Reconhecido como um dos principais nomes do experimentalismo e da arte política no Brasil, Antonio Manuel mantém uma produção marcada pelo diálogo com questões sociopolíticas e culturais. Parte desse repertório está reunida no livro Incontornáveis, que apresenta trabalhos desenvolvidos durante a pandemia da Covid-19. A obra será lançada no dia 4 de abril, na SP-Arte.
Durante o período de isolamento, Antonio Manuel permaneceu recluso em seu ateliê, revisitando pilhas de jornais acumulados. Entre manchetes, fotografias e textos, buscou registros que captassem a turbulência de 2020. “Passei muito tempo ali, sozinho, refletindo sobre aquele momento de exceção. A sucessão de atitudes negacionistas do governo anterior, as queimadas na Amazônia e os cortes na cultura me incomodavam profundamente. Eu tinha que reagir a tudo isso”, relembra o artista. O resultado desse processo se materializou em uma série de trabalhos que unem memória, resistência e crítica social.
Diante da inquietação do período, Antonio Manuel encontrou nos jornais empilhados um novo suporte para seu trabalho. “Peguei uma das folhas e fiz um rasgo. Imediatamente percebi que ali havia um potencial para ampliar meu trabalho”, conta o artista. O processo começou com rasgos e pinturas sobre as páginas, criando composições a partir das camadas de papel e da precisão cirúrgica ao contornar letras e imagens manualmente. Em seguida, as páginas ganharam cores vibrantes, como vermelho e amarelo intensos, destacando sua familiaridade com as artes gráficas. A intervenção reafirma o olhar aguçado do artista e sua capacidade de editar e ressignificar a informação impressa, transformando-a em obra de arte.
Explorando os limites do suporte, Antonio Manuel experimenta técnicas como assemblagem, montagem, hibridização, fragmentação e apropriação. O resultado é um trabalho visualmente vibrante, marcado por ironia e crítica política. A exibição desse material, no entanto, representava um desafio. “Expor em uma galeria de arte parecia inviável, dada a fragilidade do jornal ao manuseio”, explica. A solução veio com a ideia de transformar a série em um livro-exposição, com curadoria de Paulo Venâncio Filho e Ana Maria Maia, consolidando a produção como um registro artístico e histórico do período.

Um dos pontos altos do texto de Paulo Venâncio Filho no livro é a forma como ele surpreende o leitor, transportando-o para diferentes temporalidades e episódios marcantes, alguns ainda obscuros. Sua análise não apenas contextualiza a obra de Antonio Manuel, mas também amplia a reflexão sobre a necessidade de não se perder a memória dos fatos.
“Um rasgo? Um buraco? Uma facada? Não é possível! Foi um golpe? Uma faca que traça um corte seco, preciso, sem deixar vestígios – só lâmina e nada mais. Isso lembra o artista do corte… Lembram-se dele? Aquele que fazia do estilete o instrumento para atravessar a tela em um único gesto. Mas esse rasgo é outra coisa”.
No conjunto, esses rasgos funcionam como organismo vivo e sua organização no espaço é feita de tal maneira que o espectador não permanece em estado contemplativo. Ele é naturalmente tocado para a história e a provocação de cada trabalho. “Esses novos experimentos dialogam diretamente com as obras e as performances que marcaram minha trajetória no passado, como Exposição de Antonio Manuel (de 0 às 24 horas nas bancas de jornais, 1973), resultado de minhas andanças pela rua, por um dia inteiro, conferindo os jornais expostos nas bancas durante o trajeto entre minha casa e o ateliê.” Inquieto e persistente, ele buscava novos locais para expor sua arte. Definitivamente não estava interessado em galerias ou museus naquele momento, queria trabalhar esse novo projeto diretamente nas páginas do caderno de cultura do extinto O Jornal. “Foi Washington Novaes quem falou com a diretoria sobre minha proposta e me conseguiu seis páginas das oito que compunham o caderno de cultura, eu nem acreditei”. Seu objetivo era discutir o papel dos meios de comunicação em tempos de censura.
Uma de suas performances mais relevantes é O Corpo é a Obra. Em 1970, no 19º Salão Nacional de Arte Moderna do Rio, ele inscreveu seu próprio corpo como obra, mas a proposta foi rejeitada pelo júri. Com a recusa, Antonio Manuel decidiu agir. No dia da abertura da exposição, entrou no MAM e convidou Vera, uma modelo-vivo que posava na Escola de Belas Artes, para participar da performance. Ele tirou toda a roupa e, ao lado de Vera, seminua, percorreu a exposição. “Foi um ato antirracista, uma quebra de preconceito, uma união de raças”, relembra. Após circular pelo vernissage, subiu as escadarias do museu e depois seguiu para a casa do crítico Mário Pedrosa, em Ipanema. O momento foi registrado pelo fotógrafo e cinegrafista Hugo Denizart, que gravou um depoimento de Pedrosa descrevendo a ação como um “exercício experimental de liberdade”. Apesar da repressão durante o governo Médici, Antonio Manuel conseguiu concluir sua obra. A performance tornou-se um marco e gerou reações de diferentes setores. Para muitos, representou um impulso à autoestima naquele momento e inovação na arte contemporânea e na militância.
Pouco depois, o Ministério da Cultura, sob o comando de Jarbas Passarinho, publicou notas na imprensa condenando a “transgressão” e decretou que Antonio Manuel estava proibido de participar de Salões Oficiais no Brasil. A punição, no entanto, foi vista pelo artista como uma conquista. “Eu não queria, mesmo, participar de nada oficial daquela época”, afirmou.
Outro momento memorável de sua produção é a instalação Fantasma (1994), exposta no Museu de Arte de Brasília. Durante a montagem Antonio Manuel leu no Jornal do Brasil a notícia da chacina de Vigário Geral, que matou 21 moradores da comunidade. A reportagem mostrava a foto de uma testemunha do crime, que durante a coletiva foi apresentada à imprensa com o rosto coberto. “A dramaticidade do ocorrido me tocou e eu resolvi incorporar a foto à instalação. A imagem foi fixada na parede branca do museu entre os fragmentos de carvão pendurados no teto por fio de nylon, como se fossem partículas de uma explosão”.
Uma de suas participações internacionais ocorreu em 2015, quando Antonio Manuel foi convidado a participar da Bienal de Veneza junto com Berna Reale e André Komatsu, selecionados pelos curadores do pavilhão brasileiro, Luiz Camillo Osorio e Cauê Alves. Sua instalação consistia em muros vazados por buracos por onde os visitantes podiam passar para ter diferentes visões da obra. Essas aberturas estão diretamente ligadas à série Incontornáveis e seus rasgos. A participação brasileira tinha como título: É tanta coisa que nem cabe aqui, inspirada nos cartazes das manifestações que tomaram as principais capitais brasileiras em junho de 2013.
Desde sempre a resistência artística desempenhou um papel fundamental na história, refletindo as tensões e conquistas das sociedades. No Brasil, essa força se manifesta como um espelho das lutas e conquistas político-sociais que moldam o País.
As obras de Antonio Manuel integram coleções públicas no Brasil e no exterior como MoMA, em Nova York; Tate Modern, em Londres; Fundação Serralves, em Portugal; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Contemporânea de Niterói, entre outras instituições culturais. ✱