país, lutadores mascarados que mais parecem super-heróis ou a indefectível paisagem de cactos), como os desloca de contexto. Um mesmo signo transita de trabalho em trabalho, passeia pelos diferentes suportes, mantendo uma aura de mistério, e dando vazão a uma profunda experimentação formal, que retira dos quadrinhos e da gravura (as duas principais atividades do artista) seus principais elementos.

Para compor aquilo que chama de “seu relatório de viagem”, todas as suas armas parecem ter sido convocadas, num interessante amálgama de técnicas e referências, criando um fluxo imagético contínuo, porém díspar. Água-tinta, água-forte, desenhos preparatórios, aquarelas sobre “impressões fantasmas” (obtidas sem entintar novamente a matriz, capturando apenas as marcas sutis das impressões anteriores), somadas a uma aventura ainda recente pelo campo da pintura (representada por quatro telas à óleo) compõem essa sedimentação de memória imagética de uma cultura da qual só podemos nos aproximar pelas beiradas, propositalmente deixando escapar muito por entre os dedos. Nas palavras de Toral, trata-se de um universo a ser tomado como referência, um motivo escolhido para, “como numa colagem”, elaborar “uma espécie de etnografia do imaginário, pessoal e coletiva, imprecisa e ao mesmo tempo baseada em fontes, contraditória e ordenada como são os sonhos e as memórias”. 

Escavações apontam vestígios do primeiro cemitério público da América Latina

Por Caroline Vieira

Em 1835, na região conhecida como Campo da Pólvora em Salvador, Bahia, foram mortos quatro africanos condenados pela participação na Revolta dos Malês. Os corpos foram enterrados numa cova comum de um cemitério vizinho destinado a indigentes e escravizados. Esta afirmação foi escrita pelo historiador João José Reis e publicada no livro Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil em 2013. 

A morte aplicada a esses africanos, considerados rebeldes, ganha tintas ainda mais violentas ao sabermos que foram enterrados em uma cova comum, em um cemitério que foi apagado da história. Pelo menos era o que parecia até então, quando foi comunicada à imprensa no dia 26 de maio de 2025, que escavações preliminares confirmaram a existência de ossada no antigo cemitério dos africanos no Campo da Pólvora em Salvador, na Bahia. 

A localização aconteceu a partir de uma pesquisa em desenvolvimento por Silvana Olivieri. Ela nos conta que o processo se deu a partir do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA e, também, de sua vivência no candomblé e do seu envolvimento com os debates contemporâneos do campo da filosofia e da antropologia, buscando mostrar como os processos de urbanização têm servido ao que Ailton Krenak chama de “guerra de mundos”. 

“Fazendo pesquisa de campo em Belém, em maio do ano passado, soube que existia um antigo cemitério de pessoas escravizadas, indígenas e indigentes, soterrado pela urbanização. Voltei para casa com uma questão: haveria um cemitério similar em Salvador, que eu desconhecia? Após duas semanas de intensa investigação, não apenas descobri a existência do cemitério do Campo da Pólvora, como consegui identificar sua localização exata, informação ausente dos estudos e trabalhos historiográficos recentes relacionados ao espaço fúnebre”.

“Inicialmente, a evidenciação ocorreu por meio do cruzamento de mapas e plantas de Salvador do século 18 com uma imagem de satélite da área, que foi sendo anexada a outros documentos bibliográficos (livros e artigos de revistas) que mencionavam o destino do terreno do cemitério após sua desativação em 1844, tudo indicando que o cemitério estava localizado sob o estacionamento do Complexo Pupileira, imóvel da Santa Casa de Misericórdia, no bairro de Nazaré”, situa Olivieri. 

A pesquisadora relata que entre a localização espacial do cemitério até a montagem de uma comissão envolvendo arqueólogos houve um grande processo. “Juntamente com Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito e coordenador do Programa Direito e Relações Étnico-Raciais da UFBA, elaboramos um dossiê reunindo toda a documentação relativa à localização do cemitério do Campo da Pólvora e, no fim de julho (2024), encaminhamos ao IPHAN, acompanhado de uma solicitação de apoio institucional para realizarmos uma pesquisa arqueológica no estacionamento do Complexo Pupileira, em busca de restos mortais das pessoas sepultadas no antigo cemitério”, explica. 

“Inicialmente, as tratativas com a Santa Casa para obtermos a autorização para realização da pesquisa arqueológica foram conduzidas pelo IPHAN. Diante das dificuldades encontradas, em dezembro, pedimos apoio também do Ministério Público da Bahia, mais especificamente do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural – NUDEPHAC. No fim de março, através de um Termo de Cooperação Técnica elaborado por quatro promotores do MP, a Santa Casa finalmente autorizou a realização da pesquisa. Coordenada pela arqueóloga e antropóloga Jeanne Dias, que havia se juntado a nós ainda em julho, a pesquisa financiada pela empresa Arqueólogos com recursos próprios aconteceu entre os dias 13 e 23 de maio de 2025, sendo achados remanescentes ósseos humanos nas duas primeiras sondagens”.

Nesse primeiro momento, segundo informação da arqueóloga Jeanne Dias, “a pesquisa teve um caráter de diagnosticar, ou seja, localizar a presença dos vestígios desses enterramentos no local, cujo êxito foi alcançado no dia 19 de maio quando identificamos os fragmentos ósseos humanos a partir de 3 metros de profundidade”. Uma das maiores dificuldades relatada pela arqueóloga foi justamente a enorme densidade do aterro, o que dificultou a chegada até uma camada arqueológica considerada interessante para a pesquisa.

Os primeiros vestígios foram identificados a partir do quinto dia, numa área equivalente a aproximadamente três vagas, pois o cemitério também foi “enterrado”, como uma forma de ocultar esse episódio da história do Brasil na Bahia e dos escravizados. Com os achados da pesquisa, o cemitério pode ser identificado como um dos maiores cemitérios públicos da América Latina. A estimativa é que lá tenham sido enterrados mais de 100 mil corpos ao longo do período em que o espaço funcionou com essa finalidade. Segundo fontes históricas, o cemitério foi primeiro administrado pela Câmara Municipal e, logo depois, foi assumida a responsabilidade pela Santa Casa da Misericórdia. 

Historicamente, sabia-se da existência desse suposto cemitério ali pela área do Campo da Pólvora, mas a pergunta que fazemos aos envolvidos é a seguinte: Por que a demora em identificar, localizar e reconhecer esse espaço?

Os estudos e trabalhos historiográficos recentes, explica a pesquisadora Silvana Olivieri, que “falavam do cemitério do Campo da Pólvora, especialmente o livro A morte é uma festa, de João José Reis, publicado em 1991 e reeditado em 2022, não revelavam sua localização exata, nem o que aconteceu com o lugar após ter sido desativado pela Santa Casa, em maio de 1844. Essa lacuna na historiografia certamente contribuiu para a demora em achá-lo. Pode ter contribuído também a afirmação de Reis de que os restos mortais pertencentes ao antigo cemitério foram transferidos para o novo cemitério do Campo Santo. Ora, se os restos mortais tivessem sido realmente removidos, não haveria praticamente nada mais a se achar ali, com o local perdendo seu interesse arqueológico. Essa hipótese caiu por terra ao acharmos os restos mortais durante as escavações”, contextualiza Olivieri.

“A Santa Casa, por sua vez, embora declarasse publicamente não saber a localização do cemitério do Campo da Pólvora, nos encaminhou em dezembro a escritura de compra e venda da Pupileira, onde consta que o imóvel compreende “o terreno que serviu antigamente de cemitério”. Isso nos permite concluir que a instituição sempre soube que o antigo cemitério ficava na parte frontal do seu imóvel, escondendo essa informação da população, colocando um estacionamento em cima dos mortos”, ratifica. 

A descoberta dos ossos humanos no Cemitério do Campo da Pólvora remonta a 150 anos de história acerca desse espaço forjado no século 18. Um local altamente precarizado e que revelava como a sociedade baiana enxergava aquelas pessoas. O fato é que grupos humanos foram enterrados sem nenhum rito religioso. Perguntamos a Silvana como era feito o transporte dos corpos pela Santa Casa e se aquelas pessoas puderam, ao menos, ser identificadas. 

Novamente em A morte é uma festa, uma das principais referências da nossa pesquisa, João José Reis diz que “os sepultamentos no cemitério do Campo da Pólvora eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre, nem há registro de capela. O transporte dos corpos para o cemitério era feito nos banguês, esquifes mais simples e baratos da Santa Casa, que detinha o monopólio do serviço funerário na época. Os Livros de Banguê, coleção de 11 volumes muito bem conservada pela Santa Casa, trazem informações preciosas sobre as pessoas levadas nos banguês para sepultamento no cemitério entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a etnia, completa Silvana. 

Apesar desse terrível fato histórico, com a descoberta do espaço, real localização e a finalização das escavações no dia 23 de maio, o antigo cemitério do Campo da Pólvora foi registrado pelos arqueólogos no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN como “Cemitério dos Africanos”, portanto já se encontra salvaguardado e protegido pelas normativas do IPHAN para esse tipo de patrimônio cultural e histórico, e agora a Santa Casa tem a responsabilidade de preservá-lo. Assim que o relatório arqueológico for concluído, o Ministério Público deve convocar uma audiência pública para ouvir as comunidades negras de Salvador sobre o cemitério, e se decidir quais devem ser os próximos passos. Uma das ideias que pretendemos discutir na ocasião é a criação de um memorial/museu, como já ocorreu/vem ocorrendo com outros cemitérios de escravizados localizados em cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo”, finaliza Silvana Olivieri. 

A arqueóloga Jeanne Dias espera também que haja por parte da população um interesse em acompanhar os desdobramentos a partir das audiências públicas mediadas pelo Ministério Público, com a entrega do relatório final. Para Dias, esse tipo de descoberta proporciona “um acerto de contas com a História, gerando um engajamento na sociedade Brasileira e sobretudo na sociedade baiana, no que tange à discussão acerca do racismo e da discriminação social. O achado pode ser também uma oportunidade para falarmos um pouco mais sobre a história desses indivíduos nesse período sombrio, um período recente, mas que deixou máculas na sociedade e que, até hoje, a gente sente. E para pensarmos acerca da formação de uma memória coletiva sobre populações negras que vieram de África e que foram desumanamente tratadas e indignamente enterradas”. 

Por fim, que essa importante descoberta, encabeçada pelas duas pesquisadoras, Silvana Olivieri e Jeanne Dias, sirva, senão para dar dignidade àqueles que foram enterrados como seres abjetos, para iluminar o presente, impedindo que condições semelhantes se repitam nas favelas das capitais brasileiras.

Uma breve escrita sobre o desenho

O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
Por Tatiana Eskenazi*

Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Paulo Leminski

No princípio, era a linha. Do primeiro traço humano, registrando o gesto, à elaboração da linguagem. Antes mesmo, do humano: a linha que dá forma ao mundo. Partindo de um paradoxo, “como um traço contínuo de uma só dimensão pode ser um corpo?”, e nos paradoxos reside um imenso potencial criativo, em seu novo livro O corpo da linha: notações sobre o desenho, a artista e escritora Edith Derdyk percorre um trajeto que não é linear, mas que segue um fio da meada em torno da linha e suas infinitas possibilidades, e propõe uma investigação sensível e profunda sobre o ato de desenhar.

O livro se organiza como uma costura de fragmentos (pequenos ensaios, aforismos, imagens e provocações) que se conectam por um fio condutor: a linha. Essa linha, no entanto, não é apenas formal. É também existencial. “A linha é condutora de uma experiência que atravessa o corpo, é território de trânsito entre o dentro e o fora”. Não à toa, por vezes, temos a impressão de tratar-se de um grande poema, um manifesto, ou um livro de artista. 

E se o corpo da linha quem dá é a mão que alinhava, assim a autora o faz. A linha como processo, em um alinhavar contínuo, “o gosto pelo caminho sem destino”. A intenção é esgotar a linha em todas as suas possibilidades — ainda que isso seja impossível. “E, porque inalcançável, impulsiona o eterno desejo de deslocamento, vocação da linha.” Porque aqui, nada importa mais do que o processo, a investigação, da arqueologia da linha a novas formas de ver e traçar futuros possíveis.

Articulando referências de diferentes áreas — filosofia, literatura, artes visuais — para aprofundar seu pensamento, somos conduzidos por um coro de autores, artistas e pensadores ao longo do trajeto. Foucault, Deleuze, Deligny, Simondon, Ponty, Valéry, Lispector, Mario de Andrade, Fernando Pessoa e muitos outros aparecem como vozes que se entrelaçam à sua reflexão, dando corpo ou ajudando a construir esse corpo em movimento da linha. Essas referências, no entanto, não se impõem como autoridade: são partilhadas como companhias de percurso, numa construção coletiva. “Não é uma citação que justifica, mas uma citação que pulsa, que vibra junto”.

Em O corpo da linha, Derdyk propõe pensar o desenho como uma forma de conhecimento sensível e intuitivo. Mais do que uma técnica, o desenho é apresentado como experiência do corpo, gesto de pensamento e modo de habitar o mundo. “Desenhar não é apenas traçar, é inscrever-se, é um modo de escuta, uma forma de estar presente”. O desenho como a língua mais antiga, “tão antiga  e tão permanente que atravessa o arco das civilizações, nosso convívio coletivo.” 

Uma das ideias centrais do livro é que o corpo está presente em todo gesto de desenhar: “O corpo inteiro está na ponta do lápis…” E não só o corpo físico, mas também o corpo simbólico, poético, político. “A linha é o corpo em estado de pensamento. É o corpo que pensa enquanto se move”. Ao desenhar, traçamos caminhos, criamos sentidos, fazemos escutas visuais, deixamos nosso rastro no mundo. 

Derdyk questiona as hierarquias tradicionais que opõem palavra e imagem, pensamento racional e sensível, teoria e prática. “O desenho não é ilustrativo, é constitutivo. Ele não representa, ele apresenta”. Recusa a normas que aprisionam os desenhos e o livre pensar, que reduzem nossas possibilidades de habitar o mundo. “Escapar da submissão do gesto que, sob o comando do olhar, por vezes subjuga todos os outros sentidos à informação da linha como contorno, e a decorrente suposta fidelidade ao referente, será aqui o nosso aprendizado, o nosso desafio.”

Para nos guiar por esse desafio de abandonar a ideia de linha como contorno, as formas fixas e estáticas, herança da linha cartesiana, a autora propõe dezoito novas possibilidades de linhas, cada uma acompanhada por citações que as disparam: linha-lama, linha-imensurável, linha-membrana, linha-aparição, linha-cartopográfica, linha-deriva, linha-é, linha-acontecimento, linha-emancipada, linha-performativa, linha-horizonte, linha-transitiva, linha-rasura, linha-nômade, linha-projétil, linha-fantasma, linha-teia e linha-destino. 

O livro também é uma defesa da potência do fazer manual, da lentidão, da atenção ao detalhe (práticas que resistem ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo), e da valorização do erro como potência. “A linha que erra abre possibilidades. O erro, nesse contexto, não é falha, é desvio criativo”. O traço vacilante, a linha que hesita, o gesto interrompido: tudo isso ganha valor como parte do processo. Assim como a vida, o desenho é feito de incertezas. E é justamente aí que reside sua força.

Por fim, O corpo da linha não é somente um livro sobre desenho. É uma obra sobre o gesto de existir com atenção, curiosidade e entrega. Um convite à escuta, ao movimento e à presença. Como diz Derdyk: “O desenho é o intervalo entre o olhar e o gesto. É o tempo suspenso do corpo que pensa”. Só com um olhar atento, presente e curioso — entregue à escuta e ao movimento — é que podemos caminhar juntos. E só caminhando juntos, numa construção coletiva, é que podemos chegar a um lugar que interesse: a novas possibilidades de futuro.

*Tatiana Eskenazi (São Paulo, SP) é fotógrafa, poeta e escritora. Publicou os livros de poemas “Seu retrato sem você” (Quelônio, 2018) e “Na carcaça da cigarra” (Laranja Original, 2021). Ministra cursos e oficinas literárias e colabora com revistas e jornais.

Decolonizar, um ato cotidiano

Clara Sampaio, Mirella Schena e Felipe Gomes da Atmo Cultura junto a Patricia Rousseaux realizadores do evento

Esta edição especial de Arte!Brasileiros é resultado de um encontro. Um encontro de profissionais excepcionais, de diferentes estados e cidades brasileiras que trabalham incansavelmente na e pela cultura brasileira há anos. De pessoas cujo caráter e cuja empatia viabilizaram um trabalho impecável de quase oito meses, com o objetivo de realizar o primeiro Seminário Arte!Brasileiros Internacional fora das cidades hegemônicas, São Paulo e Rio de Janeiro.

Apesar dos brutais cortes de investimentos do governo bolsonarista, do obscurantismo em que o governo tinha mergulhado o país, encontramos, no Espírito Santo, uma intenção pública e política de investir em cultura e educação.

Parte da equipe de São Paulo e Vitória, com artistas, curadores e o Secretário de Cultura do Estado – ES, Fabrício Noronha

Assim, graças à Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC), à Secretaria de Cultura de Espírito Santo, na pessoa de Fabricio de Noronha, seu Secretario de Cultura, e ao patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, e à parceria entre a ATMO, empresa de cultura de Vitória (ES) e Arte!Brasileiros conseguimos levar, nos últimos dias de março de 2025, duas dezenas de convidados nacionais e internacionais, pesquisadores, curadores, educadores, artistas e gestores de instituições hegemônicas e não hegemônicas, para um evento inesquecível. No Museu de Arte de Espírito Santo – MAES e na Casa de Música Sônia Cabral, centenas de participantes ouviram e debateram sobre narrativas apagadas da história brasileira, sobre iniciativas solidárias de ponta, suas atuações e sugestões de como trabalhar no coletivo e sobre a importância das interlocuções teóricas e territoriais Sempre dizemos que decolonizar é um ato cotidiano, na ciência, na educação, na cultura, na arte.

A defesa da democracia, da justiça social, depende da elaboração permanente de metodologias críticas e projetos de estratégias na defesa de uma civilização que está ameaçada ecológica e humanamente. Acompanhem estas páginas e comprovem esse encontro especial. ✱

Boa leitura!

Colaboradores da edição especial Vitória – ES

Luiza Lorenzetti é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Foi coordenadora de comunicação do FETESP – Festival Estudantil de Teatro do Estado de São Paulo. Atualmente, é Gerente Web da arte!brasileiros

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia, designer, videomaker e programador. Atuando na ARTE!Brasileiros desde sua fundação, integra criação e tecnologia, produzindo fotografias, vídeos, newsletters e gerenciamento do portal.

Eduardo Simões Jornalista, trabalhou em O Globo, na Folha de S.Paulo, e atualmente colabora com a edição da revista arte!brasileiros digital e impressa.

Clara Sampaio Artista, curadora e pesquisadora de arte. Integra o coletivo ATMO como curadora e gestora de projetos, além de participar de exposições, residências, cursos e publicações. Escreve sobre a instalação Wi-Fi Grátis, montada na biblioteca do Museu de Arte do
Espírito Santo (MAES).

Nicolas Soares é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre Nice Nascimento.

Fotos: arquivo pessoal

Território, espaço e pertencimento

Fotos: Ana Luzes

Ana Luzes é artista visual capixaba, nascida no centro de Vitoria e criada no Morro do Quadrado. Desde muito jovem a sua paixão foi a fotografia, fazendo dela uma forma de documentar seu entorno. Já com 22 anos, se graduou em Fotografia pela Universidade de Vila Velha (UVV) e resolveu começar a retratar a periferia, mostrar suas raízes, suas historias. Participou da exposição virtual “Séries sobre o isolamento” no Museu Vale em 2021 e atuou com fotografia documental na matéria “Sobreviver para cuidar: Os degraus da vida de Lenir”.

Em 2022, participou da projeção O URBANO ENTRE A REALIDADE E A UTOPIA no Festival de Fotografia Tiradentes e Rotterdam Photo. Com imagens da serie Só se afoga quem sabe nadar (2021), tiradas no Rio Santa Maria, que beira a Ilha das Caieiras.
Em 2023, participou das exposições BRIDGING HORIZONS: Brazilian Photography Today, nos Estados Unidos e Otros Brasiles: La fotografía como expresión de la resistencia, na Cidade do México.

Há mais de três anos, Ana Luzes desenvolve uma pesquisa sobre as criações que existem dentro da favela, em parceria com o Instituto Serenata de Favela. Ao todo, ela dá aula de fotografia e conduz oficinas para 200 crianças.

Na exposição GENESIS: A CRIAção, a artista apresentou, na Galeria Homero Massena, em Vitória, instalações fotográficas baseadas nas 7 etapas de criação do mundo, segundo o primeiro livro bíblico Gênesis, que narra desde um ponto de vista religioso, a origem do mundo. Ao registrar imagens que dialogam com a realidade das periferias, a artista, moradora do bairro Santa Tereza e a iniciativa “cria” , do Morro do Quadro, apresentam intervenções de fragmentos de um grande universo criativo dos bairros do Quadro, Cabral, Jesus de Nazareth, Inhanguetá e Grande Vitória, enfatizando suas vivências, manifestações culturais e resiliência em meio à desigualdade social e que trazem a tona diversos momentos com palavras chaves da historia bíblica.

“Essa pesquisa e estudo para a produção das imagens não foram feitas nos livros, com nenhuma teoria ou especialista em favela , essa pesquisa foi feita na prática com as comunidades, com muitas visitas, conexões e reflexões que influenciaram nas decisões estéticas ou narrativas. Deste modo, a exposição não foi feita apenas sobre eles mas, fundamentalmente, com eles.” diz a curadora Nataly Volcati*.

A exposição é resultado também de um projeto educacional, que inclui o uso de smartphones e câmeras para fazer registros. Crianças são também estimuladas a participar da experiência fotográfica.

“Gênesis é minha primeira exposição individual, mas me orgulho em saber que foi construída de forma coletiva com as pessoas envolvidas no projeto. É o início de uma trajetória que busca trazer as memórias das favelas capixabas para o olhar de outros públicos. Exibir essas experiências na Galeria Homero Massena, um espaço de referência para pautas políticas contemporâneas, reforça a presença da periferia no Centro Histórico de Vitória”, diz Ana Luzes.

“Todo o meu trabalho é sobre, também, um pouco da minha história. Sempre quis abordar a favela de uma perspectiva diferente, de uma perspectiva que encantasse as pessoas e eu acho que isso acabou gerando um bom resultado”.


* Nataly Volcati, cria do bairro Grande Vitória, em Vitória/ES, é pesquisadora-artista e gestora de projetos culturais. Curadora estreante da exposição GENÊSIS: A CRIAção, ao lado da artista Ana Luzes, Nataly traz ao seu trabalho uma abordagem crítica e consciente das questões étnico-raciais, com uma projeção de continuidade na prática curatorial. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com ênfase em Sociologia Urbana, atualmente cursa especialização em Gestão de Projetos Culturais no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/USP). Sua pesquisa explora temas como memória e identidades afro-brasileiras e das periferias urbanas, permeando sua atuação intelectual, artística e cultural. ✱

‘Aprendi com meu pai a ler as coisas como vivas’

Círculo Máximo
Círculo Máximo, Geovanni Lima (MG), no Parque de Cultura do Governador, com vista ao mar. Fotos: Divulgação

ARTE!✱ – Seu percurso se inicia pela literatura…
Sim. Eu transito bem nesse campo interdisciplinar, gosto disso, tudo o que faço vem de alguma forma da poesia. Uma busca sempre atravessada por um olhar poético, sobre a forma de ler. Meu primeiro emprego foi numa editora, depois fui trabalhar com publicidade, música, artes. Trabalhando um pouco com tudo que ia chegando. Aprendendo enquanto fazia. Letra de música, cenografia, filme, designer. Fiz cenário para Gal, Macalé, Adriana Calcanhotto. Eu acho que tudo isso para mim vai se conectando. Comecei a fazer curadorias e, de alguma forma, a maneira de pensar é atravessada por essa minha formação, acho que familiar. Meu pai [o escritor e diretor artístico Waly Salomão ] era poeta e também conviveu no meio de artes plásticas. Cresci nessa mistura, nesse caldeirão de referências. Minha formação e a minha vida vão juntas.

Vários anos depois de formado, em Comunicação: Jornalismo e Cinema, voltei para a universidade para fazer mestrado, justamente porque na PUC do Rio de Janeiro tinha esse programa que pensava a literatura no campo ampliado (pegando ali da Rosalind Krauss e a forma de entender a escultura como algo muito além das fronteiras do objeto escultórico e do monumento), que se chamava Literatura, Cultura e Contemporaneidade. E lá era isso, a mistura, olhando pra cultura de forma múltipla. Sem aquela bobagem de contar palavras e rimas pra julgar um poema, para mim uma perda de tempo quando tem tanta coisa incrível acontecendo num bom poema. A forma objetiva, pragmática, eficiente de ler um poema ou uma obra de arte é a eliminação das possibilidades, é o desencantamento da arte. Ou como escreveu em algum lugar [o filósofo checo-brasileiro Vilém] Flusser, estão confundindo rigor com rigor mortis. Ou ainda, como me disse certa vez um professor, “o que importa é a possibilidade de invenção de novos sentidos para o mundo”. Ou seja, o que importa é o desvio.

Um projeto do qual tenho muito orgulho virou livro publicado pela Cobogó, Flutua pelas ruínas, flutua, em parceria com a Editora PUC-Rio e o David Rockefeller Center for Latin American Studies. Na sequência entrei num doutorado lá em Harvard, que foi uma loucura, muda tudo, suas referências, seu ponto de vista, tudo se multiplica. Uma experiência de desamparo que te tira o chão, e aos poucos você vai enraizando novamente, se encontrando.

E eu aprendi assim, com meu pai, a ler as coisas como vivas. Você pega um livro, uma obra de arte, e dialoga, conversa. Alterar. Nômade. Não tenho esse olhar sobre a coisa morta, de dissecar. Fico buscando o pulsar nas coisas. Essa foi minha formação: meu pai, Heloisa Teixeira, Marcelo Yuka, Tunga. Humor e bagunça. Criar e colocar pra fora, em movimento.

ARTE!✱ – Como você chegou ao Parque Cultural Casa do Governador? Acha que seu perfil influenciou no convite?
Sim, o Fabrício Noronha, que é o secretário de Cultura de Espírito Santo, tem uma visão muito ampla, criou em 2021 um edital para esculturas nos arredores da Casa do Governador. Foi o primeiro edital nacional de cultural do estado e transformou aquele enorme espaço em um parque. A Casa do Governador já ocupava uma mítica na cabeça de todo capixaba, um terreno na beira do mar, inacessível. As esculturas permitiram o início da abertura para a população. Na sequência, fizeram mais um edital de esculturas, e com o sucesso e a curiosidade, especialmente a partir de um evento quinzenal chamado Parque Aberto – que, como o nome diz, abria o Parque para todos com shows, eventos, food trucks – o governador Renato Casagrande e o Fabrício criaram o Parque Cultural Casa do Governador. É um espaço incrível, um bosque à beira-mar.

E é aqui que eu entro. Junto com o instituto selecionado para gerir o espaço: o IAC. Eu chego para tentar organizar essa personalidade artística do Parque. Os editais foram muito importantes, mas geralmente criam um todo muito disperso. Um dos desafios (são muitos) é dar força a esse conjunto e expandir. Desenvolver as potências que o Parque tem como um local de convivência com a arte, de estímulo, de encontro, de catalisador.

ARTE!✱ – Parece ter sido uma tendência terceirizar a gestão de espaços públicos através de uma empresa dedicada. Você acha que é isso mesmo? As OSCs, elas têm liberdade de contratação, são autônomas?
É uma parceria. O governo é o, digamos, cliente. Tem a escolha, a voz, ou seja, pode determinar a direção. Mas é isso, é uma parceria. A OSC consegue ser mais dinâmica, trazer outras formas de investimentos. É menos amarrado. E eu acho que no meio das artes funciona, porque o espaço artístico é muito idiossincrático. Ele depende de muitas formas de pensamento. É muito importante criar políticas de desenvolvimento cultural, e isso não acontece com editais de produção de obra, de desenvolvimento. É bom existir, mas muitas vezes acaba mais por segregar, porque cria uma competição, do que unir. E para a produção artística, para a criação, o encontro, a troca, o convívio, o acaso, tudo isso é incrivelmente importante.

Algo que é muito importante num centro cultural fazer as pessoas olharem as coisas de forma diferente, movimentar. E se essa estrutura for muito dura, você não consegue ter essa maleabilidade. Existe uma preocupação minha de [o Parque] não se tornar também só um lugar de evento, um lugar que você vai porque tem algo acontecendo, um show, uma feira, por exemplo, e depois vai embora. Fica tudo reduzido a números: passaram tantas pessoas, que incrível. Engorda os dados. Mas quando aquilo poderia ter acontecido em absolutamente qualquer outro lugar, não se constrói nada, se esvazia. É importante tentarmos criar uma relação com o espaço. Por isso o Parque é um espaço que tem que abrigar, receber as pessoas, pelo que o próprio espaço é. Acho que temos o compromisso de se criar legados, de estimular e criar raízes, aprofundar o trabalho no Parque em algo que se transforme em parte da cidade, que vire parte da vida dos moradores.

ARTE!✱ – Que iniciativas já foram tomadas e quais estão por vir?
Internamente estamos cuidando do espaço e das obras – que nunca tinham recebido manutenção. Reorganizando caminhos para desenhar novos sentidos. E estamos articulando para receber obras de artistas importantes para colocar o Parque no roteiro nacional das artes. Não p

osso dizer nomes ainda, mas fiquem de olho, tem coisa boa vindo. Nessa mudança de novos caminhos, vamos mudar a entrada de forma a criar todo um novo fluxo de relação com o parque. Tem um projeto de derrubar o enorme muro e fazer um gradil, arejando mais a conversa com a rua.

Uma das primeiras novidades, agora já em maio, é o ciclo Desnaturada, com curadoria do Ailton Krenak. Serão três dias de mergulho para pensar a própria ideia de natureza, para gerar futuros alimentados pela ancestralidade, renaturalizar-nos. E qualquer oportunidade para ouvir um sábio como o Krenak, ou o Sidarta Ribeiro, é incrível. O Ailton Krenak tá sempre desconcertando, de passo em passo, de uma maneira muitas vezes sutil, ele desdobra a conversa para te levar por caminhos enviesados. É uma alegria trocar com ele. É uma honra poder recebê-lo dessa forma.

Outra invenção que estamos levantando junto com o Nathan Braga, e que acho que vai ser o grande transformador, é criar uma escola dentro do parque. Estamos aproveitando algumas atividades que existiam no Plano de Trabalho que trazia demandas da Secretaria de Cultura e jogando a barra lá pra cima: ao invés de oficinas e atividades de um dia, trazer um projeto mais completo e integrado, uma escola livre capaz de misturar o meio ambiente, agrofloresta com estudos de arte, de desenho. Não uma escola com um viveiro, uma horta, dentro, mas um viveiro-escola onde se vivenciaria encontros com a natureza, do ambiente e da criação como experiência na arte, como uma atitude de integração com a vida. Pensar formas de vida, entender o outro, desnaturalizar para ler o ritmo do que nos cerca. Escola e viveiro integrados para ser um berçário de futuros. Escola Viva de Artes, a nossa EVA.

Um espaço que sempre me estimulou e inspirou foi o exemplo da escola do Parque Lage no Rio de janeiro. Foi um lugar que frequentei de criança, participava da Colônia de Férias no Parque Lage. Ficava lá, rabiscava, ficava correndo pelo parque. E, ao longo da vida, ia encontrar amigos, viver o lugar, conhecer pessoas, trocar ideias. Por isso o Parque Lage foi importante para tantas gerações, assim como o MAM-Rio na década de 1960, ou a UFBA [Universidade Federal da Bahia, em Salvador] com Edgard Santos antes disso. Esses lugares, por sua simples abertura ao convívio, geram coisas que reverberam por décadas.
Enfim, é um círculo que permitirá ir despertando novas inquietudes nos frequentadores. Mas é isso. Nesse momento temos o desafio e a reflexão de criar esse plano. Eu estou voltando para o Brasil justamente para me envolver com tudo isso aí.

ARTE!✱ – Você nasceu no Rio?
No Rio. Na Zona Sul, mas cresci em Salvador, meu pai foi ser coordenador do Carnaval da Bahia, levado por Gil. Depois voltei pro Rio, andando por todo canto. Já morei em tantos lugares, nem sei mais dizer de onde vim. Adoro mapear lugares novos.

ARTE!✱ – Como estão organizados para a gestão do Parque?
Fred Mascarenhas e Mirella Schena são os coordenadores do Parque. Fred no administrativo e Mirella no artístico-cultural. Eu entro como curador: diretor curatorial. Outra peça bem importante é o Nathan Braga, que é o nosso diretor pedagógico. Ele estava morando em Porto Alegre, trabalhando no educativo da Bienal do Mercosul, e importamos ele pra cá. Uma aquisição superimportante para a gente – especialmente agora com o projeto da EVA.

Na diretoria temos ainda a Dani Maia, que cuida da produção, e recentemente entrou a Melissa, para a Comunicação. Mas a equipe toda é incrível. Mirella, Fred e eu começamos montando a equipe, e temos uma sintonia deliciosa, muito produtiva. Meu braço direito aqui no Parque é o David Trindade, que cuida da manutenção e conservação das obras, e é artista também. Aliás temos alguns artistas/criadores na nossa equipe: o Nathan é um artista da pesada, a Mirella também é cenógrafa, o Kaique, da produção, é DJ e formado em arte, entre outros. Isso gera um olhar e um clima especial aqui dentro. ✱

Intromissão

Wi-fi Gráti
Instalação Wi-fi Grátis (ou Intromissão). Foto: Melina Furlan

Por Clara Sampaio
Colaboraram: Carlo Schiavini e Elvys Chaves

Wi-Fi grátis é uma frase familiar em boa parte dos centros urbanos, acompanhada de símbolos que se tornaram parte da linguagem visual contemporânea. Invisível, mas essencial, essa rede conecta pessoas, rompe barreiras físicas e redefine a maneira como o conhecimento e a participação se tornam possíveis. No contexto da obra proposta pelos artistas Carlo Schiavini e Elvys Chaves para o 8º Seminário Internacional Arte!Brasileiros em Vitória, porém, essa ligação se propõe como um gesto de “hackeamento”, uma atitude que questiona as estruturas institucionais e a própria materialidade do objeto de arte.

Como podem os públicos estarem ainda mais ativos e engajados? Quais corpos são incluídos ou excluídos das instituições culturais? Partindo dessas questões, os artistas criam uma escultura que explora o deslocamento crítico entre dentro e fora, arte e público.
Posicionada na biblioteca do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) – um lugar simbólico do papel educativo da instituição – a obra estabelece um diálogo direto entre o espaço do museu, seu acervo e a cidade, acionado por transeuntes, que, por meio de uma câmera na fachada do museu, incorporam uma veste digital.

Por sua vez, dentro da biblioteca, imagens são construídas em diversas superfícies, televisores com “defeito”, cujas particularidades de emissão de sinais e glitches compõem pictoricamente seu desenho. Em um deles é possível ver o modelo humano que gerou o elemento vestível: encontrado em um banco de dados, este corpo vazio, misterioso e sem cor, conecta-se aos seus semelhantes num espaço digital infinito: sem tempo, sem som, sem lugar.

Essa fusão entre o corpo e a tecnologia, expõe a onipresença de sistemas que sobrepõem as dimensões do público e do privado, do indivíduo e do coletivo. É a partir nessa noção de rede, que não apenas une, mas também permite observar e codificar, recombinar e materializar, que este trabalho se situa.

A instalação se estrutura a partir de uma composição vazada em ferro, sustentando televisores, painéis e outros dispositivos, criando um ambiente que remete tanto à transparência quanto à exposição dos meios de comunicação e controle. Para os artistas, “a ferragem exposta não é um detalhe secundário, mas um elemento essencial para que a obra cumpra sua função crítica e conceitual. Ela evidencia os processos e materiais de construção e reafirma a necessidade de espaços artísticos mais abertos, acessíveis e transparentes.”

Nesse embate entre corpo e tecnologia, a fusão entre o humano e a máquina se torna inevitável, e, como nos propõe Haraway 1, “há prazer nessa confusão de fronteiras, mas deve haver responsabilidade nessa construção”. A obra não apenas materializa essa interseção, como também alerta para seus riscos, evidenciando os limites fluidos entre criação humana e artificial, presença e controle, autonomia e vigilância.

Essa experiência convoca as pessoas ao risco: o de serem capturadas, mesmo que momentaneamente, ainda do lado de fora — e instadas a entrar, se quiserem. Wi-Fi Grátis pretende cativar com seu aparente “lugar comum” e convidar a uma reflexão e uma percepção mais profunda das urgências que nos atravessam.

O atrevimento em disponibilizar uma rede de internet em uma instituição ainda sem esse serviço, entende tal questão como urgente, e o gesto como mote e obra. Insere o trabalho na longa tradição da desmaterialização do objeto artístico, mas reafirma sua atualidade ao ressignificar a presença e a democratização dos espaços institucionais. No cruzamento entre tecnologia e estética, questiona-se não apenas o que significa estar conectado, mas para quem essa possibilidade realmente está aberta.

(1) Haraway, Donna J. Manifesto Ciborgue. O Manifesto das Espécies de Companhia. Tradução de Ana Maria Chaves. Lisboa: Orfeu Negro, 2022. ✱