Por Maykson Cardoso
“Ó, abre alas, que eu quero passar”
“Laroyê” — saudei Exu ao passar por um altar dedicado ao orixá já na entrada da Haus der Kulturen der Welt, a “Casa das Culturas do Mundo”, conhecida, entre os berlinenses, pela sigla HKW — leia-se: “rá-cá-vê”. Era noite de uma sexta-feira, 13, o último dia da Berlin Art Week, evento que faz parte do calendário anual da cidade há mais de uma década. Abria-se, assim, com direito a padê para Exu, a exposição Forgive Us Our Trespasses/Vergib uns unsere Schuld, título composto pelo verso do Pai Nosso em inglês e alemão, que traduzimos como “perdoai as nossas ofensas”. Ao caminhar pela exposição, via, ainda, altares para outros orixás: Iansã, Ibeji, Iemanjá, Obaluaiê, Ogum, Oxóssi, Oxum… todos, ali, invocados por Babá Murah, brasileiro e fundador do Ilê Obá Silekê, o primeiro terreiro de candomblé de Berlim.
No auditório Miriam Makeba, o grupo de hip-hop afro-alemão BSMG cantava o refrão do hit dedicado a Jesse Owens — atleta, negro, estadunidense, que ganhou quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, em plena Alemanha nazista. “Wir haben gewonnen, Jesse Owens”, “Nós vencemos, Jesse Owens” — bradava o auditório lotado quando “Bona” — como insiders da art scene berlinense chamam Bonaventure — vestido, comme d’habitude, como um “dandy afrofuturista”, veio abrindo caminho pelo corredor central, dançando, em direção ao palco, com o punho cerrado em riste. Enquanto isso, o BSMG seguia: “Schweigen jetzt nicht mehr, wir/sind Teil der Geschichte hier”, “Jesse o, Jesse, die Geschichte neu geschrieben” — “Agora, não nos silenciamos mais/somos parte da história, aqui”, “Jesse o, Jesse, a história foi reescrita”.*
Camaronês de Yaoundé, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung é dono de um currículo nada ortodoxo: chegou à Alemanha em 1997 para estudar Tecnologia de Alimentos na Universidade Técnica de Berlim, realizou doutorado em biotecnologia pela Universidade Heinrich-Heine de Düsseldorf, e um pós-doutorado em biofísica pela Universidade de Montpellier. E, nesse “meio tempo”, fundou o SAVVY Contemporary: The Laboratory of Form-Ideas, em 2009 — um dos espaços experimentais de arte mais pulsantes de Berlim, responsável por uma virada crítica decolonial que contribuiu para redefinir os rumos da cena artística da cidade.
Em reconhecimento pelo seu trabalho à frente do SAVVY, Bonaventure recebeu a Ordem do Mérito de Berlim, a mais alta condecoração outorgada pelo senado berlinense, em 2020. E, embora isso, de algum modo, já conferisse a ele e ao próprio SAVVY certo caráter “oficializante”, nada se compara à oficialidade da posição que assumiria em 2023, quando foi nomeado diretor da Haus der Kulturen der Welt (HKW), uma das instituições mais prestigiadas do país, ligada, diretamente, aos Ministérios da Cultura e de Relações Exteriores. Em termos, digamos, “geopolíticos”, esta foi uma “promoção” tão significativa quanto desafiadora.
SAVVY — de dentro, para fora
Se o SAVVY sempre ocupou espaços em bairros ligados historicamente à classe trabalhadora e a comunidades de imigrantes em Berlim — sua primeira sede foi em Neukölln, as outras duas, em Wedding: dois distritos conhecidos, desde a República de Weimar, como Berliner Arbeiterviertel, os “bairros operários” —, a HKW está localizada no nobre Tiergarten, “abraçada” pelos seus “vizinhos de quintal”: bem aos fundos da Chancelaria Alemã, abaixo do Bundestag, o parlamento alemão, não muito distante do Palácio Bellevue, a residência presidencial. Isto é: de diretor artístico de um espaço experimental orientado por pensamentos e práticas decoloniais, Bonaventure, agora, havia se tornado um “embaixador da cultura” — bem no centro do poder.
No SAVVY, as práticas curatoriais de Bonaventure não só foram orientadas para alcançar seus vizinhos imediatos, como se deixaram orientar por essa convivência. Em seu livro Pidginization as Curatorial Method (2023), ele escreve sobre sua insistência “[em uma] prática curatorial como uma prática da hospitalidade e da convivialidade”. Na primeira sede do SAVVY na Richardstraße, em Neukölln, costumavam convidar vizinhes para trazerem seus próprios vinis, que podia ouvir enquanto cozinhavam e comiam juntes. Como “prática” de um espaço de arte, esta situação não deixava de gerar estranhamento, uma vez que frustrava a expectativa de quem chegava só para ver “arte na parede”.
Esse estranhamento era efeito da “bagunça conceitual” que orienta o método curatorial que Bonaventure nomeia “pidginization”, baseando-se no fenômeno linguístico do pidgin, uma “língua de contato” que surge da necessidade de comunicação entre falantes de duas comunidades linguísticas diferentes. Isto é, o pidgin surge como uma língua de improviso que marca a abertura de uma comunidade para a outra sem que seja necessário renunciarem a si mesmas, resultando, assim, em uma terceira comunidade que se funda na e para a diferença.
A necessidade é, portanto, o motor da invenção. Bonaventure escreve, por exemplo, que foi também “uma combinação de necessidade e escassez que levou o SAVVY a realizar suas performances nas ruas de Neukölln”. Pequeno demais para comportar artistas de performance e o público, o jeito foi levar as performances de dentro para fora, tomando as calçadas do bairro. Como lembra Bonaventure, esta necessidade deu lugar a outro tipo de relação entre o SAVVY e a vizinhança, que agora podia trazer suas cadeiras de casa e pegar uma cerveja na esquina para acompanhar aquele que se tornou o evento das tardes de sábado na rua.
Do SAVVY à HKW: de fora, para dentro
Certo é que outros lugares exigem outros approaches. Bonaventure afirma que o método curatorial da pidginization é o que levou o SAVVY a se constituir como uma “instituição por vir”. E explica: “Com isto, quero dizer: o ato de colocar coisas no lugar, o ato de ser em fluxo, de ser dinâmico/não-estático, de cultivar a variação de formas-ideias como método”.
No entanto, criar uma instituição “do zero”, como o SAVVY, não se compara a assumir a direção de uma instituição como a HKW, fundada e consolidada há décadas, e ligada à dinossáurica maquinaria do estado alemão — com suas idiossincrasias históricas, culturais e econômicas tão complexas, sem contar seus dogmas e tabus.
De sorte que, se o dinamismo, a fluidez, a variabilidade constituía o motor do SAVVY como uma instituição em permanente construção — tal é a marca de seu modus operandi decolonial —, na HKW, pelo contrário, como instituição que representa um estado colonizador, seria necessário instituir a desconstrução como princípio.
Re/nomear para ressignificar
Neste sentido, pode-se atribuir certo esforço de desconstrução a um dos primeiros atos de Bonaventure ao abrir seus trabalhos como diretor da instituição, ao re/nomear seções do prédio histórico da HKW homenageando “mulheres que contribuíram para a melhoraria de mundos”. Sim, “mundos”, no plural, foi também um modo de inscrever a instituição na perspectiva da “pluriversalidade” em detrimento da suposta “universalidade” ocidental, referindo-se a ela, agora, como Casa das Culturas de Mundos. Entre as homenageadas que deram nome a espaços do prédio, encontram-se brasileiras como a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), a ativista, historiadora e poeta Beatriz Nascimento (1942-1995), e a ativista e vereadora Marielle Franco (1979-2018).
Quilombo > “quilombismo” > “quilombar”
“Exu | tu que és o senhor dos | caminhos da libertação do teu povo | sabes daqueles que | empunharam | teus ferros em brasa | contra a injustiça e a opressão | Zumbi Luiza Mahin | Luiz Gama Cosme Isidoro João Cândido | sabes que em cada coração negro | há um quilombo pulsando” — escreve Abdias do Nascimento em seu Padê de Exu Libertador. De algum modo, o poema de Nascimento fala da mesma força de nomeação que Bonaventure reivindicou a fim de ressignificar os espaços do prédio da HKW; lá, como cá, honra-se a história daqueles que lutaram “contra a injustiça e a opressão”, daqueles que lutaram contra a ordem colonial, em nome da liberdade e da emancipação de seu povo.
O quilombo, que pulsa em cada coração negro, constitui o modelo de sociedade que Abdias do Nascimento reivindicava para os africanos e afro-americanos que ainda sofrem as consequências do projeto colonial: “os quilombos”, escreve Nascimento, “resultam [da] exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre”. É esta “práxis afro-brasileira” — que funda uma unidade de “afirmação humana, étnica e cultural”, integrando “uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história” —, que ele denominava “quilombismo”.

O Quilombismo é também o título que Bonaventure escolheu para a primeira grande exposição como diretor da HKW, em meados de 2023. Na ocasião, celebrava-se a reabertura sob sua direção e após os conturbados anos da pandemia de covid-19. Em seu statement curatorial, ele apresentava o conceito de Nascimento e o significado de “quilombo” para um público que desconhecia o termo. Central, em seu texto, era a ideia de uma democracia igualitária, tal como a que se viu em Palmares sob Zumbi, o Rei dos Quilombos, “que concebeu um espírito de radical emancipação cultural”. A exposição O Quilombismo se dava, em suas palavras, como convite “para quilombar — como um verbo”.
O Quilombismo, como primeira grande exposição, assim como o primeiro ato de renomear para ressignificar, “refundava” a HKW a partir do ponto de vista e das práticas decoloniais que já tinham lugar no SAVVY. A exposição demarcava a instituição como espaço de encontro entre mundos, como espaço onde a confusão das línguas não é só esperada, mas praticada como método para criação de outras formas de viver juntos, e na diferença.
Longe dos vizinhos dos bairros proletários e cheios de imigrantes — como já disse: bem no centro do poder estatal alemão —, Bonaventure colocava em marcha um lento e necessário projeto de desconstrução.
Não, a HKW não se tornou, nem se tornará, um “quilombo”, mas é agora um lugar para uma série de desconstruções simbólicas que abrem caminhos para ensaiar outras “formas-ideias”, tomando os quilombos como seu paradigma [est]ético, o “quilombismo” como episteme, o “quilombar” como método. Mais do que um fim em si, a arte é, assim, tomada como meio para integrar, criar e celebrar comunidades e subjetividades dissidentes, periféricas, contra-hegemônicas; isto é, um meio de desestabilizar, de dentro, a ordem ocidental/colonial que sempre se utilizou da violência para manter essas comunidades e subjetividades de fora, a fim de garantir a manutenção de sua supremacia no mundo — sim, aqui, o “mundo”, no singular!
Abdias do Nascimento se fazia presente não só nos termos conceituais sobre os quais se assentava a exposição O Quilombismo; sua obra pictórica — que se alimentou de, e hoje alimenta uma tradição visual afro-brasileira —, podia ser contemplada em diferentes espaços expositivos. Difícil saber ao certo quais fatores determinaram a paleta de cores da expografia, mas, de algum modo, estas se relacionavam com a própria paleta de cores de sua pintura. Entre os quadros expostos, encontrava-se Quilombismo (Exu e Ogum) — uma tela de 1974 que sobrepõe os “pontos cruzados” (símbolos) de Exu e Ogum: Exu, “senhor dos caminhos”, do movimento e da comunicação; Ogum, orixá da guerra, do trabalho, da transformação.
Bienal de São Paulo
Bonaventure foi apontado como curador geral da 36ª Bienal de São Paulo em abril de 2024. Sua atuação como diretor do SAVVY e da HKW dão mostras de seu interesse pela produção cultural do Brasil. Em outubro, divulgou-se o título: Nem todo viandante anda estradas: da humanidade como prática. A primeira parte do título é um verso da escritora mineira Conceição Evaristo — referência incontornável da literatura brasileira contemporânea; a segunda, “da humanidade como prática”, soa, a esta altura, um tanto “antropocêntrica”, justamente nesses tempos de falência decretada da nossa espécie.
Nos últimos dias, lembrava, porém, da justificativa de Israel para o massacre que tem promovido em Gaza — classificado, recentemente, como “genocídio” pela Anistia Internacional. Há cerca de um ano, vimos, na ONU, o enviado de Israel se referir a palestinos como “animais inumanos”… Uma estratégia de “guerra discursiva” que, como a história de tantos genocídios nos mostra, tem como objetivo desumanizar povos inteiros para justificar seu extermínio. A insistência nessa “humanidade”, portanto, talvez queira responder à exigência de fazer valer, na prática!, os Direitos Humanos que, no papel, se pretendem universais.
A ênfase na poesia, por outro lado, é uma estratégia que Bonaventure utiliza para evitar confrontos diretos. Em uma entrevista concedida a Lisette Lagnado para a Revista ZUM sobre sua atuação como curador na 12ª edição dos Encontros de Bamako, no Mali, Lisette lhe pergunta sobre sua estratégia para contornar a censura e a homofobia naquele contexto. Ao que ele responde: “Mali é um país islâmico e há certas coisas que não podemos exibir”. […] “Os tempos da provocação já foram. Não precisamos de frontalidade nem de cenas explícitas. Precisamos de poesia! […] Você pode decidir se quer mostrar o caráter queer de modo superficial, ter a exposição fechada, e não realizar nada”.
Essas palavras ressoam aquelas que disse ao divulgar a proposta curatorial da 36ª Bienal de São Paulo: “Esta Bienal nos oferece um convite para colocar a alegria, a beleza e suas poéticas no centro das forças gravitacionais que mantêm nossos mundos em seus eixos… pois a alegria e a beleza são políticas”. Embora sua concepção de poesia, aí, seja, por muitas razões, questionável, talvez esta tenha a ver com a estratégia adotada por artistas brasileiros que se utilizaram da metáfora e outros recursos poéticos para contornar a censura nos anos da ditadura militar. Resta-nos, por ora, esperar para ver de que modo a poesia será colocada em “prática” por Bonaventure, nesta que é a bienal mais importante do sul global, bem longe dos “abalos sísmicos” que questões geopolíticas têm provocado nas “plagas teutônicas” e no norte global nos últimos anos. ✱