Vivemos anos de extrema banalização de valores, na economia como na cultura e na sociedade. Ao não ter conseguido uma mínima estabilidade na democracia para amplas camadas das populações, no lugar de encontrarmos soluções de equilíbrio entre as classes sociais, o acirramento é cada vez maior, criando um modelo próximo das décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial. A extrema direita renasceu e se criou um campo social, uma espécie de vale tudo: não aprendemos nada, a impunidade avança, um policial joga uma pessoa de uma ponte, outro dá uma joelhada numa idosa. Psicopatas são eleitos, e seis meses depois ninguém entende como isso foi possível.
O mercado (chamam de farialimers, mas estão também em outras avenidas) dita as regras aos governos de turno, cria ameaças e um clima de terrorismo, manipulando números através do capital financeiro que conta com uma mídia que os apoia, mesmo que representam uma parcela ínfima da população, sobretudo no caso do Brasil.
À educação falta dinheiro. Aos museus falta dinheiro. Os governos deixaram de cumprir com suas obrigações, e os espaços públicos culturais, apesar da Lei Rouanet, dependem da roda da fortuna. Suas lideranças são profissionais do mercado, salvo raras exceções, com o intuito de poder captar dinheiro.
E isto está fora de controle. Estatutos são mudados de acordo com as necessidades de captação. Artistas são expostos em feiras e por galerias sem saber que estão sendo representados, como foi documentado em extenso artigo da revista Piauí, O Homenageado Oculto, do jornalista Henrique Skujis. No mercado secundário, obras de importantes artistas, que vieram à tona nos últimos dez anos, agora são disputadas a tapas entre galeristas. Não há regras, nem de ética nem de convivência.
Até o mundo capitalista teve que criar normas para sobreviver. O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – criado em 1965, primeiro como órgão do Ministério de Justiça, e hoje uma autarquia federal, atua para garantir a livre concorrência. Investigar e decidir, atuar em casos de fusão ou aquisição de empresas, vigiar casos de abuso econômico.
Por que não temos um CADE no mundo da cultura? Um CADE no mercado de arte. E não só, um órgão que represente todos os interesses de diferentes áreas envolvidas para defender, como, por exemplo, leis específicas para as artes visuais que ficarão de fora de uma tributação mais justa. (Sobre isso, importante ler As artes visuais vão ao front, por Jotabé Medeiros).
Dentro deste caos, há vários espaços nacionais que vêm se mostrando exemplos de ponta. No Ceará, uma combinação de público e privado (Governo estadual + a OS Instituto Mirante de Cultura e Arte) garante investimentos de primeira qualidade para todos, descentralizando os esforços ao largo de todo o estado. Com excelentes montagens de exposições, com suporte de equipamentos tecnológicos de última geração para restauro e preservação de obras, reformas de prédios tombados etc. Nesta edição, uma longa entrevista do Marcos Grinspum Ferraz com o fotógrafo e gestor Tiago Santana, nascido no Carirí, diretor do Instituto Mirante, mostra as dificuldades e o caminho das pedras.
Outro grande circuito cultural fora-do-eixo que tem se sobressaído foi o Paraná, com a aguerrida Secretária de Cultura Luciana Casagrande à frente, que sustenta uma política de investimentos públicos junto a patrocínios privados que deram enormes resultados, apesar dos cortes do bolsonarismo e da pandemia. Leia também nesta edição a entrevista de Leonor Amarante sobre a revitalização da sede do MAC-PR.
Trata-se de vontade política e convicção de que a educação e a cultura podem nos ajudar a sobreviver à barbárie. Sem lugar para a dúvida, parte desta histeria e descontrole acaba respingando na própria produção dos artistas e na confusão de colecionadores, pouquíssimo conhecedores ou desavisados.
Em 2019, o artista italiano Maurizio Cattelan, conhecido por sua obra contemporânea provocativa, vendeu na feira de Art Basel Miami Beach, a obra Comedian, uma banana grudada com silvertape na parede, por US$ 120 mil. Esse valor já foi considerado exorbitante naquele momento, mas, para surpresa de todos, a banana ressurgiu num leilão da Sothesby e foi arrematada por US$ 6,2 milhões, em criptomoedas, pelo seu dono. Obviamente, nem um centavo foi para o artista. A turba aplaudiu, produziu mil imagens, milhares de likes.
Isto não é valorização de uma obra, é pura especulação. A obra deixou de ser uma obra para transformar-se num simples commodity, um produto lançado na bolsa de valores da impunidade. Não vamos dar aqui aula de história da arte ou sobre a importância do movimento da arte conceitual a partir dos anos 1960. Em contrapartida, contra a BANANAlização da arte, resolvemos falar nesta edição de alguns dois artistas conceituais que prezamos. William Kentdrige e Renata Lucas, em textos de Fabio Cypriano, e Cildo Meireles, em matéria de Eduardo Simões. Artistas que fizeram, das suas obras, não apenas uma provocação, e sim uma reflexão intrínseca e poderosa que os levou a um encontro fundamental com seus públicos.
Aproveitem esta edição e tenhamos um excelente 2025! ✱
Obra da exposição Domingo no Parque, de Renata Lucas, na Estação Pinacoteca.
Foto: Isabella Matheus
A canção Domingo no Parque, de Gilberto Gil é perfeita para se pensar a obra de Renata Lucas. De fato, ela é inspiração e dá nome à exposição em cartaz na Estação Pinacoteca, até 6 de abril de 2025. Domingo do parque, a música de 1967, faz uma reversão de expectativas um tanto inusual, afinal José, o rei da brincadeira, é quem mata João, o rei da confusão. O que se espera seria o contrário. Pois costuma ser assim também na obra de Renata Lucas, em geral subvertendo o que se considera normal.
É assim com Cabeça e cauda de cavalo (2010), criado para o Kunst-Werke, um dos mais importantes espaços de arte contemporânea em Berlim. Lá, Lucas trazia o chão externo do instituto por meio de uma plataforma giratória que se move se os visitantes forçarem a roda com os pés.
O inesperado, neste caso, é trazer o ambiente externo para dentro do museu, uma ação política e crítica muito enraizada na tradição da arte contemporânea brasileira, que sempre defendeu a quebra do tradicional cubo branco e a conexão da prática artística com o entorno, com a vida. “O museu é o mundo”, defendeu Hélio Oiticica (1937 – 1980).
Outra conexão importante com essa tradição é que tanto Cabeça e cauda como várias outras obras na mostra dependem de uma participação ativa do espectador, de um esforço efetivo. Contudo, ao contrário do que se defendia nos anos 1970, quando se propunha a arte como um espaço de cura ou de conexão social, nas obras de Renata Lucas, há uma espécie de inversão dessa proposta, já que o esforço do visitante é quase como o mito de Sísifo, castigado a rolar um pedregulho colina acima, sem nunca alcançar o ponto mais alto.
Nas obras da artista, o esforço do visitante tampouco consegue um resultado, ele sempre estará rodando o piso, trazendo o externo para dentro, e levando o interno para fora, não há uma meta final, é um eterno alternar de posições. Em [ ] (2014), painéis expositivos foram transformados em dispositivos móveis e quando o visitante os manipula, acaba acionando discos embutidos no chão, que reproduzem alguns trechos de Domingo no Parque. A depender do ritmo, a velocidade da reprodução se altera, o que faz o esforço do público ser ainda mais colocado em cheque.
A participação também ocorre com Falha (2003), composta por chapas de compensado unidas por dobradiças, que recobrem todo o piso de uma das salas da Estação Pinacoteca, e que, por meio de puxadores, são movimentadas pelos visitantes, reconfigurando o espaço. Novamente aqui, há um esforço empreendido, mas não há resultado a ser alcançado efetivamente, além do próprio trabalho contínuo que permite inúmeros possibilidades de combinações. Em um momento de extrema precarização do trabalho, quando motoboys e motoristas estão sempre repetindo uma mesma ação, a obra de Lucas parece mimetizar dentro do museu a uberização da sociedade contemporânea. Assim, ao contrário de uma participação que se pretendia como um gatilho para a sensibilização do corpo, nas propostas dos anos 1970, o que se exercita agora é conscientização de repetições forçadas. Ao mesmo tempo, é a percepção de um mundo sem saída e sem esperança: é possível tentar colocar o contexto dentro do museu, como em Cabeça e cauda, mas o museu sempre expulsa o mundo, em uma alternância sem fim.
Outro exemplo dessa proposta está em O Perde, composta por uma mesa de sinuca modificada, já que suas caçapas foram substituídas por encanamentos que levam as bolas do jogo para canaletas embutidas no solo, até desaparecem. No térreo do museu, as bolas reaparecem, expelidas de tempos em tempos por buracos na parede.
Se na proposição Apropriação (Mesa de bilhar , d’après “O café noturno de Van Gogh”) (1966), vista na Pinacoteca em 2019, Hélio Oiticica criava uma ambiente de sociabilidade, inspirado na pintura de Van Gogh sobre o jogo, agora Renata Lucas subverte as regras, já que as bolas vão parar em outros espaços do museu.
Há aí um componente um tanto surrealista, ao se alterar as funções e normas do jogo, fazendo com que a sinuca não se restrinja apenas a quem está em torno da mesa, mas criando no museu novas dinâmicas possíveis, provocando surpresas.
Com isso, se a mostra aponta para o caráter neoliberal do trabalho atual, ela também aponta escapes possíveis, transformando de maneira radical a paisagem interna ou externa do museu.
Obra da exposição Domingo no Parque, de Renata Lucas, na Estação Pinacoteca. Foto: Isabella Matheus
É isso que Renata Lucas faz no Largo General Osório, bem em frente ao edifício da Estação Pinacoteca, quando corta um círculo de 6,4 metros de raio na praça torcendo parte do espaço em sentido anti-horário, entrelaçando calçada e jardim. A obra é ainda uma reinterpretação da roda-gigante que Gil menciona na canção Domingo no Parque.
Esse tipo de intervenção radical no espaço público remete a outra característica essencial na obra da artista, a necessidade de negociação. No caso da praça, precisa ser feita com órgãos governamentais e de gestão, o que muitas vezes é um processo longo e que demanda concessões. A proposta original era que a roda recortada na praça também giraria a partir de dispositivos a serem ativados pelo público, o que acabou não ocorrendo.
Mas negociar faz parte do processo para artistas com intervenções radicais, como é o caso de Lucas. A mostra na Estação Pinacoteca, que tem curadoria de Pollyana Quintella, por ser realizada em um prédio tombado, portanto que não pode sofrer grandes interferências arquitetônicas, precisou que todo o andar da exposição fosse forrado com um piso de compensado.
Essas mostras de caráter panorâmico, com artistas de carreiras maduras, vêm sendo uma grande contribuição da Pinacoteca. Elas permitem perceber a poética dos artistas de forma contextualizada, ampla e imersiva, além de contar com catálogos bem realizados. Domingo no Parque é um dos grandes destaques desta sequência de uma artista que vem se destacando muito no cenário internacional, como na Bienal de Veneza, em 2009, ou na Documenta de Kassel, em 2012, mas com pouca visibilidade de seus trabalhos mais radicais por aqui. Não mais, finalmente.
Invocação em Guadalupe, Intodução de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung.
Fotos: Philippe Hurgon | Fundação Bienal de São Paulo
A 36ª edição da Bienal de São Paulo, que será aberta para o público em setembro do ano que vem, começa a ganhar contornos mais definidos. Depois da definição do título da mostra – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, derivado de um poema de Conceição Evaristo –, a equipe curatorial deu início a um ciclo intenso de atividades em diferentes partes do mundo. Com o nome de Invocações, esses encontros promovem trocas com uma ampla comunidade de artistas e pensadores que devem desaguar na mostra paulistana a partir de quatro pontos bastante distantes: Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio. Em entrevista à ARTE!Brasileiros, o curador Bonaventure Soh Bejeng Ndikung falou sobre o conceito geral de seu projeto, baseado em um conjunto de metáforas de forte poder simbólico como a aproximação com o estuário (zonas intermediárias de grande fertilidade) e o desejo de criar um campo expandido de criação, que reinvente caminhos, coloque mais questões do que antecipe respostas.
arte!✱ – Qual o papel das Invocações? A primeira delas, realizada em novembro passado, em Marrakech, rendeu os frutos esperados?
Bonaventure Ndikung – Foi muito comovente, muito importante, um primeiro movimento muito bom. Aconteceu em Marrakesh e teve como título Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa, e o ponto de partida foi pensar na respiração nas culturas sufis. Lemos o poema de Birago Diop, poeta muito importante do Senegal, intitulado Verdade. É um poema muito, muito poderoso que fala sobre a possibilidade de ouvirmos seres vivos e não-vivos. Convidamos diferentes estudiosos, poetas, músicos, artistas performáticos, muitas pessoas que trabalham com a música Gnawa, musicalmente muito importante, mas também um espaço em que os saberes são guardados e desenvolvidos. A invocação terminou com uma performance ritual muito poderosa de Hadra, que é um grupo de mulheres que se reúnem e cantam as canções rituais sufis, em que as pessoas caem em transe. Fizemos também conexões com uma revista literária fundada no Marrocos em 1966 também chamada Souffle. Um dos fundadores foi o poeta Abdellatif Laâbi, que é muito importante para nós.
arte!✱ – Aproximar diferentes linguagens, como a poesia, a dança ou a música é algo fundamental desse projeto para a 36ª Bienal. Há o desejo de criar um ambiente onde diferentes vozes e perspectivas possam coexistir e se enriquecer mutuamente, desafiando as estruturas tradicionais?
Precisamos aprender a trabalhar de forma mais interdisciplinar, a sair de nossas zonas de conforto, a criar pontos e momentos de encontro. Acho que temos muitos problemas no mundo porque realmente não nos encontramos. Por isso a metáfora do “estuário”, presente no nosso conceito, é tão importante. A água salgada é diferente da água doce, mas com a dissolução, com a mistura, algo bonito acontece. Por isso os estuários são um lugar tão rico. Então, basicamente, o que estamos tentando fazer é criar esses estuários ao redor do mundo. Assim, cada invocação é uma espécie de momento em que o quente encontra o frio, o doce, o salgado e o amargo, diferentes temperamentos, diferentes disciplinas, diferentes motivações. O mais importante é como esses pontos de encontro dão origem a uma nova noção de humanidade. Então, basicamente, não estamos interessados em apagar contradições. Estamos interessados em criar espaços onde as polinizações cruzadas possam acontecer. uma espécie de polinização cruzada de ideias e formas de estar no mundo.
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Bonaventure Soh Bejeng Ndikung no pavilhão da Fundação Bienal de São Paulo. Foto: João Medeiros | Fundação Bienal de São Paulo
Registro de palestra-performance por Kenza Sefrioui sobre o legado de Souffles durante a primeira Invocação da 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, em Marrakech, no Marrocos
Performance musical por Fritz Naffer e o Grupo Foubap
Performance com Raymonde Torin baseada nas sete danças fundamentais gwoka, baseadas na improvisação, alterna momentos de ruptura e continuidade em um constante esforço para manter o equilíbrio.
arte!✱ – Como promover essa mistura entre as palavras e a visualidade?
Eu acho que é realmente uma questão de expressão, de tornar as coisas manifestas. Acho que é uma questão de articulação mais do que qualquer outra coisa. Portanto, uma pintura, uma fotografia, uma escultura, um poema são articulações. Pode-se dizer que as palavras estão embutidas em todas essas práticas, a fala de diferentes tipos, a fala em termos de performance, a linguagem corporal, mas também a fala em termos de escrita. Ontem estava lendo algo muito interessante em um texto que Amadou Hampaté Bâ escreveu sobre seu mentor e professor Tierno Bouka. Ele disse que o discurso é como uma fruta. O lado de fora da fruta é a tagarelice, o topo da fruta é a eloquência e o núcleo da fruta é o bom senso, e isso é extremamente poderoso. Acho que basicamente o que estamos tentando fazer é criar essas diferentes formas e momentos de expressividade, ou articulação, sem hierarquias. Tendemos a enfatizar demais o sentido visual. Por isso que no conceito da mostra começamos dizendo que, pensando com Jacques Attali, que disse que, por 25 mil anos, o ocidente tentou ver o mundo. Mas o mundo não é visível. Ele é audível. Por 25 mil anos tentaram ler o mundo, mas ele não é legível. É audível. O que dizemos é que é preciso acercar-se dos diferentes sentidos, precisamos ativar o mundo de maneiras diferentes.
arte!✱ – As pessoas estão acostumadas a pensar a arte como uma coisa visual. Será, imagino, um choque entre as expectativas tradicionais e o que vocês estão propondo?
Não vamos remover o visual. Vamos adicionar outras coisas a ele. Portanto, enriquecerá a bienal, e os visitantes poderão vivenciá-la de outras maneiras. Entendemos as expectativas, mas acho que precisamos também desafiar o que sabemos. O trabalho de um curador não é apenas fazer o que se espera deles, mas realmente repensar o contexto e os conceitos. Então, basicamente, o que também estamos fazendo é nos desafiar, mas também desafiar nosso público de uma maneira bonita.
arte!✱ – Você já disse que a Bienal de São Paulo é uma espécie de sismógrafo. Ainda pensa assim? É um grande desafio?
Exato. Sim, é um grande desafio fazer uma exposição como essa porque você tem basicamente um ano e alguns meses para fazer algo tão significativo acontecer. E porque também estamos tentando repensar o público, estamos tentando repensar o formato da bienal. Mas também estamos muito gratos por termos colaboradores muito bons no terreno, que nos ajudam neste processo. É desafiador, mas se não fosse desafiador, eu não o faria.
arte!✱ – Podemos esperar uma grande mudança do pavilhão e da forma como a Bienal será apresentada ao público?
Sim. Estamos trabalhando com duas arquitetas fantásticas, cenógrafas que vão repensar o espaço. Não vamos lutar contra a estrutura, mas vamos encontrar maneiras de dançar com o prédio.
arte!✱ – Não temos ainda a lista de artistas que estarão presentes nessa bienal. Apenas um esboço de mapa criado a partir sobretudo de metáforas e poemas inspiradores, como a do estuário que você mencionou. Você poderia falar por que, dentre tantas metáforas, escolheu como título esta frase de um poema de Conceição Evaristo?
Por uma razão muito prática. Quando recebi o convite estava estudando Conceição Evaristo, de um ponto de vista muito particular. Eu também penso que esse ponto preciso diz tudo sobre o que precisamos dizer. Quando eu desacelero, por favor, não me force. Deixe-me ficar em inércia. Nem todos os viajantes andam pelas estradas. Existem mundos submersos que só o silêncio da poesia pode penetrar. É tão lindo. Nesse poema, ela nos diz muito sobre agência. Mas ela também nos diz muito sobre o tipo de estradas falsas em que o projeto colonial nos colocou. Então, se não estou andando por essa rota, por favor, não me obrigue a andar por esse caminho do empreendimento colonial. Porque existem caminhos alternativos. Existem outros espaços e ela nos dá uma chave para entrar neles. Ela diz que, se você quiser entrar nesses mundos subalternos, precisa ser capaz de entender o silêncio da poesia. É extremamente poderoso, então acho que é por isso que o escolhi. Mas também porque Conceição é muito importante e ela não é tão reconhecida quanto muitos outros poetas americanos – alguns poetas brancos, muitos poetas homens. Ela pode não ser tão reconhecida quanto eles, mas se você olhar para a coleção de sua obra é impressionante. Me lembro que um dos primeiros poemas dela que li foi escrito por ocasião da morte do Abdias do Nascimento. Era muito poderoso, invocava Abdias, invocava Zumbi, e assim por diante. Era uma genealogia. Para mim também é uma possibilidade para que muitas pessoas em todo o mundo da arte falem de Conceição Evaristo. É uma coisa grandiosa que podemos fazer, levando as pessoas a ler, a citar seu trabalho apenas porque usamos essa frase do seu poema.
arte!✱ – Ela usa uma palavra que não é usual para um brasileiro. O estranhamento causado por “viandante” se perde em inglês, mas aqui soa estranho.
Todo mundo me perguntou: há um erro nisso? Você está seguro de que é a palavra certa? Eu disse: está tudo bem. É exatamente por essa razão que eu gosto dele. Esse é o propósito. Não podemos traduzir exatamente em inglês, mas tudo bem. É a beleza da poesia, um poeta é um escultor de palavras. Então, basicamente, ela esculpiu uma nova palavra para nós e estamos lutando para entendê-la. É exatamente por isso que é tão especial.
arte!✱ – E podemos fazer um paralelo entre esse estranhamento poético e a maneira como você se veste? É uma outra chave de leitura do seu pensamento?
Eu não sei (risos). Não é exatamente sobre mim. Eu acho que nós nos expressamos de inúmeras maneiras. Se pensarmos que o corpo é uma forma de discurso, sempre que nos apresentamos em algum lugar, estamos também discursando, sabe? E se a metáfora tem grande significado para mim, também vejo a minha própria apresentação como parte dessa criação de metáforas. Portanto, nunca é algo a respeito da superfície, é sempre acerca do que está por baixo.
arte!✱ – Voltando a Abdias, você já realizou uma série de curadorias em torno dele, desenvolvendo exposições em torno do conceito de “quilombismo”, por exemplo. Ele será uma das forças do evento?
Não há como eu fazer esta bienal sem ter Abdias do Nascimento, é claro. Ele é onipresente. Há também Beatriz Nascimento, que também escreveu sobre os quilombos e também é uma grande poeta. Ela também estará presente. Direta ou indiretamente suas presenças serão sentidas na Bienal. Venho ao Brasil há vários anos fazer pesquisas no arquivo de Abdias. Muito do que sei sobre o Brasil é através dos olhos e através de seus escritos. Então, obviamente, estará presente lá.
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Cartazes e logomarcas da 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas - da humanidade como prática
Cartazes e logomarcas da 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas - da humanidade como prática
arte!✱ – A edição deste ano terá um núcleo histórico?
Sim, haverá uma parte histórica muito forte. Alguns de nós estão agora em Paris para ver algumas das obras históricas que traremos para o Brasil. Também traremos artistas de diferentes partes do mundo, do Líbano, da Ásia, e assim por diante.
arte!✱ – Você espera aproximar o Brasil e a África?
Acho que minha presença já é uma conexão muito forte com a África, então a resposta é sim. Eu penso não apenas de uma forma representativa, de pessoas, mas também de ideias. Se você notar, a maioria das referências que uso são profundamente africanas. Não me refiro ao continente africano, mas ao mundo africano, porque para mim Amadou Hampaté Bâ, do Mali, faz parte do mundo africano, e Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo e Beatriz Nascimento também fazem parte do mundo africano.
arte!✱ – Temas fundamentais da atualidade, como as guerras e a crise ambiental terão espaço na Bienal? A arte é uma forma de agir contra a queima desenfreada do planeta?
Convidamos artistas que estão pensando nesses problemas, mas não de uma forma literal ou muito direta, porque também queremos a ferramenta da poesia aí. Eu concordo com James Baldwin quando ele diz que o papel do artista é fazer questões sobre as respostas que já estão por aí. O papel do artista é fazer perguntas para obter respostas que já existem lá fora. Então, basicamente, estamos convidando artistas a fazer perguntas. Acho que muitos dos problemas que encontramos por aí, sejam ambientais, sejam as guerras, nos deixam ansiosos por respostas, respostas que estão criando hierarquias: classismo, racismo, generismo e assim por diante. Só queremos extrair, porque essa é a resposta quando você precisa de mais petróleo. Mas a verdadeira questão é “por quê”? O artista tem a possibilidade de fazer essas perguntas de maneiras muito sensíveis. Não queremos fazer uma bienal que dê respostas a perguntas, mas sim uma bienal que coloque as questões corretas.
arte!✱ – Certa vez você disse que a “fratura ecológica é a manifestação da fratura colonial”. É preciso pensar essas questões em conjunto?
Totalmente. Temos que pensar essas coisas juntas para poder acabar com o extrativismo e a destruição ecológica. Precisamos ser capazes de enfrentar as questões coloniais, as violências coloniais. Eles andam de mãos dadas. Estou na França agora, e há aqui no momento muitas histórias sobre feminicídio. Estava lendo um belo livro de uma autora nigeriana, iorubá, Oyèrónk Oyěwùmí, sobre colonialismo e gênero. Ela escreve sobre como a violência no binarismo de gênero está muito ligada ao projeto colonial. E para ser capaz de entender essas violências, especialmente aquelas que as estruturas patriarcais impõem ao mundo, precisamos compreender as estruturas coloniais também. Você não pode desmantelar uma sem desmantelar a outra. Estamos vendo todas essas guerras acontecendo e temos que entender por que eles estão acontecendo e como elas estão ligadas aos projetos coloniais, que ainda continuam até hoje. ✱
Fabio Cypriano é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano assina as matérias sobre um documentário de William Kentridge e a exposição de Renata Lucas na Estação Pinacoteca.
Maykson Cardoso Mineiro de Divinópolis, vive desde 2018 em Berlim. É crítico de arte e também realiza projetos curatoriais. Suas pesquisas mais recentes se concentram na obra de Walter Benjamin. Nesta edição, assina texto sobre o pensamento de Bonaventure Ndikung, curador da 36ª Bienal de São Paulo.
Marcos Grinspum Ferraz Jornalista, formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros, entre outras. Nesta edição, entrevista o fotógrafo e gestor Tiago Santana, diretor do Instituto Mirante.
Leonor Amarante jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição, são de Leonor as entrevistas com Luciana Casagrande Pereira, secretária de cultura do Paraná, e o arquiteto paraguaio Solano Benítez.
Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número, Maria entrevista Bonaventure Ndikung, curador da 36ª Bienal de São Paulo.
Apesar dos milhares de quilômetros que distanciam Brasil e Rússia e dos traços culturais tão distintos entre os países, não é preciso nenhum tipo de “tradução” para que as obras artísticas de um canto do mundo sejam compreendidas, ou ao menos fruídas, no outro lado do planeta. É esta a ideia básica que norteia a exposição Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance, que leva a Moscou trabalhos do Acervo Videobrasil representativos de quatro décadas da produção do Sul Global.
Com abertura neste dia 12 de dezembro, a mostra tem curadoria de Solange Oliveira Farkas, fundadora e diretora do Videobrasil, e Alessandra Bergamaschi, que selecionaram trabalhos majoritariamente de artistas brasileiros, mas também de outros países sul-americanos e africanos, para apresentar na GES-2 House of Culture, na capital russa. A eles se soma um “núcleo russo”, com curadoria de Andrei Vasilenko e Dmitry Belkin, e uma instalação inédita do artista mineiro Eder Santos, colaborador do Videobrasil desde seus primórdios, nos anos 1980.
"Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance" no GES-2 House of Culture. Foto: Daniel Annenkov
"Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance" no GES-2 House of Culture. Foto: Daniel Annenkov
"Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance" no GES-2 House of Culture. Foto: Daniel Annenkov
Se a noção de que uma obra não precisa ser explicada para ser fruída pode servir para qualquer produção artística, de modo mais amplo, há particularidades na mostra que enfatizam esta ideia e justificam a escolha do título – “não necessita tradução”, em transposição livre. Ao priorizar os meios expressivos do vídeo e da performance, nos quais imagem e corpo são protagonistas e prescindem da linguagem falada ou escrita, destaca-se “um formato híbrido universal que existe para além das fronteiras dos Estados e das línguas nativas e, portanto, não requer tradução”, como explica o texto de apresentação da mostra.
“O hibridismo é parte fundamental da nossa história, mas quisemos reforçar uma particularidade deste hibridismo que é marcado pela forte presença da performance ao longo de quatro décadas de vídeo no Brasil, tão bem representada em nosso acervo”, completa Solange sobre este assunto. O acervo da associação, formado majoritariamente por obras apresentadas ao longo das 22 edições do festival/bienal Videobrasil, realizado desde 1983, é uma das mais ricas coleções de videoarte do Sul Global.
A segunda particularidade acolhida no conceito curatorial se refere às conexões e aos paralelos possíveis de se traçar entre as produções de regiões tão distantes como América Latina e Rússia, por mais improváveis que possam parecer. Segundo Belkin, “um diálogo único entre a arte de duas regiões raramente comparadas mostrará como a mudança cultural notavelmente semelhante ocorreu em duas partes opostas do globo. A videoarte captou todas as reviravoltas históricas: desde a mudança social global em meados da década de 1980, passando pela esperança e pela paz global nas décadas de 1990 e 2000, até a análise de seu passado na década de 2010”.
A divisão da mostra por décadas, comentada pelo curador russo, foi uma escolha de Solange e Alessandra para que o visitante possa percorrer e compreender alguns momentos centrais da história do vídeo e da performance no Sul Global, especialmente no Brasil: partindo das primeiras experimentações possibilitadas pelo desenvolvimento da tecnologia do vídeo, passando pelas linguagens do videoclipe e da TV e chegando no uso generalizado de computação gráfica e da realidade virtual.
Estão na mostra, neste trajeto, desde trabalhos icônicos das duas últimas décadas do século 20, como VT Preparado AC/JC (1986), de Walter Silveira e Pedro Vieira, Parabolic People (1991), de Sandra Kogut, e Sopro (2000), de Rivane Neuenschwander e Cao Guimaraes; até a produção que marca o novo milênio, em obras como Filme dourado (2010), de Luiz Roque, L’Arbre d’Oublier (2013), de Paulo Nazareth, e BUGs (2022), animação digital apresentada por Vitória Cribb na mais recente Bienal Sesc_Videobrasil, no ano passado.
Considerando o conceito de Sul Global como uma noção geopolítica – não geográfica – e também mutável ao longo do tempo, Solange relembra que desde que se abriu para a participação internacional, nos anos 1990, o Videobrasil recebeu um grande número de inscrições de obras de artistas russos. Um exemplo é o vídeo Biographies of objects, de Natalia Skobeeva, obra que foi incluída na exposição e que questiona nacionalismos, tradições enrijecidas e a crise do mundo contemporâneo.
Para além do trabalho de Skobeeva, parte do Acervo Videobrasil, uma série de outros vídeos do país que sedia a exposição – o “núcleo russo” – complementam a mostra, ressoando o que é apresentado em cada um dos eixos temporais. “A exposição nos permitirá ver obras de videoarte de todo o planeta que nunca foram exibidas na Rússia antes, bem como obras russas conhecidas em um contexto completamente novo”, afirma Belkin.
Videobrasil. Needs No Translation: Four Decades of Video and Performance Quando: 12 de dezembro de 2024 a 9 de fevereiro de 2025 Onde: GES-2 House of Culture | 15 Bolotnaya Embankment, Moscou – Russia
A entrada na Casa da Cultura é gratuita, mediante registro prévio ges-2.org
Clariô, Espetáculo "Severina, da morte à vida". Foto: Sérgio Fernandes
“A gente se construiu dentro da periferia, do movimento periférico. Somos um grupo de teatro preto”. A frase dita por Naloana Lima à arte!brasileiros dá o tom (e corpo) ao trabalho construído nos últimos 20 anos pelo Grupo Clariô de Teatro.
A companhia, fundada em Taboão da Serra por Naloana Lima, Alexandre Souza, Mario Pazini Jr. eNaruna Costa, hoje conta com um número maior de integrantes, mas segue com um mesmo objetivo: produzir e pensar as artes nas bordas da metrópole. Fazer teatro “PELA periferia, NA periferia e PARA a periferia”, como costuma declarar.
Em 2005, abriram o Espaço Clariô, sede da companhia em Taboão da Serra. O lugar que nascia para dar continuidade e consistência à pesquisa daqueles artistas, expandiu-se. Ali, na Rua Santa Luzia 96, o grupo se deparou com uma defasagem cultural imensa e proporcional a um enorme desejo, principalmente de crianças e jovens da região, em adentrar no mundo do teatro. A casa (hoje um galpão), que fica na fronteira entre Taboão da Serra e São Paulo, tornou-se um espaço da comunidade local.
Passaram a ocupá-lo com diversos projetos colaborativos, o que lhes rendeu o Prêmio Governador do Estado, em 2014, na categoria inclusão cultural. Hoje, o Espaço Clariô é uma porta aberta para oportunidades no universo da cultura para Taboão e seus arredores – como Campo Limpo e Capão Redondo, na capital paulista, e os municípios de Embu das Artes e Itapecerica da Serra. Porém, o espaço corre o risco de fechar as portas nos próximos meses. Há cerca de um ano a proprietária do imóvel manifestou a necessidade de vendê-lo. Com a construção da estação de metrô Vila Sônia, a casa valorizou e a companhia se vê impossibilitada de comprá-la, mas abre frentes de arrecadação de verba para manter a ação cultural.
Sonhar alto
Na trajetória artística, o Clariô traz uma frente musical, as Clarianas, e quatro espetáculos teatrais construídos a partir de longos projetos de pesquisa, e que seguem ativos no repertório da companhia.
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Espetáculo Hospital da gente. Foto: Cortesia Grupo Clariô de Teatro
Espetáculo Urubu come carniça e voa, no Sesc Campo Limpo. Foto Sérgio Fernandes
Espetáculo "Severina, da morte à vida". Foto: Sérgio Fernandes
Espetáculo Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto, no Sesc Campo Limpo. Foto: Sergio Fernandes
O primeiro, Hospital da gente, venceu diversas categorias do Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro (CPT) em 2009. Reunindo contos e cantos do pernambucano Marcelino Freire, a obra põe em foco as trabalhadoras do Brasil, mulheres periféricas que abrem as portas de suas casas para revelarem a que vieram e qual seu lugar dentro da estrutura desigual do país em que vivem — o Brasil. Ali, se formava o embrião de Urubu come carniça e voa!, que estreou em 2011.“Em Hospital da gente, por falar sobre as mulheres, falamos também sobre as mães periféricas que muitas vezes têm seus filhos mortos pelas polícias nas quebradas”. Urubu come carniça e voa! mergulha no assunto. A peça parte das crônicas do poeta pernambucano Miró da Muribeca, que, ao narrar sua vida, denuncia o racismo naturalizado nas violentas abordagens da polícia militar a homens negros no Brasil. Em 2015, Severina, da morte à vida traz uma adaptação da obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina. O trabalho é a primeira dramaturgia criada pelo próprio Clariô.
Nos últimos anos, estreiam Boi Mansinhoe a Santa Cruz do Deserto, que laureado com os Prêmio Shell de Melhor Música, Prêmio Leda Maria Martins na Categoria Ancestralidade e APCA 2023 de Melhor Dramaturgia, traz uma história brasileira pouco contada: o massacre de Caldeirão, no Ceará, em 1937. Em diálogo com a estética dos festejos de Bumba-meu-boi e do reisado cearense, a peça traz história da Irmandade Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, uma comunidade popular que “ousou construir uma sociedade igualitária, uma vida em comunhão no Cariri cearense, mas que foi perseguida e destruída por forças oficiais militares”, explica o texto oficial da companhia. Caldeirão foi o primeiro bombardeio aéreo sobre um agrupamento civil no País.
Todas as peças têm algo em comum: partem de uma experiência de vida que os integrantes do Clariô conhecem de perto. Como explica Naloana: “É uma vivência mesmo, de estar e sentir na pele todos os dias — 24 horas por dia. Essa questão do racismo, por exemplo, que está em tudo; essa questão colonial, de várias tretas aí, que a gente tem que matar um leão por hora — nem é por dia. Esse material, essa dramaturgia que surgiu, só podia ter sido feita mesmo por essas pessoas” – e para essas pessoas.
Foi essa caminhada que levou o grupo a pensar como as ancestralidades — dos corpos em palco e na platéia — podiam também contribuir para a cena. Com um grupo formado majoritariamente por pessoas negras, mergulharam na pesquisa de uma identidade estética das manifestações tradicionais afro-indígenas. Como pontua Cleydson Catarina, artista integrante do grupo, trata-se da busca de enxergar-se também como escola, de entender os conhecimentos historicamente invisibilizados. “A dramaturgia no teatro — até o teatro preto e periférico — ainda é feita por uma estética branca, por uma estrutura de um estudo branco. Tem peças sobre a gente, mas com a estética totalmente elitizada, branca, academicista. É muito assustador falar de nossos corpos ainda nessa maquiagem, nessa dramaturgia que não foi feita para a gente”, diz Cleydson em entrevista à arte!brasileiros.
O Clariô, porém, busca não só partir de suas vivências, mas retorná-la em arte para quem a vive na pele. Apresentam-se nas periferias e buscam linguagens teatrais que comuniquem com público amplo. Cleydson exemplifica: “Uma das coisas é essa dramaturgia direta. Eu falo: ‘não quero trabalhar com muita palavra na boca em uma sociedade que está passando fome’. Com palavras bonitas, com palavras difíceis que não chegam aos nossos corpos, né?”.
A missão de fazer teatro pela periferia e na periferia vai um passo além com a construção do Espaço Clariô. Os artistas levaram seus ideais da sala de ensaio ao meio do público. A sede da companhia passou a abrigar atividades culturais permanentes. “São quase 20 anos de muitas histórias e sonhos que viraram realidade junto à comunidade. Com muito trabalho, teimosia, parcerias e teatro, sonhamos alto!”, diz Naloana. Entre aquelas paredes, realizaram temporadas teatrais, mostras de cinema negro e de filmes infantis, oficinas culturais, slams, a Mostra Teatro do Gueto, encontros mensais para formação de redes de artistas periféricos (o QUINTASOITO) e shows gratuitos com presença de grandes nomes da música.
O pesadelo
“Foram muitos e muitos sonhos realizados, até a chegada de um único pesadelo, fechar as portas”, diz Naruna Costa em vídeo publicado recentemente pela companhia. Há cerca de um ano, a proprietária do imóvel que hoje abriga o Espaço Clariô manifestou a necessidade de vendê-lo.
Apesar da preferência de compra, pelos quase 20 anos de aluguel, a companhia teatral não tem o valor necessário para a negociação. “Mesmo sendo um grupo de teatro independente, nosso trabalho no Clariô nunca foi comercial, mas sim social. Todas as atividades sempre foram gratuitas e nunca previam lucro. Logo, não temos um caixa para tirar de uma hora para outra tanto dinheiro para comprar essa casa”, explicam os artistas nas redes sociais
Diante disso, deram início a uma campanha de financiamento coletivo a fim de angariar os 700 mil reais necessários para comprar o espaço e manter o funcionamento dessa casa de cultura. Em paralelo, organizam mensalmente o Festêjo Clariô, evento mensal que reúne artistas para shows no espaço em Taboão, com ingressos a R$20 a fim de arrecadar fundos.
Aproximando-se do aniversário de 20 anos desde a fundação do Grupo Clariô, os artistas mantêm a circulação de seus espetáculos. Seguem com os objetivos em palco, enquanto lutam para manter o espaço. De 1o de novembro até 15 de dezembro, a companhia realiza uma ocupação artística no Sesc Campo Limpo. Levam ao equipamento cultural paulistano a apresentação de todos os espetáculos de seu repertório, junto a uma programação ampla com sarau e uma série de bate-papos sobre os temas que envolvem o universo do coletivo. Seguem sonhando alto e realizando.
A arquiteta paranaense Luciana Casagrande Pereira representa uma geração de mulheres que têm conquistado posições de destaque na esfera pública. Sua aparência delicada e jovial dissimula a personalidade determinada com a qual administra um espaço tradicionalmente dominado por homens. Há seis anos, ela exerce a liderança da Secretaria de Cultura do Paraná. Sua gestão é marcada por conquistas significativas, muitas delas consideradas pioneiras no cenário nacional, elevando a um outro patamar a produção artística do Paraná.
O interesse de Luciana pela cultura começou com as artes visuais. “Minha primeira emoção com a área aconteceu via televisão. Assistia a um documentário do Sesc sobre o artista espanhol Antoni Tàpies e, ao ver como ele se expressava com aquela energia e intensidade, fiquei tocada. Na hora decidi que era com aquilo que eu queria trabalhar.” Isso tornou-se uma prerrogativa na vida de Luciana. Após concluir o curso de arquitetura, dedicou-se a projetos culturais e, em seguida, integrou a Bienal Internacional de Arte de Curitiba, onde permaneceu por 10 anos. “Deixei a instituição ao perceber que era hora de renovação e decidi fazer uma pausa na carreira.”
Na manhã de 2 de dezembro de 2018, Luciana recebe uma ligação com mensagem do governador, Carlos Roberto Massa Júnior (Ratinho Júnior), que queria falar com ela. Surpresa, se perguntou: “O governador? Mas eu nem conheço o governador”. Horas depois estava frente a frente com ele, numa conversa que durou pouco mais de uma hora e, ao fim, veio o convite desafiador: assumir a Secretaria de Cultura do Paraná, com a missão de trazer um olhar mais amplo e inovador para a área. Desde o início, havia algo em comum entre eles. “Nós dois somos do interior. Eu nasci em Cascavel, e o governador também é interiorano. Conhecíamos bem a realidade da cultura no Paraná, que mantinha a maioria dos equipamentos do estado concentrada em Curitiba. Durante a conversa, ele fez uma provocação: “Amplie seu olhar para trabalhar por todo o Paraná”. E, no fim, lançou uma ideia inimaginável: “Quero trazer um museu internacional para o estado”.
Determinada a enfrentar o desafio, Luciana deu início a um planejamento. “Era dezembro, e eu assumi a pasta em janeiro, logo em seguida montei uma equipe com pessoas qualificadas. Como nunca fui da área política, procurei técnicos com currículos sólidos e, mais importante, que tivessem brilho nos olhos. Eu não confio em quem trabalha sem paixão.” Com essa combinação de visão e entusiasmo, deu início a uma jornada transformadora para a cultura do Paraná.
Centre Georges Pompidou. Crédito: Bigstock
Um dos projetos mais ambiciosos de sua gestão é a criação de uma extensão do Centro Georges Pompidou (Beaubourg), em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira. O projeto arquitetônico é de Solano Benítez, paraguaio,que coleciona prêmios como SI Swiss Architectural Award 2007-2008 (SUI), AIA Honorary Fellowship 2012 (EUA) e um Leão de Ouro da Bienal de Veneza 2016 (Itália). Benítez vai trabalhar em colaboração com a equipe francesa. Outro marco da gestão de Luciana será a extensão do Museu de Arte Contemporânea (MAC) do Paraná dentro do complexo Fábrica de Ideias, antigo espaço da cervejaria Brahma/Ambev, em um bairro um pouco deteriorado de Curitiba. O local de 50 mil metros quadrados será transformado em um espaço arrojado para arte, tecnologia e economia criativa, mantendo elementos arquitetônicos originais para criar ambientes singulares.
O MAC possui um dos maiores arquivos especializados em arte moderna e contemporânea do Sul do Brasil. A nova diretora, Juliane Fuganti, está animada pelo que ainda está por vir nos próximos anos, assim como Luciana. A secretária adianta que a museografia do novo espaço será decidida por profissionais da área, mas não deve ter um caráter tradicional, e estará aberta a investigações experimentais. “Às vezes você precisa de um espaço mais alternativo dentro da expografia. Não estamos pensando em um projeto museal, focado apenas no cubo branco.” Neste contexto, o propósito é provocar experiências e não apenas se limitar a expor objetos e obras de arte. “Vamos manter a interação permanente entre museu e público. O governador é jovem e acredita no potencial transformador da arte. Ele tem esse entendimento do quanto a arte é importante na formação do cidadão”, comenta.
Quando Luciana assumiu a pasta, as contas da secretaria estavam em estado de atenção. No entanto, hoje ela garante que a situação é outra. “No princípio, quando as coisas estavam mais complicadas, eu pensava pequeno e queria equilibrar os cofres dentro do clássico expediente: corte de pessoas. Tive a sorte de ter um secretário da Fazenda eficiente e que ama a arte, vive nos concertos, teatros, exposições. Foi ele quem ajustou as finanças.” A partir daí, ela passou a trabalhar no desenvolvimento e fortalecimento da cultura pensando grande.
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Fábrica de Ideias
Fábrica de Ideias
Fábrica de Ideias
Fábrica de Ideias
Fábrica de Ideias
Uma visita ao espaço da futura Fábrica de Ideias surpreende. O “esqueleto” da antiga Brahma chama a atenção pela autonomia formal ditada pelos equipamentos afins. Os antigos tanques cilíndricos, destinados ao armazenamento da cerveja e hoje retirados, criam vazios circulares imensos no piso, e nosso olhar liga alguns andares através desses gigantes orifícios, que o futuro projeto da Fábrica de Ideias deve incorporar, levando em consideração esses achados geométricos. O complexo tem pé-direito alto, espaços bem amplos e sem paredes, o que dá margem a eventos e atividades paralelas a uma exposição. O “passeio” de quase uma hora dá a dimensão da magnitude do lugar e das inúmeras possibilidades de ocupação.
O projeto arquitetônico de revitalização ainda não está pronto, mas um dos propósitos é transgredir os limites da mera contemplação, rumo a uma participação mais atuante do público. A área construída está estimada em torno de 34 mil metros quadrados e quase equivale à mesma dimensão de cada um dos três andares do Pavilhão da Bienal de São Paulo. A arquitetura, com os rastros da edificação original, dá sinais de que o lugar deve atrair muita gente interessada em arte, comunicação, inteligência artificial, tecnologia e economia criativa, forças motrizes desse projeto transformador.
A Secretaria da Cultura não está sozinha no megaempreendimento, ela faz parte de uma ação conjunta com mais de dez secretarias estaduais, entre elas: Inovação, Modernização e Transformação Digital, Planejamento. Luciana lembra que o governador veio da área da comunicação, e o gabinete dele é que vai se ocupar do Museu da Comunicação que estará ligado ao Museu da Imagem e do Som e Arte digital. “As coisas foram crescendo e o projeto ampliado. Um dos marcos dessa iniciativa será uma grande praça central que vai homenagear Alfred Agache, o idealizador do plano diretor de Curitiba, na gestão do Jaime Lerner.” Paralelamente, o conceito de retrofit, que revitaliza estruturas históricas, vai garantir que a identidade original do espaço seja preservada, enquanto novas funcionalidades o adaptam à contemporaneidade.
Os curitibanos são orgulhosos de seus personagens importantes e alguns deles serão eternizados nos muros da Fábrica de Ideias. Luciana cita os irmãos André e Antônio Rebouças, que dão nome ao bairro e foram os engenheiros responsáveis pela construção da linha férrea ligando Curitiba ao Litoral. “Também serão homenageados o físico e cientista curitibano César Lattes e o precursor da aviação Alberto Santos Dumont, um dos responsáveis pela criação do Parque Nacional do Iguaçu.”
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MAC do Paraná
Projeto de extensão do MAC do Paraná
Pergunto à secretária quanto vai custar esse megaempreendimento e ela garante que eles vão receber cerca de R$ 200 milhões em investimentos, com apoio da Audi do Brasil. Minha conversa com Luciana se alonga e percebo que não se trata de um projeto restrito, dedicado a um segmento da sociedade curitibana. Ao contrário. É amplo e recheado de complexidades, misturas, contrastes e diferenças. A utilização audaz da tecnologia não passará imune e já virou a chave da cultura de Curitiba. Luciana é uma líder visivelmente orgulhosa de seu fazer e de tantas iniciativas desafiadoras que estão por se concretizar até 2026. Curitiba tem cerca de 2 milhões de habitantes e a Secretaria de Cultura conta com bons equipamentos, entre outros: Teatro Guaíra (1954), Museu Oscar Niemeyer- MON (2002), Museu da Imagem e do Som-MIS (1969), Museu Paranaense-Mupa (1876), um dos mais antigos do Brasil, entre outros. O Estado ainda conta com a Bienal Internacional de Arte de Curitiba (1993).
Neste momento, o grande objetivo de Luciana está voltado para as celebrações do Ano do Brasil na França e da França no Brasil, com eventos programados para ocorrer entre maio e dezembro, dividindo-se igualmente em quatro meses em cada país. Luciana, acompanhada do governador, realizou uma viagem estratégica à França e obteve um marco significativo: a confirmação de uma apresentação da prestigiosa Ópera de Paris no Teatro Guaíra. Esse feito é resultado de intensas negociações bilaterais e abre caminho para um projeto de grande envergadura no Paraná, envolvendo uma parceria inédita. As tratativas continuam em curso, e a secretária manifesta sua visão ambiciosa para o futuro: “Assim como Santa Catarina abriga o Bolshoi, almejamos estabelecer a Ópera de Paris no Paraná. Queremos nos posicionar como protagonistas das comemorações do Ano da França no Brasil.”
O ápice dessa iniciativa está previsto para outubro de 2025, quando a renomada Ópera de Paris realizará um concerto conjunto com a Orquestra Sinfônica do Teatro Guaíra, marcando um momento histórico para a cultura paranaense e brasileira.
Fotógrafo, nascido no Cariri (Ceará) no seio de uma família com forte atuação política, Tiago Santana, 58, é um dos mais renomados autores a documentar a vida e cultura do sertão nordestino nas últimas décadas. Seja na premiada série Benditos (2000) ou nos fotolivros O Chão de Graciliano (2006), Patativa do Assaré(2010) e O céu de Luiz (2014), o artista consolidou-se como referência neste campo e, inclusive, foi um dos únicos dois brasileiros (junto a Sebastião Salgado) a ter um trabalho (Sertão, 2011) publicado na renomada revista francesa Photo Poche.
Dito isto, Santana sempre foi também um militante cultural, como gosta de dizer, ou seja, um sujeito atuante na defesa e promoção das artes na sociedade, consciente de seu potencial transformador humana, social e economicamente. O fato é que quando seu irmão, Camilo Santana (PT), elegeu-se governador do Ceará, no final de 2014, Tiago decidiu participar mais de perto da vida política e usou este espaço para lutar pelo setor cultural durante a gestão – que acabou por se estender com a reeleição de Santana em 2018 e, na sequência, com a eleição do também petista Elmano de Freitas, atual governador.
Foram quase 10 anos de atuação informal, ou seja, sem um cargo específico, nos quais houve grandes avanços na área. Junto a qualidade da educação pública no Ceará (não à toa Camilo Santana se tornou ministro da pasta na atual gestão federal), Tiago afirma que a política cultural no Estado também foi fortalecida, tendo seu orçamento aumentado até mesmo na pandemia. A cultura chegou a mais gente com a criação de novos equipamentos de ponta não só na capital, Fortaleza, mas em outras áreas do Estado.
Para geri-los, em 2021 foi criado o Instituto Mirante de Cultura e Arte, Organização Social (OS) que Tiago ajudou a fundar e na qual assumiu a direção em 2023, após a gestão inicial da advogada Lara Vieira. Assim como o histórico Instituto Dragão do Mar (OS pioneira no país, criada em 1998), o Mirante se tornou responsável por alguns dos 27 equipamentos públicos da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE). São eles o Centro Cultural Cariri Sérvulo Esmeraldo, um enorme complexo na cidade de Crato, o Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS) e a Estação da Artes, ambos em Fortaleza. Na Estação estão abrigados diferentes equipamentos: a Pinacoteca do Ceará, o Museu Ferroviário João Felipe, o Centro de Design do Ceará (Kuya) e o Mercado AlimentaCE. O Instituto Mirante, que possui ao todo 464 funcionários contratados diretamente, gere, ainda, o Sobrado Dr. José Lourenço, prédio histórico no centro da capital.
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Intervenção Artística com Renat Castillo no parque do Centro Cultural do Cariri.
Centro Cultural Cariri Sérvulo Esmeraldo
Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS)
Estação das Artes. Foto: Lia de Paula
Pinacoteca do Ceará. Foto: Marilia Camelo
Museu Ferroviário João Felipe. Foto: Lia de Paula
Centro de Design do Ceará (Kuya). Foto: Fernanda Siebra
Mercado AlimentaCE. Foto: Tainá Cavalcante
Sobrado Dr. José Lourenço
Em entrevista à arte!brasileiros, Santana falou sobre sua trajetória, o trabalho à frente do Mirante, a necessidade de “descentralização” dos investimentos em cultura no país e sobre um momento político no qual o avanço da extrema-direita (que demonstrou grande força na disputa eleitoral em Fortaleza neste ano) representa uma ameaça ao país nos mais variados campos, inclusive no cultural. “O resultado apertado foi um grande alerta, temos muito o que fazer. Não podemos, inclusive, esperar começar a próxima eleição para pensar no assunto. E assim arriscar de novo um projeto que entendemos ser o melhor projeto humano, um projeto de sociedade. Porque aqui [em Fortaleza] não estava em discussão apenas qual o melhor partido, a discussão era entre a barbárie e a civilização”, afirma.
Leia a seguir a íntegra da entrevista.
arte!✱ – Tiago, antes de falarmos do trabalho no Instituto Mirante propriamente dito, queria pedir para você contar resumidamente sobre esse caminho que te leva da fotografia para a gestão cultural. Em entrevista ao jornal O Povo você disse que sempre foi um militante cultural. Pode contar um pouco mais? Obrigado por me chamar de fotógrafo, ando carente em relação a isso, já que atualmente todos só me perguntam de gestão. Mas, brincadeiras à parte, essa questão da militância cultural é importante. Ela tem a ver com a minha fotografia também, mas vem até de antes. Eu vim de uma família militante. Meu pai [Eudoro Santana], com 88 anos hoje, foi e continua sendo militante político. E um sonhador. Então eu aprendi isso desde casa. Meu pai foi preso na ditadura militar, minha mãe também sempre esteve envolvida com a luta pela democracia no Brasil, e desde cedo eu e meus irmãos aprendemos com eles que devemos dar a nossa contribuição na transformação do lugar em que vivemos, do país, enfim. E cada um contribui da forma que pode. Uns no campo da política partidária, outros no próprio campo da arte, onde também se pode fazer política.
Aliás, um parêntese, eu nasci no Crato (no Cariri) por conta da ditadura militar, porque meu pai foi para lá fugindo da ditadura, já que ali foi um certo lugar de refúgio nessa época. Assim como alguns foram para fora do país, meu pai foi morar no Cariri. E acabou ficando décadas. Então, eu brinco que a única coisa boa da ditadura – que na verdade não tem nada de bom – foi eu ter nascido no Cariri. Porque foi definidor na minha vida, sabe? Ali é meio uma síntese do Nordeste, já que tem uma confluência de vários Estados do Nordeste. Aquela região é muito rica culturalmente, em todos os aspectos, e eu acho que ter passado a minha infância e adolescência nesse lugar foi muito determinante na minha visão de país. E, ao mesmo tempo, a experiência visual daquele lugar também é muito impactante.
E o meu pai também tinha uma relação com o audiovisual, ele usava o Super 8 e tinha um laboratório onde revelava as fotografias dele, de família. Aí eu obviamente fui me envolvendo. Então, no fundo, a fotografia foi um pouco o pretexto para poder registrar aquele lugar, a partir da experiência que eu tinha vivido ali. Então, resumidamente, acabei fazendo um livro que chama Benditos, que é muito importante para mim e, eu acho, é importante na fotografia documental, como registro daquele lugar. Depois eu fiz um livro com o grande jornalista Audálio Dantas (1929-2018), que é O Chão de Graciliano, dedicado à obra do Graciliano Ramos, e outro com o próprio Audálio chamado o Céu de Luiz, com o universo de Gonzaga – que nasceu em Exu (PE), ali na fronteira com o Crato. Fiz ainda um livro sobre o poeta Patativa do Assaré, com o pesquisador Gilmar de Carvalho, e teve também uma série minha publicada na Photo Poche, coleção francesa tão importante na minha formação. Falo da importância de estar nela não para me vangloriar, mas pelo fato de a coleção olhar muito pouco para além da Europa e dos Estados Unidos. Vejo que isso agora está mudando um pouco, com outros nomes latino-americanos, mas ainda é insuficiente.
arte!✱ –Mas então conte como vem a coisa da gestão, a aproximação com a política no sentido mais institucional… Acabei me envolvendo mais diretamente na questão da gestão cultural especialmente nos últimos dez anos. E não tem porque esconder, claro que foi muito por conta da relação com meu irmão, que virou governador do Estado. Eu não fui da gestão, no sentido de ter cargo, mas não podia deixar de contribuir, me envolvi muito. Eu já era um militante do campo cultural, sempre estive frente às pautas aqui, apoiando em diversos governos, defendendo a importância e a relevância da cultura. Mas foi mais diretamente nestes últimos dez anos que eu não podia ficar fora.
É a tal história: se eu ficasse fora, sem ajudar, iam criticar, dizer que eu tinha a oportunidade e não ajudei. Se eu ficasse dentro, iam reclamar do mesmo jeito. Entre um e outro, eu decidi contribuir, mesmo que de forma voluntária, dando ideias, sugerindo, brigando por orçamento. Já que estamos falando de militância… então, aí eu acho que era um compromisso, contribuir em um momento em que eu poderia ser mais ouvido. E quando falo “eu”, falo de uma coisa mais coletiva, de um grupo de pessoas que de alguma forma poderiam se envolver.
E o Ceará sempre foi muito à frente do seu tempo na gestão cultural. Por exemplo, a criação da primeira Secretaria de Cultura do Brasil foi no Ceará [em 1966]. Temos também a primeira OS, o Instituto Dragão do Mar. Quer dizer, há uma experiência de estar na vanguarda das políticas culturais, e não falo só de agora. Mas eu acho que a última década foi muito importante na consolidação do Ceará como um lugar que, inclusive em um momento muito difícil, no qual até o Ministério da Cultura foi extinto, o Ceará foi um farol, resistiu. E talvez tenha sido um dos únicos estados que mesmo nos anos de pandemia não parou de investir na cultura.
E sabemos da complexidade que é isso. Um Estado que é pobre, que obviamente tem que ter escolhas na hora de dirigir um orçamento limitado. Enfim, é muito complexo, mas houve um entendimento sobre isso. Porque talvez a cultura seja a pasta mais transversal de um governo, sabe? Ou uma das. Quando você investe em cultura você está investindo em prevenção de violência, você está investindo em mais educação, você está investindo em mais saúde – porque cultura é também saúde –, em segurança pública, na juventude e assim por diante. E eu sempre brinco: quando falam em investir em infraestrutura, em fazer estrada, com bilhões de reais, aí é tudo tranquilo. Mas quando falam em investir um dinheiro substancial na cultura, aí acham que é um absurdo, né?
arte!✱ – Como se fosse algo supérfluo… Sim. E quando falo que houve um entendimento, eu não estou te falando que nada disso foi uma coisa fácil, mesmo tendo um governador com essa compreensão. Até porque o tempo de governo é um tempo muito complexo. Qualquer determinação, até chegar lá na base, passa por várias camadas, burocracias, licitações, enfim, não é fácil. Mas, como militante, meu papel era lutar para que a gente avançasse. E falo tranquilamente que eu acho que o Ceará avançou muito do ponto de vista das políticas culturais. E até da institucionalidade da própria Secretaria de Cultura. Ela, em 50 anos, nunca tinha tido um concurso público. E nessa gestão isso foi feito, pela primeira vez. Então não era só questão de orçamento, era pensar a própria estrutura da Secult para geri-lo, executá-lo.
E, claro, eu estou falando um pouco da minha experiência, mas foi uma construção coletiva, de muitos atores, onde o meu papel era esse, de brigar, pressionar, lembrar que a Cultura é estratégica, inclusive economicamente, algo que raramente é lembrado. O PIB da cultura no Brasil é maior que o PIB da indústria automobilística. Só que nós não temos a mesma narrativa e o discurso que a indústria, o mercado, os economistas têm, né? E é um dever de casa, mostrar a importância e o impacto gerado ao se investir em cultura. E isso tem que estar refletido no orçamento. No Ceará, neste período de que estamos falando, o orçamento do Estado em cultura aumentou cinco vezes, mesmo nos períodos mais difíceis como a pandemia. E queremos que aumente mais, claro.
E dentro disso houve o crescimento também do investimento na infraestrutura dos equipamentos culturais da Secult, esses que são geridos pelos institutos Dragão do Mar e pelo Mirante, em um modelo que é considerado muito exitoso. O governo dá o norte da política, mas a OS administra, executa. Isso facilita, né? Há ainda alguns equipamentos geridos diretamente pela Secult, mas a ideia da secretária Luiza Cela –que também é uma militante do campo cultural há muitos anos – é que todos esses equipamentos sejam geridos por organizações sociais. E isso não é uma critica à capacidade do serviço público, nem nada daqueles discursos anti-Estado, muito pelo contrário, mas uma percepção de que tem sido eficaz, que é um caminho para se fazer junto, melhorar, simplificar.
arte!✱ – Até porque uma OS não tem fins lucrativos e trabalha diretamente para o poder público… Sim, e eu acho que o Estado não pode jamais abrir mão de seu papel, porque cultura é um direito também, assim como educação, saúde. Então o Estado tem que aportar recursos na cultura. Mas acho que a OS pode ajudar também a incrementar esse orçamento, captando também com a iniciativa privada. Para poder ter mais programação, mais coisas. Mas o Estado não deve nunca sair do protagonismo, ele é fundamental como um garantidor desse direito essencial que é o direito à cultura.
E outra coisa que eu queria ressaltar é que também nessa gestão fizemos pela primeira vez uma descentralização dos equipamentos de cultura do Estado do Ceará, que eram todos em Fortaleza. A exemplo do Centro Cultural do Cariri, que é uma espécie de Dragão do Mar [centro cultural tradicional em Fortaleza, gerido pelo IDM) no interior do Estado. Se você pensar na importância do Dragão do Mar, criado em 1999, ele transformou e segue transformando várias gerações. Então eu imagino no Cariri, onde o centro vai completar ainda três anos, você imagine daqui a 10 ou 20 anos, como é que ele vai ter impactado gerações de pessoas que tiveram a possibilidade de ter um equipamento de ponta como esse em suas vidas.
É um equipamento de altíssima qualidade, que eu diria que não tem nenhum aqui em Fortaleza igual, porque ele é um “centro cultural parque”, tem um teatro incrível quase pronto, um planetário, residências artísticas com apartamentos para receber convidados, salas para oficinas. Enfim, ele tem características dessa relação entre natureza, ciência, tecnologia e cultura que é muito interessante. Olha, eu que sou de lá adoraria ter nascido numa época em que tivesse um lugar desses. E isso que nos motiva, sabe? Esse impacto na vida das pessoas, isso é muito bonito. Você chega lá em um domingo e tem 5 mil pessoas fluindo ali naquele espaço, seja no parque, seja vendo exposições, seja vendo um show, seja fazendo uma oficina. Às vezes as pessoas nas secretarias de governo ficam vendo apenas números, planilhas, mas não entendem essa beleza.
E nesses lugares carentes de equipamentos desse tipo o impacto é muito grande. Tem gente que talvez nunca entrasse em um museu, mas que está no parque fazendo um piquenique e acaba entrando. Ou talvez uma pessoa que nunca iria em um show ou numa peça de teatro, mas está no parque e acaba indo. Eu me surpreendo cada vez que eu vou lá. Inicialmente não achávamos que teria tanta adesão e ocupação, mas a coisa foi se transformando, tivemos que ter mais equipes, mais orçamento. Milhares de pessoas foram ocupando e querendo mais, isso tem sido muito bonito. E não é só gente do Crato, ele é regional, atrai as pessoas da região inteira. E sendo muito democrático, com gente de todas as classes sociais convivendo.
arte!✱ – Pegando o gancho do Cariri, queria te pedir então para contar um pouquinho mais sobre os outros equipamentos geridos pelo Mirante. Quais são e como tem sido o trabalho com eles? Começando pelo Museu da Imagem e do Som, que obviamente é muito especial para mim pela minha relação e compromisso com a imagem, o MIS já tem quase 45 anos, já existia, mas era um lugar que estava muito triste de se ver, sem espaços e uma reserva técnica adequados. Era uma casa que tinha uma importância histórica para a cidade, mas estava precisando de reforma. Enfim, não existia um MIS como a gente deveria ter, e então ele foi construído com uma estrutura de ponta.
Já a Estação das Artes é um grande complexo onde temos a Pinacoteca do Ceará, que era uma demanda, um sonho de muitos anos do campo artístico. O Governo do Estado tem um acervo muito importante e ele estava em condições complicadas. A única reserva técnica que o Estado possuía era a do Centro Cultural do Dragão do Mar, que tem 20 e tantos anos e não tinha mais condição de receber esta coleção. Então a Pinacoteca vem não só para a parte de fruição, pela importância que é ter espaços adequados para montar grandes exposições e abranger grandes projetos, mas também para salvaguardar e cuidar desse ativo cultural e econômico que é o acervo.
Então, a Pinacoteca e o MIS nascem com reservas técnicas adequadas para suas áreas, pensando no que já existe e também nos acervos futuros. Foi um grande investimento e sem sombra de dúvida – nem sou eu que digo, mas os especialistas que vêm visitar – é a melhor reserva técnica de museu público do país. Na sua dimensão, na sua qualidade…
No complexo está também o Museu Ferroviário – lembrando que ali era a Estação Ferroviária João Felipe –, um espaço específico dedicado à memória e ao patrimônio ferroviário do Ceará; tem ainda o Centro de Design (Kuya), que tem a ver com o fato de Fortaleza ser uma cidade internacional do design, inclusive com certificação da Unesco, e que pretende conectar o design local com o do resto do Brasil, da América Latina, enfim, do mundo. E é um lugar para se pensar o design de modo amplo, inclusive politicamente, pois ele está em tudo na nossa vida.
E por fim a própria Estação acabou virando um lugar de feiras e, especialmente, de música. Isso nem estava previsto, mas foi acontecendo e hoje eu nem imagino Fortaleza sem esse espaço musical. Shows para no máximo 2 ou 3 mil pessoas, até porque é um patrimônio tombado. E, por último, tem o mercado de gastronomia, também no complexo. Hoje temos uma ocupação ainda temporária, mas seis restaurantes estão sendo implantados ali de forma definitiva até o ano que vem. O Ceará também é um dos poucos Estados do país que tem uma lei da gastronomia, e queremos valorizar isso, a gastronomia como um eixo de política cultural.
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Estação das Artes. Foto: Thiago Matine
Centro Cultural Cariri Sérvulo Esmeraldo
MIS Ceará
arte!✱ – Quer dizer, é um espaço muito diverso. E ali está também a Secult, certo? Sim. Esse projeto foi uma parceria com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), porque anteriormente parte desse espaço era dele. Então houve uma cessão, o Estado restaurou, reformou e construiu ali. Inclusive a sede do IPHAN hoje está instalada no complexo, assim como a sede da Secretaria de Cultura.
Aliás, um detalhe sobre esses três equipamentos (Estação, MIS e Centro do Cariri) é que, por coincidência, eram todos imóveis tombados, tinham patrimônios históricos importante a serem preservados. E todos tem as partes restauradas, a preservação, acrescidas a construções modernas, que pudessem complementar o conjunto arquitetônico. Trata-se de respeitar a história, que é muito importante, e trazer para o presente a modernidade. Investimos muito em tecnologia.
Mais uma vez, quando a gente chegava numa reunião dessas com os “economistas”, digamos assim, para decidir o orçamento, eles questionavam para que tanto dinheiro em tecnologia. “Para que o MIS precisa ter uma sala imersiva?”, diziam. E nós sabemos que custa caro, mas é importante. Quando você vai fazer um hospital não precisa colocar as coisas mais tecnológicas e avançadas? Sim. E precisa-se de dinheiro pra isso, não é? Então por que na cultura tem que ser diferente? Acham que sempre pode-se botar o que é mais ou menos, o menos ruim. Não, a gente tem que fazer o melhor. Mas isso não é fácil como compreensão… acho até que parte desses meus cabelos brancos foram por essas batalhas.
E hoje temos no laboratório de conservação do MIS, por exemplo, equipamentos que nenhum outro lugar do Brasil tem. Porque achamos que quando você vai tratar de um acervo público, cuidar da memória, é importante ter os melhores equipamentos.
arte!✱ – Inclusive, eu vi uma entrevista sua falando sobre a importância econômica da área cultural e nela você diz que parte das elites do Ceará dá muito valor para o MoMA, em Nova York, ou para o Louvre, em Paris, mas não percebe a importância e o impacto socioeconômico que pode ter, por exemplo, a Pinacoteca do Ceará. A que você acha que isso se deve e como mudar essa visão? Veja só, muitos empresários cearenses são patronos de equipamentos em São Paulo, como a Pinacoteca ou o MASP, mas esquecem que a gente tem agora a Pinacoteca do Ceará. Obviamente temos um papel em inverter um pouco esse pensamento e atraí-los para ver e entender o espaço. Quem vem na Pinacoteca hoje e conhece o lugar vê que ele não deixa a desejar a nenhum equipamento do Brasil. E falo até pensando no mundo, pois é um lugar bem cuidado, com todas as características museais necessárias, uma equipe qualificada. Claro, um centro cultural nunca nasce pronto, ele vai se ajustando ao longo do tempo, mas, ele já nasce grande nesse sentido. Com o pé no chão, mas entendendo sua importância e relevância.
Ou mesmo pensando no centro do Cariri. Por ser no interior você não pode ter uma galeria de qualidade igual a que tem na Pinacoteca de São Paulo ou no MASP? Pois lá tem. Então há um pensamento muito equivocado que precisa ser transformado. E claro que esse foi um embate aqui no Ceará também, mas eu acho que houve uma compreensão do governo, uma parceria nesse sentido.
Exposição de Chico da Silva da Pinacoteca do Ceará. Foto: Marilia Camelo
arte!✱ – Voltando um pouco ao assunto da descentralização dos equipamentos, a partir do que você falou sobre ter espaços de qualidade não só em Fortaleza, eu queria aproveitar para falar também na necessidade de descentralização dos investimentos em cultura em âmbito nacional, lembrando que grande parte do dinheiro, dos grandes eventos e das maiores instituições ainda se concentram no Sudeste, especialmente em um eixo Rio-SP. Você vê esse quadro mudando? Sim, essa é uma questão importante. E aí eu até faço uma observação. Quando a gente fala em descentralizar, depende do ponto de vista de onde é essa centralidade. Porque quando a gente imagina o Brasil, a centralidade é sempre São Paulo, Rio, no máximo Belo Horizonte. E o Brasil não é São Paulo e Rio – eu adoro ambos, não se trata disso. Mas devemos inverter um pouco essa lógica. Assim como quando falamos em centro e periferia…
arte!✱ – E você acha que o Estado do Ceará está dando um pouco um exemplo do que pode ser feito em outros lugares do Brasil? Eu acho que sim, que o nosso caso chama atenção para isso. Agora, por exemplo, está tendo um movimento muito interessante também no Pará, com a história da Bienal das Amazônias. E, inclusive, acabou de ter lá um grande encontro de gestores da América Latina. Enfim, a própria ida da conferência da COP para lá… Eu acho que esses movimentos precisam ser feitos e acho que o Ceará deu uma contribuição nesse sentido. Eu até fiz uma provocação com o próprio Instituto Moreira Salles, que fica ali entre Rio e São Paulo, de que eles deveriam abrir uma sede aqui em Fortaleza, inclusive porque existe no pensamento deles essa visão sobre um Brasil mais amplo. Então acho sim que nós ajudamos a construir e a entender que o Brasil é muito grande, é um país continental, muito diverso, e que precisa dar conta um pouco dessas diversidades – culturais, linguísticas, étnicas, de gênero… da diversidade de vozes.
arte!✱ – Falando nisso, é notável na programação dos equipamentos do Mirante uma preocupação com pautas ligadas à identidade nordestina, à valorização da cultura regional, e também pautas ligadas a questões de raça, gênero etc. Olhar para grupos historicamente marginalizados ou minorizados é um eixo de trabalho do instituto? Sem dúvida. Acho que no Brasil em que a gente vive hoje, no mundo em que vivemos, não dá para ficar mais sem trazer essas questões, essas pautas. É uma briga que a gente tem que ter, e o Instituto Mirante já nasce com esse compromisso. Acho que foi a primeira OS que nasceu, por exemplo, já com as assessorias específicas voltadas para essas áreas, ou seja, uma assessoria de políticas afirmativas e uma assessoria que trata do território. Temos equipes e pessoas qualificadas que trabalham isso.
Pois não adianta você implementar um equipamento como a Estação das Artes no centro da cidade, numa área complexa, onde há ao lado uma comunidade que tem uma questão grave de tráfico, de violência, e não trabalhar em diálogo e em conjunto com eles. A comunidade não é um ser estranho que chega ali. Pelo contrário, você que é o ser estranho que está chegando. Então esse diálogo com a comunidade, com o território, eu acho que isso é uma coisa que, desde o início, temos no pensamento da própria instituição.
Além disso, nas equipes contratadas pela própria instituição temos uma enorme diversidade, com pessoas trans, pessoas negras, indígenas, um percentual alto de mulheres…. Enfim, isso é importante também, porque não basta ficar só no discurso. A dívida que temos com a sociedade brasileira, com esses diversos grupos minorizados, é muito grande. Então temos que ter essa preocupação, seja nos editais, seja no pensamento sobre as exposições, sobre as oficinas, sobre os shows e assim por diante.
E sabemos o quanto isso gera embates. Nesse campo bolsonarista, por exemplo, a gente é muitas vezes bombardeado por conta de um edital que vai trabalhar, por exemplo, na questão de trans. Porque a sociedade ainda é muito preconceituosa. Nós somos, né? E digo nós, eu me incluo também, porque muitas vezes a gente se dá conta de uma palavra que solta, de um gesto que a gente faz… e precisamos estar atentos a isso.
E existem as questões de acessibilidade, que acho que o Mirante é inovador também neste sentido. A gente tem acessibilidade em vários níveis, com especialistas contratados no próprio corpo de funcionários CLT, e uma preocupação seja nas exposições, nos shows, enfim, todas as atividades culturais. Enfim, são várias preocupações, pensando em formas de dar uma contribuição na inovação da gestão pública de cultura, em como construir mecanismos que possibilitem também um acesso mais democrático nos vários níveis.
arte!✱ – Bem, estamos até aqui falando de coisas positivas, mas é impossível não pensar também que acabamos de ter uma eleição em Fortaleza muito disputada, em que o candidato derrotado (o bolsonarista André Fernandes, do PL) teve uma porcentagem muito alta de votos, apresentando uma visão muito diferente de política e de cultura desta que estamos falando. Enfim, este fortalecimento da extrema-direita não representa uma ameaça também ao campo cultural no Estado do Ceará? Sim, eu acho que a gente tem que estar atento e forte o tempo todo. Porque isso não passou, está aí. Essa descoberta que aconteceu agora [no dia da entrevista havia sido revelado o relatório sobre a trama golpista], dessa facção, uma coisa criminosa… essas pessoas deveriam estar na cadeia imediatamente. É tão grave. E isso não passou. Porque esse exemplo do André Fernandes tem a ver com narrativa construída. Um jovem, do campo da comunicação, que foi youtuber, sabe se comunicar bem, criou uma narrativa de que ele é a mudança e tal. E temos que ter muito cuidado. A cultura teve um papel importante nessa eleição, inclusive na aproximação da política principalmente com a juventude. Porque acho que temos uma geração que não sabe, não passou, que nem entende o que foi a ditadura militar. Por isso que eles ficam aí cuspindo, falando que não houve ditadura. E tem também uma geração que nem viveu a mudança que o Lula fez na primeira gestão. Ou seja, são pessoas que precisam ser aproximadas, né? E essa eleição foi um grande alerta, porque não foi fácil, mostrar que era o pior candidato, falando coisas absurdas…
arte!✱ – Como o Pablo Marçal em São Paulo… Exato. Então eu acho que temos muito o que fazer. Não podemos, inclusive, como esquerda, esperar daqui a dois anos começar a próxima eleição para pensar no assunto e trabalhar. E assim arriscar de novo um projeto que a gente entende que é o melhor projeto humano, um projeto de sociedade. Porque aqui não estava a discussão apenas sobre qual o melhor partido, a discussão era entre a barbárie e a civilização.
E que a cultura e a educação, principalmente no nosso caso, podem contribuir muito para que a gente se comunique com essas pessoas, principalmente os mais jovens. E nós não podemos correr riscos, porque sabemos o que seria da cidade de Fortaleza no campo cultural se o outro candidato tivesse ganhado.
O que vai ser bom, agora, é que teremos uma prefeitura [Evandro Leitão, do PT] que vai fortalecer e potencializar o projeto que já temos feito. Porque uma coisa é você tomar uma decisão política, colocar os recursos necessários, fazer uma infraestrutura cultural de qualidade. Isso é muito importante. Mas, mais importante, ou tanto quanto, é você manter isso. Manter os investimentos, não só do aspecto físico, da estrutura, mas da programação, das entregas ao público. Esse é outro desafio também.
arte!✱ – E há também parcerias com o governo federal? Sim, isso também é algo importante, pois agora temos do nosso lado o Ministério da Cultura (MinC), que havia sido extinto [no governo Bolsonaro]. Então, todos esses investimentos que feitos no Estado do Ceará nos últimos anos foram com o dinheiro do próprio Tesouro Estadual. Não tem um tostão de governo federal. E agora a gente tem possibilidade de ter parcerias, de ampliar isso com o MinC, o que é muito bom. Obviamente, o ministério passou por um processo também de reconstrução, mas eu acho que os próximos dois anos serão muito férteis para nós.
Então estamos caminhando, o Ceará avançou muito nos últimos dez anos, mas essa é uma estrada longa, né? Quando eu falo que aumentou muito o orçamento em cultura, a gente ainda quer muito mais. E aí as entregas serão maiores, o número de população atendida maior. Sabemos que há limites, mas seguiremos lutando por isso.
E quanto aos equipamentos geridos pelo Mirante, é preciso lembrar que eles são muito novos. E não nascem prontos, né? Se nascesse pronto, estava morto. E eles vão crescendo e vão sendo construídos no diálogo. Não só com governos, mas estou falando de uma forma mais ampla, com os produtores culturais, os artistas, a comunidade, os territórios. Todos vão contribuindo de alguma forma nessa construção.
A exposição “O Olho da Noite”, de Jean-Michel Othoniel, com curadoria de Marc Pottier, celebra os 22 anos do Museu Oscar Niemeyer e fortalece o diálogo entre o Paraná e a França. O artista francês apresenta 25 obras, ocupando vários dos espaços expositivos: o Olho, o espelho d’agua e mais duas galerias.
Jean-Michel Othoniel realizou várias exposições internacionais desde sua participação na Documenta de Kassel, em 1992. Ele conta que, quando ainda era um jovem artista, conheceu pessoalmente Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro, e contemplou estrelas no céu com ele através de uma das grandes janelas de seu apartamento: “Foi nessa memória poética que minha primeira exposição individual no Brasil foi construída”.
No espaço curvo do Olho, foram pendurados colares de vidro gigantes representando os signos do Zodíaco e lotus que sobressaem no espelho d’água, provocando reflexos.
Confira nossa conversa com o artista no dia da inauguração da mostra.
Arte!: Quando e por que você decidiu trabalhar com o vidro como sua matéria principal?
Jean-Michel Othoniel: Acho que o material não foi a primeira coisa que veio à minha mente quando comecei a trabalhar. Foi uma maneira de oferecer uma visão do mundo mais otimista, usando essa ideia de beleza e de trazer beleza para o mundo de hoje. Essa foi a minha ideia há 20, 25 anos. E, aos poucos, percebi essa ideia de que trazer beleza, levar esperança para as pessoas, era importante para mim como artista, quase como um ato político, trazer beleza para o mundo.
E o vidro é um material que todo mundo conhece, faz parte da nossa intimidade e está em todo o mundo. Então, pessoas na Ásia, na África, na Europa, na América do Sul, todos têm uma experiência com vidro e uma espécie de poesia mágica na sua intimidade. Foi uma forma de usar um material capaz de dialogar com diferentes civilizações, diferentes formas de pensar, diferentes religiões. É um material que fala sobre fragilidade, sobre o fato de que você precisa aceitar sua própria fragilidade para enfrentar o mundo. E, ao aceitar isso, você se torna mais forte. Isso foi algo importante para mim quando decidi usar esse material.
Depois dessa visão conceitual do material, sempre fui surpreendido por ele: sempre novas ideias, sempre novas cores, sempre novas pessoas para conhecer de diferentes países. Trabalhei com sopradores de vidro indianos, italianos, suíços. Trabalhei no México com sopradores mexicanos, no Japão com sopradores japoneses. E, a cada vez, é uma forma de descobrir o mundo e diferentes culturas.
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Jean-Michel Othoniel no MON
Jean-Michel Othoniel no MON
Jean-Michel Othoniel no MON
Jean-Michel Othoniel no MON
Arte!: Qual foi teu primeiro contato com a arte?
Jean-Michel Othoniel: Tive a sorte, quando criança, de ir a um museu quando tinha 6 ou 7 anos. Isso porque eu vivia em uma cidade comunista no centro da França chamada Saint-Étienne. E lá não havia muita coisa. Era uma cidade muito pobre, com minas e pessoas trabalhando no carvão. Era uma cidade suja, mas nós tínhamos um museu de arte contemporânea com artistas contemporâneos indo para Saint-Étienne nos anos 1970, o que era algo completamente novo. E as pessoas vinham de toda a Europa só para ver exposições e trabalhar lá. E, como crianças das escolas, éramos obrigados a ir ao museu toda quarta-feira.
Foi mágico para mim, como uma janela que se abriu. Uma janela para a liberdade, para outra visão do mundo. E isso mudou a minha vida. Então, eu disse aos meus pais que queria ir para a escola de arte quando tinha 7 anos. E fui. Após a escola, toda quinta-feira à noite, eu passava três horas desenhando com os artistas na escola de arte.
Arte!: Então você fez escola de arte?
Jean-Michel Othoniel: Sim, comecei na escola de arte aos 7 anos. E fiquei totalmente fascinado por isso. A ideia de se expressar era uma forma de abrir sua mente e libertar sua alma. Eu gostava de ler sobre arte, ir a museus, desenhar. Eu era feliz fazendo isso. Mas decidir ser artista, acho que não é uma decisão que você toma. Acho que a vida escolhe por você. Em algum momento, isso se torna uma necessidade na sua vida. Você só consegue fazer isso e nada mais. Decidi trabalhar com arte com 22 ou 23 anos.
Arte!: Você já tinha estado no Brasil e se encontrado com Niemeyer no Rio de Janeiro, certo?
Jean-Michel Othoniel: Sim! Tive a oportunidade de ser convidado ao seu apartamento. Ficamos horas conversando e olhando um céu estrelado. Ele disse “quero mostrar para você onde eu faço meus desenhos”. Aí ele me levou numa sala muito pequena, talvez, não sei, 10m², talvez 25m², cheia de livros e no meio, uma mesa pequena, talvez 1m x 1m, uma mesa muito pequena. Quando eu vi isso, eu disse, meu Deus, esse gênio desenhou toda essa arquitetura em uma mesa tão pequena. Foi um choque para mim. Um presente. Um homem tão brilhante e famoso e tão humilde.
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Jean-Michel Othoniel no MON, em Curitiba
O curador Marc Pottier no MON, em Curitiba
Arte!: Aqui tem diferentes modulação de um mesmo material o que inspira cada um?
Jean-Michel Othoniel: Eu tenho dois modelos em minha obra, as contas [beads, contas de colares] e uma espécie de forma quadrada , de tijolo. E esses dois modelos são coisas que as pessoas conhecem em todo o mundo. A ideia do tijolo existe em tantas religiões e em todas as culturas. Os tijolos podem compor módulos que eu uso e com eles posso fazer tanto pequenas como grandes esculturas, que podem ir a 20 metros de altura.
Quando fui trabalhar na Índia fui para um lugar que se chama Firozabad, que é uma pequena vila. Encontrei um jeito de entrar em uma família de sopradores de vidro, o que não era fácil, porque eles não falavam inglês. Era no meio do deserto, perto de Agra, perto do Taj Mahal, mas no meio do nada, sem hotel, sem onde ficar.
Foi um grande desafio. Na estrada para chegar nesse lugar vi vários pedaços de tijolos no chão, feitos com terra para construírem suas casas. Para mim, foi uma mensagem maravilhosa, uma mensagem sobre o que as pessoas podem ter em mente, a expectativa de construir sua própria casa. Aí pensei: eu quero soprar tijolos.
Não foi fácil, porque era preciso soprar um quadrado em vez de soprar em uma forma esférica. Então trabalhei com eles. Fizemos algumas amostras soprando na areia, soprando no barro. Aos poucos fomos encontrando uma maneira de realizar esse projeto. Tínhamos instrumentos muito antigos como moldes. Foi como trabalhar no passado, era como trabalhar há 200 anos.
Arte!: Cada cultura desenvolve diferentes experiências com o vidro?
Jean-Michel Othoniel: Cada país tem uma visão diferente do vidro. Por exemplo, na Índia, o vidro está muito ligado à arquitetura de joias, por causa dos pavilhões dos marajás feitos de vidro. Você tem móveis feitos de vidro para casamentos há 200 anos. O mundo do vidro indiano está muito conectado com contos de fadas. Para eles é algo mágico.
Se você for à Itália, é mais sobre design. Eles querem criar formas bonitas, com cores incríveis, perfeitas. O vidro é totalmente transparente. Se você for ao Japão, é mais meditativo. É sobre a maneira de trabalhar. Você mistura o vidro com folhas de ouro e trabalha nos detalhes. As pessoas veem o vidro como uma forma de meditação.
Cada país traz uma nova experiência e uma relação com o vidro que é ligada à sua própria cultura. E eu adoro descobrir isso, porque me traz novas ideias, novas conexões com o mundo.
Até a próxima quarta-feira, 11 de dezembro, o setor de artes visuais do país estará em alerta vermelho. O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, indicou que o projeto da Reforma Tributária volta ao Congresso na segunda-feira e, na quarta, já poderá ir ao plenário da casa, como prioridade de encerramento do ano. Mas o que o setor de artes tem a ver com a reforma? Basicamente, tudo.
Quando um artista plástico vende uma obra de arte, a saída de uma peça (uma pintura, gravura, objeto conceitual, escultura etc) é realizada com isenção de ICMS, não há tributação do consumo (a tributação somente será aplicada ao artista na sua declaração de Imposto de Renda). Usualmente, durante as feiras de arte, quando essa operação é praticada por uma galeria, existe o benefício do crédito presumido do ICMS, que consiste no seguinte: a obra entra na galeria sem cobrança de ICMS, e, na venda, ainda tem o crédito presumido (também conhecido como crédito outorgado, um recurso utilizado pelos estados e Distrito Federal para dispensar o contribuinte da carga tributária que incidirá sobre as operações). Com a reforma tributária (Projeto de Lei 68/2024), esses benefícios para as artes visuais estarão extintos.
A reforma prevê a exclusão da comercialização de obras de arte do Regime Diferenciado, mecanismo que reduz a alíquota do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em 60% para setores como eventos e audiovisual. É uma situação complexa: a nova lei cria regras que vão viabilizar o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) dual, com a substituição de cinco tributos (ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins) por três: Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de nível federal; Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de nível estadual e municipal; e o Imposto Seletivo, de nível federal. O fato é que, como consequência, isso deverá aumentar a até 27% o preço de uma obra de arte no país. Para efeitos de comparação, outras nações, como França, Bélgica, Inglaterra e Alemanha, aplicam alíquotas entre 5% e 7% atualmente. As vendas diretas de obras de artistas pelas galerias têm um crédito presumido de 50% do imposto, apenas nas feiras é que têm isenção de 100%.
Galerias, marchands, feiras, exposições, artistas e ativistas do setor estão alarmados e buscando reverter a situação. Em uma mobilização inédita (e de rara envergadura), a primeira na história, as artes visuais criaram este ano o Coletivo 215, uma aliança entre a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT, que representa cerca de 60 galerias de arte contemporânea no Brasil), ArtRio, SP-Arte e a Associação de Galerias de Arte do Brasil (AGAB). Seu ativismo pleiteia a defesa e o fortalecimento do setor, mas o foco principal é reivindicar o cumprimento rigoroso do artigo 215 da Constituição Federal, que dá nome ao grupo. O artigo é o que garante pleno exercício dos direitos culturais, a manifestação e difusão das manifestações culturais e o acesso à cultura.
Conforme o coletivo, o mercado de artes visuais pode vir a sofrer um raro isolamento internacional caso seja aprovada a Reforma Tributária da forma que está, pelo encarecimento que provocará nas operações de comércio de obras. Segundo diagnóstico do Coletivo 215, as feiras de arte impulsionam fortemente a economia criativa brasileira. Elas reúnem anualmente cerca de 200 galerias, exibem mais de 2 mil artistas e recebem cerca de 100 mil visitantes, gerando mais de 10 mil empregos diretos e indiretos e permitindo a arrecadação de mais de R$ 20 milhões em impostos.
As galerias estimam que, com sua exclusão do Regime Diferenciado de tributação, a situação poderá até conduzir ao fechamento de muitas delas, especialmente as menores. Também poderá afastar galerias internacionais que porventura queiram adquirir obras de artistas brasileiros, pelo encarecimento, e até impactar na produção artística, via estrangulamento. As artes visuais querem ter uma atenção em pé de igualdade com outros setores da cultura.
O galerista Alexandre Roesler vê perigo real de um retrocesso na área da cultura. “O setor cultural sempre teve um tratamento diferenciado, não só aqui no Brasil, mas no mundo todo, pela capacidade que a cultura tem de definição da identidade nacional, sua característica de soft power, sua importância para a vida das pessoas”, pondera Roesler. “A reforma é muito bem-vinda, vai simplificar, traz menos burocracia para uma série de coisas”, ele afirma. Mas precisa garantir isonomia para as artes.
Segundo o galerista, ao ser feita a emenda constitucional, houve um entendimento de que, sim, era necessário que o setor cultural continuasse tendo um tratamento diferenciado. “Então, eles colocaram lá que produções artísticas e culturais teriam a redução de 60% das alíquotas finais. Isso foi levado em consideração para alguns setores estratégicos, como educação, saúde e cultura. Aparentemente, estava tudo em ordem. Mas, quando foram escrever o PLP 68, na definição do que é produção artística cultural nacional, só incluíram serviços”.
Assim, diversos segmentos da cultura foram plenamente contemplados, como o audiovisual, o setor de eventos, mas não as artes visuais. “O produto do artista visual não é um serviço. Os artistas produzem obras de arte que são objetos tangíveis, não se trata de uma prestação de serviços. O que pedimos é que seja incluída [no texto] também a transação com bens, porque, se não estiver contemplada, pintores, escultores, galeristas, toda a cadeia será muito prejudicada”.
De fato, a Emenda Constitucional no 132, aprovada no fim de 2023, estabeleceu que as produções artísticas e culturais receberão tratamento diferenciado na reforma. Mas, para o Coletivo 215, ainda se faz necessário que a regulamentação por leis complementares defina os setores beneficiados dentro desse guarda-chuva de “produções culturais e artísticas”. Em maio deste ano, o grupo encaminhou uma Nota Técnica ao Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados que trata do tema (e ao Ministério da Fazenda), na qual consta a proposta da Emenda 477, que sugere que o regime especial para o setor abranja “operações com serviços e bens, tangíveis e intangíveis, envolvendo produção, feira, exposição, intermediação, importação, repatriação e comércio de obras intelectuais”.
“A aprovação da Emenda 477 impactará positivamente essa esfera econômica gerando empregos, renda e promovendo a imagem do Brasil no cenário internacional”, afirma o coletivo, em nota. “O mercado de arte não somente se incorpora ao patrimônio cultural do país como também promove e financia artistas nacionais, cria oportunidades e inclusão social, democratiza o acesso à arte brasileira e estrangeira e movimenta a economia de forma direta e indireta, com impacto sobre negócios, turismo e a produção cultural”.
Nos fóruns da internet que debatem o assunto, também aparecem observadores que defendem que o setor de artes visuais, por ser um dos mais prósperos da atividade cultural, deveria ser alvo de uma tributação mais pesada. “Senão, vai ficar como o absurdo da carne, que é incluída na cesta básica”, afirmou um deles.
“A não inclusão das obras de artes no regime diferenciado, como parte da produção cultural nacional, parece ter sido fruto apenas de equívoco que incluiu serviços mas não bens”, diz Cris Olivieri ― advogada da Olivieri & Associados, especializada em arte, cultura e entretenimento e mestre em política cultural.
O relator do projeto da Reforma Tributária, senador Eduardo Braga (MDB-AM), e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre (União-AP), pretendem levar primeiro o texto à votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), único colegiado que analisará o projeto antes de ele ir ao Plenário. Já foram realizadas 13 audiências públicas, ouvidos quase 200 debatedores e o relator recebeu mais de 800 pessoas em seu gabinete. Outras 21 audiências públicas foram realizadas na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Ainda assim, o grupo das Artes Visuais atua ativamente em várias frentes, buscando envolver a classe política, os artistas, o Ministério da Cultura e o da Fazenda. “Esperamos conseguir porque isso é muito importante, inclusive por isonomia ao tratamento dado à cultura; não pode alguns setores estarem contemplados e outros não”, diz Alexandre Roesler. A reportagem de ARTE!Brasileiros procurou o Ministério da Cultura para saber se a pasta tem conhecimento do caso e qual sua postura a respeito, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.