Início Site Página 167

Em nome do Nome

Artistas trans
ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira

* Por Pedro Ambra

Um passo histórico na luta por direitos humanos foi dado no Brasil no último dia primeiro de março: o direito ao nome próprio para pessoas trans e travestis. Mas porque algo aparentemente simples é uma conquista tão fundamental?

Para que possamos responder essa pergunta, precisamos nos deter um pouco sobre o que é o nome. Um nome próprio é uma marca irredutível de uma singularidade que congrega o corpo e o conjunto de atos, sonhos e discursos de alguém. Trata-se de uma invenção humana que permite o reconhecimento da experiência de unidade de uma mesma pessoa por mais que ela — contraditoriamente — não seja mais a mesma ao longo do tempo: o nome é a marca da unidade na diferença.

Contudo, em muitas experiências trans, essa singularidade e seu reconhecimento são vetados, na medida em que o nome quase sempre carrega a marca irredutível do gênero. Assim, o processo de assunção de uma identidade transgênera passa necessariamente por uma transformação na relação de uma pessoa com o seu nome. Mais ainda, essa relação com o nome é, por vezes, muito mais central e importante do que qualquer procedimento cirúrgico, pois o que ela sublinha é que toda e qualquer vivência de gênero depende de um reconhecimento dos outros para se efetivar de fato. Em nossa sociedade, portanto, a cada chamada na escola, matrícula na universidade ou preenchimento do livro de ponto no trabalho, afirmamos ou deslegitimamos uma dada identidade. Privar alguém dessa coordenada básica de assunção de si como singularidade é o equivalente social, silenciosamente quotidiano, da violência física sofrida por centenas de pessoas no país em que mais se mata a população LGBTTQI no mundo.

A vitória no STF, obtida por meio da pressão de movimentos sociais, é importante ainda em outro aspecto: ela permite que o nome seja retificado sem a necessidade de cirurgia, de laudos psicológicos ou da contratação de advogados. Beatriz Bagagli lembra que a desmedicalização e desjudialização desse processo são significativas não apenas porque emancipam parte da população da incidência direta desses saberes e poderes médico-jurídicos, mas porque permitem que um grande número de pessoas trans sem condições financeiras possa usufruir do direito ao nome.

Assim, tal como as feministas queimaram sutiãs como ato simbólico de sua libertação, hoje travestis e transexuais, conforme sugeriu Hailey Kaas, podem queimar os laudos que, por tanto tempo, serviram como grilhões de sua vivência plena como sujeitos de direito. Tal gesto não deve ser visto como uma simples demanda identitária que crê cegamente na identidade do eu consigo próprio, tampouco como uma ameaça de fluidez radical que não reconhece normas e limites e alça a liberdade individual à condição de princípio fundamental. Trata-se, antes, da afirmação de que toda realização pessoal depende, inexoravelmente, das coordenadas de reconhecimento jurídico e social e, portanto, do laço com o outro.

Como dizia o psicanalista Jacques Lacan, o fato de haver apenas dois sexos no registro civil não impede que haja, sempre e para todos, uma escolha. Mas essa escolha, sublinha ele, sempre será uma espécie de autorização que passa não só por si mesmo, mas por outros: nos tornamos sujeitos precisamente nesse hiato entre nossa unidade singular e a constelação de outros que nos nomeiam. Celebremos, portanto, a descoberta de mais essa estrela em nosso vasto universo humano.

* Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Sorbonne Paris Cité, é autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade. Colaborador da paginaB

 

A Diagonal do seu Quadrado

the square
Um museu e uma obra imaginária para refletir sobre o excesso impossível

No filme “The Square – a arte da discórdia” (Ruben Östlund, 2017) acompanhamos o diretor de um museu sueco (Claes Bang) tentando conciliar suas boas intenções com as consequências inesperadas de seus atos. Por exemplo, ele tenta apartar a briga de um casal na rua, para logo depois descobrir que tratava-se de um golpe, e que ao final levaram-lhe a carteira, o celular e as abotoaduras que tinham sido de seu avô. É possível que se não houvesse este toque de pessoalidade envolvendo o legado familiar e suas boas intenções, ou seja, se ele tivesse sido e anonimamente furtado na rua, talvez ele aceitasse o fato. Mas o envolvimento sai caro, sempre. Por isso ele decide acolher a “brilhante” ideia de um subordinado escrevendo uma carta denúncia, colocada na caixa do correio de todos os moradores do prédio onde se podia ver que estava o celular furtado, mas sem que se soubesse sua localização exata.    O plano parecia perfeito: o criminoso intimidado por ser reconhecido, sem saber que todos haviam recebido a tal correspondência, devolveria o produto do furto, evitando-se assim a extensa e complexa participação da polícia. Porém, na hora da execução tudo começa a dar errado, a começar pela inconsequência do autor  da brilhante ideia, que se recusa a entrar no prédio como havia prometido. Daí em diante inicia-se uma trágica repetição deste mesmo erro e suas consequências devastadoras.

The Square é uma ironia atualizada de nossa moral cubicular, baseada na oposição não dialética entre dois princípios contraditórios de nossa experiência narcísica:

  1. Guarde uma atitude de benévola indiferença com relação aos outros. Como diz o funk: cada um na sua e todo mundo numa boa. Não saia do seu quadrado, seja ele a tela do celular, a tela do computador, a tela do cinema, a tela branca de Robert Rauschenberg ou o cubo azul de Ives Klein. O seu espaço é seu, seja ele definido pelas fronteiras do seu corpo ou pelo uso de sua imagem. Nunca deixe que ninguém se aproprie do que é seu e guarde os muros de sua intimidade como seu capital mais importante. Sobretudo, acostume-se e obrigue-se a ser feliz neste quadrado. Não deixe ninguém saber que você se interessa, precisa ou depende do reconhecimento dos outros fora dele.
  2. Quando alguém entrar em seu quadrado ou quando você sair deliberadamente dele, toda razão lhe será concedida imediatamente. Em nome da justiça ou da vingança, calcado na piedade ou na liberdade de expressar-se, sempre você terá ao menos alguma razão ao fazer o que faz.   As consequências de uma ação inespecífica sobre um alvo indeterminado devem ser pensadas como um bombardeio generalizado sobre uma cidade inimiga. Danos colaterais, vítimas de fogo amigo, todos devem compreender que, no fundo, não deveriam ter posicionado seu quadrado naquele lugar.
the square
O excesso na performance

A resposta desproporcional lentamente cobra seus efeitos. Esse é também a sensação que temos cotidianamente quando nos parece que as pessoas perderam o tamanho exato de si mesmas e do mundo. Tudo parece fora de volume. Ou somos excessivamente reativos, sensíveis e ofendidos ou invertemos o sinal e nos mostramos exageradamente apáticos, inconsequentes ou egoístas.  Em síntese, quando sentimos que fomos atingidos de modo particular, como efeito de nossas contingências específicas e de nossas fraquezas singulares tendemos a reagir movidos pela necessidade, atacando de forma inespecífica de modo a ostentar nossa potência de intimidação. É assim também que uma ação genericamente boa pode trazer consequências terríveis em termos específicos. O que esquecemos aqui é que nossos atos estão mediados por equívocos e mal-entendidos. Esquecimento típico de quem vive e conversa apenas dentro de seu quadrado.

Menon” é um diálogo de Platão no qual se propõe a um escravo, sem educação prévia, que este desenhe um quadrado com o dobro da área de um quadrado original. Inicialmente o escravo avança valente propondo a duplicação de cada lado do quadrado, o que Sócrates mostra ser um erro, pois disso resulta um quadrado com quatro vezes a área original e não duas, como lhe fora pedido. Assim o escravo passa da certeza total e equivocada, para o desamparo igualmente genérico no qual ele se declara incapaz de enfrentar o problema. A astúcia do filósofo está em mostrar que ele estava no caminho certo, mas concluiu de modo precipitado. Bastaria notar que o quadrado que ele desenhou era duas vezes o tamanho do quadrado pedido, portanto, bastaria dividir pela metade este quadrado que se chegaria a resposta correta.

Há uma lição clássica aqui sobre a importância da reminiscência na realização do conhecimento. No fundo o escravo sabia a resposta, mas ele não sabia que sabia. Mostrando primeiro que ele esta possuído por uma falsa certeza (ironia) e depois que ele poderia pensar na solução correta por si mesmo (maiêutica) Platão faz o seu ponto.

Contudo, o exemplo permanece atual se o tomamos para enfrentar nossa própria moralidade cubicular. A resposta imediata quando se trata de sair de seu quadrado está baseada em certo excesso. Este excesso moral deriva de duas coisas sobrepostas: estou com raiva porque fui contrariado: furtaram minha carteira, aproveitaram-se de minha boa fé. Mas minha raiva se quadruplica porque escuto uma voz punitiva ao fundo dizendo: “Está vendo o que acontece quando você se preocupa com os outros? Volte já para o seu quadrado e aprenda a ficar lá!”. Até aí estamos como o escravo de Mênon. Desamparados e inquietos porque nossos bons motivos só nos trazem consequências indesejáveis, dando causa a processos que se voltam contra nós. O destino é injusto e o Outro é malévolo, aceite isso, dirão os preguiçosos.

Mas aqui intervém um detalhe que interessa aos psicanalistas. A duplicação é suportável se contamos com a divisão. A duplicação é o princípio do que Lacan chama de imaginário. Achar que o outro é você, age como você e que todos eles são iguais entre si, como os moradores de um mesmo prédio contra os quais você pode ficar latindo e ameaçando por que alguém mexeu no seu queijo, ou melhor, no seu quadrado.  A divisão é um correlato simbólico de nossa experiência com o outro. Não se trata apenas da divisão como partilha e circulação da razão e do poder, mas da divisão do próprio sujeito. Como diria Hanna Arendt: prometer e perdoar andam juntos, para o outro e para nós mesmos. Ir e voltar atrás, passar dos limites e constituir limites sobre fronteiras ultrapassadas. Todas estas práticas escassas em nossos tempos de turbulência narcísica. O que fez a ira do protagonista se inflar desproporcionalmente, tema que reaparecerá em vários outros momentos do filme, é o fato de que ele não se perdoa. Ele não admite a divisão e incoerência de seus próprios “bons sentimentos”.

Intervém aqui o terceiro ponto sugestivo na relação entre o quadrado grego e o quadrado contemporâneo. Notemos que a solução matemática passa pelo uso da diagonal do quadrado. Primeiro você quadruplica e depois divide. Para dividir temos que contar com a diagonal do quadrado, o que para os gregos era um problema, pois isso remetia a um número irracional. Um número com o qual podemos operar, mas não calcular integralmente, tipo raiz quadrada de dois. Um número que mais tarde poderá integrar a reta dos números reais. Ora, chegamos assim ao terceiro ingrediente da equação moral de nossa época: não basta deflacionar o imaginário e depois dividir simbolicamente seus efeitos é preciso operar com o Real. O real é o impossível que torna incomensurável nossos quadrados, independente de boa ou má fé. Não precisamos imaginar uma cidade de quadrados perfeitos, com tudo e todos em seus lugares, aliás é possível que esta imaginação esteja nos fazendo mal. Cada um de nós, e pior, cada um dos outros,  possui a sua própria diagonal, com seu lado desproporcional com todos os outros e consigo mesmo.

É bom descobrir logo do que é feita sua diagonal, senão ela te pega.

Celebrar a desconstrução

Rennó
Detalhe da obra "Dupla Dinâmica", de Rosângela Rennó, um dos trabalhos que integram a mostra na Galeria Vermelho. FOTO: Divulgação

Na entrada, a exposição alertava os visitantes: pense bem antes de entrar neste recinto. O material exposto pode lhe parecer ofensivo (…).          Se decidir entrar, aja com responsabilidade: aceite o exposto com naturalidade. Disfarce, se for necessário. Contudo, a mostra não apresenta performances com corpos nus ou pinturas com crianças que assustam grupos conservadores.

Segundo Rosângela Rennó, artista e autora da advertência, sua nova mostra na galeria Vermelho, “Nuptias”, buscava por em xeque a instituição tradicional do casamento e suas representações. “Algumas pessoas poderiam considerar as intervenções [em fotografias] cruéis”, ironiza. “Quero seja então para celebrar a desconstrução”.

Desde o início de sua trajetória, nos anos 1980, Rennó vem refletindo sobre a natureza da imagem ao ampliar as possibilidades estéticas e simbólicas da fotografia. No caso da série “Nuptias”, que batiza a exposição, o interesse da artista foi o de questionar justamente a representação tradicional de casais convencionais a partir das correntes discussões sobre gênero. “Quis usar a imagem do casal de noivos para discutir as questões de papéis que, em princípio, são destinados a cada um na futura família nuclear. O que que é hoje a união entre duas pessoas? Totalmente diferente do que já foi”, afirma.

Ela realizou toda sorte de intervenções (“não pintava há quarenta anos!”) sobre fotografias de casais anônimos e fotopinturas inacabadas ou em mau estado de conservação. Entre rabiscos, cortes e adição de objetos, os casais surgem carregando diversas referências da cultura pop, história da arte, iconografia mexicana, indiana, embaralhando e confundindo clichês do masculino e feminino com barbas e maquiagens. “Tudo decorre do meu envolvimento com a fotografia propriamente dita. A partir do tipo de imagem, tamanho, composição, análise da faixa social e econômica a qual se casal pertence. É da observação da imagem em si e dela enquanto objeto, materialidade”, explica.

Enquanto alguns exemplares da série tecem comentários quase anedóticos, como o retrato de Batman e Robin, outros respondem diretamente às polêmicas do campo político – caso de “Bela Recatada e do Lar”, cujo título, segundo Rennó, alude ao tom misógino de uma declaração do presidente interino acerca do papel da mulher na economia do país. Além disso, os recentes episódios de censura e ataques ao circuito artístico por grupos conservadores contaminaram seu processo criativo. “Eu já tinha trabalhado em 80 Nuptias e veio essa bomba [as manifestações de ódio e tentativas de censura]. Os congressistas têm uma cegueira para o que acontece no mundo de hoje. Desconhecem o que são práticas artísticas contemporâneas, não tem o hábito de ver e não enxergam, não sabem discernir o que é uma ação estética de alguma coisa comportamental. A aberração está neles. Essa estreiteza tinha que ser comentada de alguma forma e foi inevitável”. A artista diz que a série permanece aberta, a depender de como seguir a agenda.

A despeito da alta voltagem política, operação já esperada diante da trajetória de Rosângela Rennó, a exposição ganha outro fôlego e, de fato, contornos celebrativos ao rememorar obras que se tornaram pedra de toque na história de artista. Ela apresenta séries inéditas em torno de projetos que completam 20 e 25 anos de existência, reafirmando a passagem do tempo e a construção de memórias como um dos pés de sua poética.

Prata e porcelana

Uma história de amor, ou quase isso, inaugurou o projeto “Arquivo Universal”, em 1992, quando a artista iniciou a coleção de vasta quantidade de negativos, fotos deterioradas, retratos de jornais e relatos com grande expressividade narrativa. Em 2003, as imagens renderam uma grande exposição individual no CCBB do Rio de Janeiro e foram reunidas em uma publicação da editora Cosac Naify, ocasiões que firmaram o papel de destaque de Rennó no panorama da fotografia brasileira. Em “Bodas de Prata”, a artista grava em pequenas placas comemorativas deste material as seis histórias que foram o pontapé do arquivo. A primeira gira em torno de uma camponesa que deseja reaver sua metade do retrato de casamento ao se separar.

No conjunto inédito “Bodas de Porcelana”, Rennó celebra 20 anos da série “Cerimônia do Adeus”, exibida na VI Bienal de Havana. A homenagem consiste na mesma quantidade de casais de pratos de porcelana de diferentes origens culturais carimbados com o nome da série. É que as imagens representam aquilo que a artista nomeia de “ritual fotográfico”: ao fim da cerimônia, casais cubanos posam dentro de carros de modelo americano da década de 1950, símbolo do imperialismo ianque para a ilha comunista. “Este arquivo veio de uma única fotógrafa de Havana que meu deu os negativos deteriorados em 1994. Quando voltei em 1997, ela já tinha ido embora, foi um pouco profético. O nome [da obra] diz a respeito àquele momento em que Cuba passava”, relembra.

Utopia

Ainda neste ano, Rennó prepara um novo corpo de imagens que ocuparão o Instituto Moreira Salles do Rio até meados de abril. A artista novamente se volta para assuntos urgentes da pauta nacional ao reunir, ao largo da mostra, fotografias enviadas por e-mail, instagram e whatsapp de localidades da capital fluminense com nomes utópicos. “Certas zonas cariocas cresceram muito nos últimos anos em função dos eventos que a cidade recebeu. A exposição nasce de um desejo de conhecer melhor a cidade onde vivo há 28 anos”, diz a mineira.

É no desmanche do instante fotográfico e nas possíveis recomposições da imagem que Rosângela Rennó segue expandindo as fronteiras da fotografia, demonstrando que a arte, a despeito do que pensam alguns, é campo essencial para refletir e assentar as transformações do mundo. Sobre o futuro das alianças?

“A celebração existe porque, no fundo, eu ainda acho que é o amor que vai salvar o mundo. É a coisa mais piegas que há, mas ainda é o que faz a humanidade crescer e pode nos salvar da barbárie”, diz Rennó.

Um vídeo sobre coisas que mulheres que gostam de futebol ouvem todo dia

Foto: Reprodução/Youtube
Foto: Reprodução/Youtube

Quem nunca se desinteressou em continuar navegando por uma página de futebol ao se deparar com um “belas da torcida”? Quem nunca sofreu pra encontrar a versão feminina daquela edição especial do uniforme do seu clube? Quem nunca se irritou com uma reportagem sobre o perfil do instagram da filhinha mais nova do técnico do Flamengo?

São essas perguntas que movem o coletivo Dibradoras. O veículo surgiu porque suas criadoras sentiam falta de uma cobertura esportiva que incluísse as mulheres. Elas também produzem conteúdo multiplataforma. Além do site, estão no Facebook, Youtube, Twitter e Instagram. Também conduzem um podcast semanal na rádio Central3.

Nesta semana, elas publicaram um vídeo sobre as coisas que mulheres que gostam de futebol não aguentam mais escutas. Vale conferir. O coletivo é formado por: Angélica Souza, Nayara Perone, Renata Mendonça e Roberta Nina Cardoso.

Um “eu” que fala mais alto

Walleria Suri diz que é preciso ajustar o corpo à mente para eliminar a inadequação existencial.

* Por Walleria Suri

Quando pensamos no ser homem e no ser mulher, estabelecemos a separação mais fundamental de classificação dos seres humanos. Por ser óbvia e se fazer constatada logo no nascimento – e até antes. “Parabéns, mamãe, esse é seu filho.” Ou: “Essa é sua filha”. E daí os pais ou responsáveis se encarregam de ensinar a vida apropriada à menina e a vida apropriada ao menino. E isso deveria seguir dessa forma sem complicações para ninguém. Mas tem um “eu” na história. Um “eu” com vontades, desejos, instintos e elaborações de si mesmo. Elaborações que lhe dão a capacidade de reconhecer o gênero que condiz de forma mais harmoniosa e represente com maior autenticidade seus instintos, vontades e desejos.  Dessa forma, ser homem ou mulher ultrapassa a anatomia física do nascimento. E ultrapassa também os condicionamentos sociais convencionais. É algo inerente ao autorreconhecimento do indivíduo.

Eu não sou mulher porque pinto as unhas, uso saltos e tenho vagina. Sou mulher porque todas as minhas elaborações existenciais me associam ao feminino. Por isso é algo que está além do corpo, e não determinado por ele. Minha identidade de gênero é definida por um sentimento de encontro com meus impulsos vitais. A influência do meio pode conduzir as possibilidades de vivência e manifestação da minha identidade de gênero, mas também não é o suficiente para determiná-la. A identificação do meu gênero se dará por meio do reconhecimento dos elementos que me constituem. Reconheço o que sinto como legítimo de minha concepção como ser. Reconheço o que penso como uma elaboração legítima daquilo que sinto. E preciso reconhecer meu corpo como meio de expressão legítima de todos os meus sentimentos pensados e elaborados, na forma de vontades, desejos e emoções.

Então, só poderei vivenciar uma identidade de gênero de forma saudável quando meu sentir, meu pensar e meu expressar (corpo) apontarem para a mesma direção. Não importa qual seja a direção. Basta que esses elementos estejam em harmonia para haver uma identidade de gênero saudável. Pois o grande sofrimento interior das pessoas transexuais é ter de conviver com a constante inadequação existencial, causada por uma imensa sensação de desconforto dentro de si.

Por isso a transformação física é tão necessária e importante para as mulheres transexuais e homens trans. Não há problemas com o sentir e o pensar. Esses funcionam satisfatoriamente. Por isso não dá para falar em transtorno, ou atribuir qualquer tipo de patologia, para essa forma de construção psíquica. Apenas há de se adequar o corpo com o gênero da autoidentificação. Pois o sentir e o pensar se estabelecem de uma forma impossível de serem compulsoriamente modificados. Mesmo que os papéis de gênero sejam construções culturais humanas, o que estabelece a identificação do indivíduo com um determinado gênero, ou com nenhum, é uma escuta interior que foge ao alcance cultural. Diz respeito aos mais profundos instintos humanos que se formam de maneira totalmente livre. Podendo ser por uma vida toda reprimidos, mas nunca condicionados.

Hilda Hilst, uma feminista nata nos anos 50

Hilda Hilst
Retrato inédito de Hilda Hilst, feito por Fernando Lemos, em 1954, que ficou 60 anos guardado e foi gentilmente cedido à reportagem de Brasileiros pelo fotógrafo português, amigo da escritora.

Em dezembro último, Mauro Munhoz, diretor geral da Flip, a Festa Literária de Paraty, antecipou, em comunicado à imprensa, que a escritora Hilda Hilst (1930 – 2004) será a grande homenageada da edição 2018 do evento literário. Em 2017, ano de estreia da atual curadora, Josélia Aguiar, a Flip teve recorde de escritoras e autores negros, fato aprovado pelo grande público em uma das mais celebradas edições recentes.

Ao anunciar a escolha de Hilst como sucessora de Lima Barreto no panteão de homenageados, Munhoz enalteceu o caráter provocativo e inspirador da autora: “Assim como outros poetas brasileiros (Hilda), leu Brummond, Bandeira e Cabral, mas leu também Fernando Pessoa, o francês Saint-John Perse e o alemão Rainer Maria Rilke. O resutlado e´uma literatura inovadora do ponto de vista da linguagem que exerce, por exemplo, forte influência na cena da dramaturgia brasileira de hoje”, afirmou.

Para aqueles que desejam aprofundar seus conhecimentos sobre a obra e a vida de Hilda Hilst, desnecessário, no entanto, aguardar até o final de julho (a Flip 2018 está programada para acontecer entre os dias 25 e 29): entre os dias 9 e 30 deste mês de janeiro, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, sediado em São Paulo, realiza o curso Hilda Hilst: presente saiba mais).

Com encontros semanais às terças-feiras, o curso será ministrado pelo jornalista e escritor Flávio Aquistapace, que abordará a prosa tardia e o rico legado de Hilst , com foco em quatro de seus títulos Contos D’escárnio – Textos GrotescosO Caderno Rosa de Lori LambyCartas de um Sedutor e Rútilo Nada.

Em janeiro de 2014, Hilda Hilst foi capa da edição 78 da revista Brasileiros, em reportagem de Gonçalo Júnior, que trouxe fotos até então inéditas e gentilmente cedidas pelo português Fernando Lemos, amigo da autora. Leia, na íntegra, a seguir.

Nunca houve uma mulher como Hilda

Ela foi linda e teve todos os homens que desejou – exceto Marlon Brando. Escritora e poetisa paulista, rotulada de pornógrafa e consagrada pela crítica, volta agora, dez anos depois de sua morte, em documentário, lançamentos, relançamentos e minissérie. Por aqui, amigos íntimos contam quem foi, de fato, Hilda Hilst.

por Gonçalo Junior 

Inteligente, segura, determinada, independente, transgressora. Namoradeira, mas discreta. Jamais vulgar. Dona de uma hipnótica beleza, poucas mulheres tiveram, como ela, os homens que desejaram em seus braços. Hilda Hilst, a escritora brasileira que ficou também conhecida por seus livros eróticos, morreu há dez anos, em 4 de fevereiro de 2004, aos 74 anos.

Ela, que foi representante da alta sociedade, esforçou-se para ser respeitada como poetisa, recebeu prêmios importantes, como Anchieta (pela peça Verdugo, uma das oito que escreveu entre 1967-68), e  Jabuti (pelo volume de poemas Cantares de Perda e Predileção) – ao todo, foram sete. No entanto, seus livros nunca foram sucesso de público. Nem quando partiu pelo caminho do erotismo, que resultou em obras-primas (O Caderno Rosa de Lori Lamby A Obscena Senhora D., entre outras), provocaram polêmica, porém não movimentaram grandes tiragens. Dizia-se que suas sacanagens eram de tão alto nível literário que os consumidores do assunto não se interessaram muito.

Seja como for, Hilda tinha uma maneira peculiar de enxergar o mundo. “Sexo e beleza eram rigorosamente a mesma coisa para ela, a única pessoa de nossa geração que não teve sentimento de culpa em relação a esses temas”, afirma Jorge da Cunha Lima, 82 anos, administrador, jornalista e advogado, um dos amigos mais próximos da escritora durante toda a vida, que confessa ter sido apaixonado por ela. “No começo dos anos 1950, eu era um jovem estudante, e ela, já escritora, dona de uma liberdade que deixava todo mundo perplexo.”

Verdade.  Além de linda, Hilda foi uma mulher de espírito livre. Tinha fascínio pelo sexo oposto, mas não cedia a abordagens passivas. Nunca. Seguia um estilo próprio em que ela dominava a cena. Foi assim quando abordou aquele que se tornaria seu único marido. Nos anos 1960, Hilda ia para casa, pela Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, quando viu um homem no último ponto em frente ao Cemitério do Araçá.  Pediu ao motorista que parasse diante do local e disparou: “Por que você vai para casa de ônibus, se pode fazer isso de Mercedes?”. O homem era o jovem escultor Dante Casarini, que sorriu e aceitou a carona. Primeiro, eles foram amantes. Depois, mulher e marido – nessa ordem. Certo dia, ela teria dito a Cunha Lima: “Estou felicíssima vendo aquele homem maravilhoso, com dorso nu, que volta com uma penca de lenha nas costas”.

Paixões e decepções

Apesar do forte sentimento de Cunha Lima, Hilda jamais deu a entender que percebia seu interesse. No entanto, ela contava suas aventuras amorosas ao amigo, como a que a levou a seduzir o ator americano Dean Martin e seu lamento por não ter conquistado Marlon Brando, ícone americano de beleza e masculinidade.

No livro Fico Besta Quando me Entendem (Editora Globo), que reúne 20 conversas mantidas com Hilda entre 1952 e 2003, ela voltou ao assunto com o jornalista Fernando José Karl: “Eu queria muito conhecer Marlon Brando, achava-o lindo. Então, tornei-me namoradinha do Dean Martin, só para ficar perto do Marlon. Mas não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Vi-me obrigada a aguentar Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: ‘Só porque você é bonita, acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?’. Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido Marquand”.

Seu comportamento ativo, entretanto, não incomodou mais do que seu talento para a escrita. Só que Hilda nunca se deixou intimidar por qualquer espécie de crítica. “Ela era de uma ousadia inacreditável”, afirma Cunha Lima. O fotógrafo português Fernando Lemos, de quem também foi amiga, reafirma: “Hilda recebia críticas menos por seu lado liberal, independente, e mais como poetisa porque causou inveja aos montes – nos outros poetas, principalmente.”

Hilda Hilst
A escritora posa para as lentes de Fernando Lemos, em estúdio que ficava na rua Canuto do Val, em Santa Cecília em 1958

Lemos, hoje com 85 anos, produziu, em 1954, uma série de retratos da escritora, que ficaram inéditos por quase 60 anos. Ela apenas viu as fotos, que nunca foram publicadas, mas ficaram guardadas. Uma delas está publicada nesta reportagem, mas todas podem ser vistas na versão digital da revista da Biblioteca Mário de Andrade – a edição impressa, número 69, não por acaso com o título Obscena, sairá em fevereiro.

Quando fez as fotos, Lemos morava havia um ano no Brasil. Chegara de Lisboa com a reputação de talentoso retratista de importantes nomes portugueses – políticos e artistas, principalmente. “Quando desembarquei em São Paulo, procurei conhecer gente ligada às artes e passei a ir locais em que todos se encontravam regularmente. Foi assim que fui apresentado a Hilda.”

Os pontos de encontro eram no centro de São Paulo, como o Juão Sebastião Bar, berço da bossa nova e onde Chico Buarque fez suas primeiras apresentações, e a Livraria Jaraguá, de Alfredo Mesquita, o mesmo que dirigiu por anos a Escola de Arte Dramática de São Paulo e incentivou Hilda a invadir a praia da literatura teatral. Havia também o Clubinho dos Artistas – brincadeira com o programa de TV Clube dos Artistas, da Tupi –, que ficava no porão do prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Vila Buarque, e reunia o pessoal das artes. “Ali, todo mundo dançava, brincava, namorava”, diz Lemos. Ele se lembra ainda do Bar do Museu de Arte Moderna, que ficava no prédio Assis Chateaubriand, na rua Sete de Abril, onde eram realizados festivais de cinema e exposições de pintura. “Todo mundo tinha sua garrafa de uísque guardada e podia pendurar a conta.” Cunha Lima não se esquece da Livraria e Editora SAL, sigla da Sociedade Amigos do Livro, que importava obras da Europa e, nos finais de tardes, realizava saraus regados a poemas em francês e doses de conhaque. Impossível não mencionar o bar Vienense. “Nesses locais, todo mundo se tocava de leve”, revela  Cunha Lima.

Além de Hilda, Lygia Fagundes Telles (amiga inseparável), Cunha Lima e Fernando Lemos eram assíduos frequentadores dessas rodas artistas como Paulo Vanzolini, Arnaldo Veloso Horta, Aldemir Martins, Massao Ohno, Rebolo Gonçalves. Uma época efervescente, sem dúvida.
Logo, Lemos e Hilda tornaram-se muito amigos. “Eu a convenci a fazer um ensaio no pequeno estúdio, que acabara de montar no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo. Quando se vê o resultado, a impressão é que não havia muita originalidade da minha parte. Mas fiz dessa forma, propositadamente, para compor um retrato com a imagem que eu tinha imaginado de uma mulher que não tinha sex appeal aparente, apesar da elegância, mas era dona de uma beleza protegida, porém interessante.” Ele se nega a dizer se teve ou não um romance com Hilda, mas não desmente nada. “Ela fez alguns sonetos para mim, eram versos mais humorísticos do que literários. Uma brincadeira nossa.” Com orgulho e saudade,  mostra dois dos muitos livros autografados pela amiga. “Para Fernando, todo amor de antes, da Hilda”, escreveu ela em um exemplar de Jubilo, Memória, Noviciado da Paixão, de 1954. Na mensagem de Fluxo-Floema, 1970, ela anotou: “Ao querido Fernando, a maior amizade e ternura dos velhos anos”.

É fato. Hilda teve contatos intensos, imediatos e breves que, ao final, levavam-na a um processo doloroso: arrancar da dor ou do tormento de uma relação encerrada versos que descreviam as suas emoções. Depois, os publicava em livros, sempre dedicados ao amor que se foi. Para o poeta e jornalista João Ricardo Barros, por exemplo, ela dedicou Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor, de 1959. Em seus versos e prosa, não fazia a menor concessão à palavra. “Ela transformava o sentimento ou o amor perdido em poesia arrancada do fundo da alma”, afirma Cunha Lima.

O extraordinário

Hilda nasceu em Jaú, interior paulista, em 21 de abril de 1930, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, e Bedecilda Vaz Cardoso, dona de casa. A união não deu certo e, ainda menina, foi com a mãe para Santos. Aos 7 anos, recebeu a notícia, pela mãe, de que o pai sofria de esquizofrenia e foi estudar como aluna interna do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo. Esse ambiente escolar evocaria nas peças A Possessa e Rato no Muro e em um poema: “Os amantes no quarto/Os ratos no muro/A menina/Nos longos corredores do colégio”. Mais tarde, estudou na Escola Mackenzie e Direito na USP. Mas nunca exerceu a profissão.

Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro, Presságio, e nunca mais parou de escrever. No entanto, a doença do pai sempre foi um forte fantasma em sua vida. Ela acreditava que, ao ter sido poupada do distúrbio psiquiátrico, poderia ter filhos doentes. Por isso, rejeitou a maternidade – teria feito mais de 15 abortos.

Hilda Hilst
Nos 28 anos em que viveu na Casa do Sol, em Campinas, Hilda (a única mulher em pé) recebia amigos que ali ficavam por longas temporadas, como Caio Fernando Abreu e a inseparável Lygia Fagundes Telle

Apesar de seu espírito livre, Hilda era uma mulher resguardada, que não gostava de compartilhar seus tormentos. “Ela vivia com certa angústia da contrapartida de seus relacionamentos, no sentido de tudo aquilo que quis fazer e não teve tempo ou não foi correspondida. Não do fracasso, mas sim da  completude da relação, do que faltou fazer”, diz Lemos. Parte do seu drama estava na tragédia que condenou seu pai, enlouquecido, a viver sem qualquer noção da realidade. Para Lemos, Hilda sofria com a situação dele, “que vivia quase como um cachorro louco, enjaulado em uma fazendinha perto de Campinas”.

Em 1966, depois da morte do pai, que a deixou em boa condição financeira, Hilda se mudou para um sítio a 11 km de Campinas. Batizou o lugar de Casa do Sol, construído perto de uma figueira centenária. Acompanhada do marido Dante Casarini, estava decidida a se concentrar em seus escritos. Mas longe do glamour da juventude, afastada dos amigos e da vida boêmia de São Paulo, Hilda começou sua travessia ao inferno. Mudava de humor constantemente, brigava com as visitas e os amigos. Passou também a ter o hábito de tentar falar com os mortos por frequência de rádio.

Quem conta essa história é a cineasta paulistana Gabriela Greeb, que pesquisa há mais de cinco anos a vida e a obra da escritora para o documentário Contato, Hilda Hilst Pede Contato, com previsão de lançamento para setembro deste ano. As filmagens foram iniciadas em dezembro último. Gabriela, que morou uma temporada na Casa do Sol, teve acesso a arquivos e documentos, além de ter conversado com amigos e parentes, como Edson Costa Duarte, que morou com Hilda durante muito tempo. Também teve acesso aos diários do artista plástico Jurandy Valença, amigo de Hilda, em que conta o dia a dia da casa durante o período em que viveu na Casa do Sol, que hoje abriga cartas e documentos, além de três mil livros, boa parte deles com anotações.

O foco do filme, explica Gabriela, é reproduzir a atmosfera da Casa do Sol. Será um documentário de criação, não típico, a partir de acervos importantes, como as mais de cem fitas gravadas com a voz de Hilda, ao tentar se comunicar com os mortos. São gravações feitas entre 1976-78, em que ela dizia: “Hilda Hilst querendo saber dos amigos em outra dimensão” ou “Hilda Hilst pede contato com o absurdo”. Fez essas experiências influenciada pelo sueco Friedrich Jurgenson, cientista, cineasta e crítico de arte, que afirmava que os mortos precisavam se manifestar por meio de frequência de rádio ou TV fora do ar, ou ainda pelo ronronar dos gatos. “A busca pelos mortos fazia parte do desejo de Hilda se comunicar de outros modos, além da escrita. Ela estudou física quântica para não chegar burra à outra dimensão”, diz Gabriela. “Hilda era extremamente lúcida e mantinha todo esforço para não enlouquecer.” Especula-se que a mãe da escritora também sofreria de esquizofrenia.

Vale lembrar que Hilda passou a ter sérios problemas financeiros. Até mesmo para alimentar seus cães – ela chegou a abrigar 150 deles. A situação só não foi pior porque a escritora conseguiu aposentadoria da Unicamp – a partir de 1986, ela fez parte do Programa Artista Residente da Unicamp, no qual conversava com os interessados sobre temas ligados à criatividade e imaginação, personalidades históricas e marcantes.

Outras histórias

Hilda morreu de isquemia, mas foi até o fim fazendo o que mais gostava: escrever com imaginação. E, como dizia, partiu em busca do silêncio absoluto. Antes, porém, deixou em testamento os direitos de sua obra para Daniel Fuentes, filho de José Moura Fuentes, grande amigo da escritora, que morreu cinco anos depois dela, em 2009.

É Daniel quem lança, neste mês, a loja virtual Obscena Lucidez (obscenalucidez.com.br), que vai vender livros, traduções e CDs. “A obra dela estará concentrada em um único lugar para os fãs de todo o País”, diz o herdeiro, que pretende criar outros produtos, como pôsteres e capas para celulares. A ideia de abrir o portal de negócios surgiu de uma experiência pela página que Daniel montou no Facebook sobre a escritora, que tem mais de 15 mil seguidores – curiosamente, metade com idades entre 15 e 24 anos. “Colocamos na rede 1,5 mil livros à venda e esgotamos o estoque em duas semanas, sem divulgação.”

 

Uma pioneira do erotismo

Gilka fotografada para a revista O Malho na ocasião da eleição feita para saber quem era a maior poetisa do Brasil, proposta pelo veículo em 1933. Foto: Revista O Malho/Biblioteca Nacional

A literatura erótica feminina ganhou destaque nas últimas décadas com a reedição das obras de Hilda Hilst pela editora Globo. O movimento de mulheres divulgando poesia e prosa carregadas de luxúria abriu margem a uma série de discussões sobre a liberdade sexual da mulher e o machismo na literatura. Embora muitas autoras sejam aclamadas por esse tipo de criação literária – como a própria Hilda, Olga Savary e Adélia Prado – é incomum encontrar quem conheça a precursora desse movimento que deu à mulher autonomia para derramar seus desejos nas linhas de um poema ou um romance.

Faz um século, em 2016, que Gilka da Costa de Mello Machado – ou somente Gilka Machado – lançou seu primeiro livro, com impressão terminada em 31 de dezembro 1915. O espanto causado pelo conteúdo que Cristais Partidos trazia nas 111 páginas era esperado. Seus versos já tinham ocupado páginas de jornais e revistas da época, sendo ela colaboradora de alguns veículos, como a revista Fon-Fon e a Revista da semana. O motivo do assombro era o erotismo que ela empregou a alguns de seus poemas, deixando a sociedade da época incomodada com tamanha ousadia. Uma mulher escrevendo versos de conteúdo sexual era inadmissível para o contexto sociopolítico da República de Hermes da Fonseca. Apenas a hipótese de Gilka imaginar o desejo carnal já era condenável pelo crivo do machismo. Foi a crítica de Afrânio Peixoto, em 1916, que inaugurou a “caça à Gilka”, chamando-a de “matrona imoral”. Além de precursora na literatura erótica feminina e de denúncia da opressão às mulheres no Brasil, Gilka foi sufragista ativa, sendo uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino, fundado em 1910 apenas para Mulheres. Gostava de escrever “Mulher” assim, com M em caixa alta, para afirmar a força do sexo feminino. No partido, exerceu o cargo de primeira secretária. Em seus poemas, procurou abordar também a situação das classes sociais menos abastadas, deixando explícito o descaso do governo em relação a isso.

Nascida em 12 de março de 1893, na cidade do Rio de Janeiro, foi depreciada pela sua literatura, mas também muito aclamada por quem buscava compreendê-la. Neta de Francisco Moniz Barreto, baiano considerado o pai do humor obsceno no Brasil, Gilka desafiou a crítica literária machista e racista da época. Em carta enviada a ela em 1915, Lima Barreto destoa dos colegas de profissão e declara: “Admirei muito de sua inspiração, a sua completa independência de moldes, dos velhos ‘cânons’, e a sua audácia verdadeiramente feminina”. Já para Mário de Andrade, a “bacante dos trópicos, como era chamada por Agripino Griecco, era apenas uma menina. A todo o tempo, dirigia-se a ela com chamamentos infantis, embora fossem nascidos no mesmo ano. Isso mostra que a forma de Mário tratar Gilka era para depreciá-la. A história cuida de lembrar que o pioneiro do modernismo não fazia isso apenas por machismo, mas por não aceitar a orientação formal de sua literatura. Os versos simbolistas gilkianos tinham um flerte com o parnasianismo. Anos depois, parece se arrepender ao publicar, no Estado de S. Paulo, que ela era uma ”poetisa ilustre, autora dos mais ardentes versos femininos na nossa língua”.

A pele pálida, carregada por camadas de pó de arroz, escondia sua origem negra, também motivo para a ofensiva de críticos contra ela. O crítico Humberto de Campos – um dos defensores de Gilka junto a Osório Duque Estrada e outros – relatou, em Diário Secreto uma conversa com o também crítico Afrânio Peixoto, na qual este contava sobre o encontro que teve com Gilka ao ir lhe entregar uma carta. Peixoto disse, com desdém, que não imaginava que a poeta era uma “mulatinha escura” e fez questão de enfatizar que o ambiente de sua morada “respirava pobreza”.

Gilka é a mulher à esquerda e seu marido, Rodolfo, é o homem à direita, na parte de trás. Também estão na foto as escritoras Albertina Bertha e Laura da Costa e Silva. Foto: Revista Careta/Biblioteca Nacional

A família também foi considerada culpada pela devassidão daquela moça que, aos 22 anos, se empenhou em se livrar das garras da sociedade. O registro da mãe como prostituta para poder trabalhar com atriz de rádio era motivo de chacota para depreciar suas origens, além de atribuírem culpa ao pai, um beberrão que batizou-a em homenagem a uma vodca alemã chamada Gilka. Assim, a poeta foi colocada à prova do método de Hippolyte Taine, baseado na ideia de determinismo, no qual a pessoa está fadada a se comportar de acordo com sua raça, seu momento histórico e o meio em que vive. Portanto, a culpa da imoralidade de Gilka vinha do fato de ser negra, da família “perturbada” e do momento histórico no qual o feminismo efervescia com as sufragistas.

Gilka não deixou barato as acusações preconceituosas. E também recusou a ajuda de grandes nomes. Recusou, por exemplo, o pedido de Olavo Bilac para escrever o prefácio de Cristais Partidos. Quando Bilac perguntou do por que, Gilka apenas respondeu que queria aparecer para o público sem defesa. “Havia no meu ser um a torrente que era impossível represar: os versos fluíam, as estrofes cascateavam… E continuei, ritmando minha verdade, então com mais veemência”, escreveu na abertura de Poesias Completas, de 1978. Condenou seus críticos diretamente e indiretamente, nas entrelinhas de sua escrita. Era ela, segundo seus censores, a responsável pela depravação moral das moças da sociedade carioca.

Em evento de 1934, brinca com o boneco apelidado de Tupo. Foto: Revista O Malho/Biblioteca Nacional

No poema Comigo Mesma, é possível reconhecer essa característica gilkiana, como no verso “Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?/Dança, porém, não como a Salomé da lenda,/a lírica assassina”, onde a injúria hostil eram as opiniões dos críticos sobre ela e a dança era o seu hábito de escrita. Nos versos de Conjecturando, dedicado a Duque Estrada, desabafa sobre desistir de lutar. “Convenci-me/agora, de que o gozo é um crime” é como ela inicia uma das estrofes do poema, onde fala sobre depor armas e se entregar à morte. Ali estava uma referência clara ao cansaço que a abateu com o passar do tempo, fazendo com que desistisse de continuar rebatendo a crítica e acabasse reclusa.

Foi a única mulher a colaborar, eventualmente, na revista erótica A Maçã. Extremamente machista, a criação de Humberto de Campos escandalizou por trazer conteúdo picante, que colocava a mulher de forma submissa e degradante. E, ao lado de Cecília Meireles, formou a dupla de únicas mulheres a escreverem para Festa, revista lançada em 1927 por Tasso da Silveira e Andrade Muricy.

 

Uma segunda libertação

No centro da foto, Albertina Bertha está acompanhada de outras fortes autoras brasileiras: a sua direita, Gilka Machado, primeira poeta erótica do País, que teve sua obra reeditada neste ano; no lado oposto, a poeta Laura da Fonseca e Silva, que desafiou a sociedade ao contestar o casamento e a maternidade como desígnios femininos. Foto: Revista Careta/ Acervo Biblioteca Nacional

Representativas no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade, na política ou na literatura, algumas autoras brasileiras de grande talento, do século XIX e XX, ficaram no limbo, esquecidas. A maioria delas nem sequer teve o devido reconhecimento em vida, destino ao qual muitos escritores medíocres – homens – escaparam com folga.  Hoje há diversos trabalhos de amorosa garimpagem para redescobrir essas romancistas, contistas e poetas. Importantes figuras femininas da literatura brasileira, elas têm ganhado reedições de suas obras nos últimos três anos.

É um trabalho de pesquisa que envolve paixão e determinação. Foi assim que o jornalista e escritor Ramon Nunes Mello resolveu colocar Adalgisa Nery (1905-1980) de volta em circulação depois de décadas deixada de lado. Mulher expressiva no jornalismo político do Estado Novo e da ditadura militar, a carioca escreveu em verso e em prosa. “A biografia de Adalgisa é tão forte que se sobrepõe à obra”, pontua o organizador.

Casada com o pintor Ismael Nery e, depois, com o jornalista Lourival Fontes, sua história é repleta de situações aflitivas. “A obra poética da Adalgisa é quase um canto de angústia, embora ela se apresentasse como uma mulher altiva”, destaca Ramon, referindo-se a Cantos da Angústia, título de um dos livros de poesia da escritora, lançado em 1948.

Desde 2015, foram reeditados pela José Olympio, mesma editora que publicou as obras de Adalgisa em vida, os romances A Imaginária, uma autoficção, e Neblina. Por considerar a produção poética de Adalgisa desigual, o organizador pretende reeditar sua poesia em uma antologia. Ligada ao modernismo brasileiro, foi muito amiga de Graciliano Ramos e Murilo Mendes, assim como dos pintores Frida Kahlo, Diego Rivera e Cândido Portinari. “A escrita dela mostra que não há um modernismo brasileiro, há modernismos”, diz Ramon, que considera os textos da também jornalista muito ligados ao pré-existencialismo do primeiro marido.

Quando se fala sobre a angústia de Adalgisa, aliás, deve-se pensar em Ismael Nery. Em A Imaginária, o alter ego da autora narra situações constantes de humilhação pelas quais o marido a fazia passar. A arma que o cultuado pintor surrealista usava era o abuso psicológico, sempre tentando colocá-la em situação de inferioridade. Proibia Adalgisa de participar dos eventos que fazia em sua própria casa para artistas e intelectuais, referindo-se a ela com desprezo, fazendo pouco-caso de sua existência. Não suficiente, Adalgisa também sofreu na maternidade. Teve oito filhos com Ismael, sendo que apenas o primeiro e o último sobreviveram.

Amiga de artistas renomados, Adalgisa Nery foi retratada por muitos dos grandes pintores do século XX. Entre eles, Diego Rivera, companheiro de Frida Kahlo. Na foto à esquerda, de 1945, Frida está no centro, entre Adalgisa e Lourival, segundo marido da brasileira. Nos dois extremos estão o pintor Rufino Tamayo e sua esposa, Olga. Foto: Arquivo Diego Rivera e Frida Kahlo

Só depois de enviuvar, em 1934, Adalgisa se tornou escritora. Lançou seu primeiro livro em 1937, e a partir daí teve uma produção constante até dois anos antes de se recolher, espontaneamente, em uma casa de repouso, onde morreu. O casamento com Lourival Fontes, jornalista responsável pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, foi outro motivo de controvérsias. Amigos de Adalgisa se espantavam ao ver uma mulher como ela, ligada a ideais de esquerda e que chegou a ser fichada como comunista, casada com um agente autoritário de Getúlio. Alguns, inclusive o dono da editora pela qual publicava, diziam que ela havia se casado com Lourival apenas pelo sadismo de fazer ciúmes para Murilo Mendes, que a cortejava insistentemente.

Ramon perseverou para conseguir que os livros fossem reeditados pela própria José Olympio. “Fico muito feliz em trazê-la de volta pela mesma editora 35 anos depois”, confessa. E completa: “A gente publica tanta coisa nova com qualidade não tão boa, sendo que temos muitos autores antigos bons e esquecidos”. Até o fim do ano, pretende publicar a mencionada antologia poética e um livro de contos de Adalgisa.

Hospício

Outra que ganhou nova projeção em meados de 2015 foi a jornalista mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), depois que uma caixa com seus dois livros foi lançada pela Autêntica, por iniciativa da jornalista Daniela Lima. Entre a loucura e a lucidez, Maura foi muito comparada a Clarice Lispector, especialmente por conta do viés radicalmente subjetivo de sua obra, que discute tanto a esquizofrenia quanto a questão de gênero.

Internada algumas vezes em hospitais psiquiátricos, escreveu o diário Hospício é Deus aos 29 anos, quando internada no hospital Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro. O livro só foi editado e lançado seis anos depois, em 1965. Sua segunda e última obra publicada, a coletânea de contos O Sofredor do Ver, é de 1968. Esta já tinha ganhado uma reedição para associados da Confraria dos Bibliófolos, em 2012.

Vítima de abusos sexuais na infância, apresentava tendências suicidas. Ainda na adolescência, teve um filho com seu primeiro e único marido, com o qual se casou aos 14 anos. Um ano depois se separou. Em uma das vezes em que foi internada, assassinou outra paciente numa crise esquizofrênica.

Esses aspectos chocantes de sua bio­­grafia são mais lembrados que sua obra. “Talvez a pior das violências seja o esquecimento. E essa violência que  Maura sofreu, inclusive em vida, estará sendo corrigida aos poucos por todos que contribuírem para que os seus livros sejam lidos”, escreveu, em 2013, Daniela Lima em uma publicação na página de Facebook criada por ela para preservar a memória de Maura. Desde então, a pesquisadora já recolhia material para uma produção editorial sobre a escritora.

Em uma das vezes que foi recolhida em um hospício, Maura assassinou outra interna. Foto: Arquivo de família

Um pouco mais velha que as duas já citadas, Albertina Bertha (1880-1953) teve seu romance Exaltação co­locado à luz pela Biblioteca Nacional e a Gradiva Editorial no começo de 2016. O trabalho da pesquisadora Anna Faedrich evidencia a obra que foi um grande sucesso há um século. Isso porque o título foi considerado o maior romance feminista brasileiro, por debater questões de gênero como nenhum outro havia feito até então. Albertina também se destacava por debater política e direitos humanos.

Foi essa questão do apagamento da mulher na literatura que fez Anna se interessar por Albertina. Depois de estudar as características de estética, técnicas e subjetividade da escrita da autora, decidiu retomar o estudo sobre ela de forma mais sociológica. “Albertina Bertha e sua obra são um bom exemplo, entre muitos, das dificuldades de superar as pressões e opressões silenciosas que empurram os portadores de alguns atributos – o gênero, a cor, a origem ou as preferências – para se tornarem aquilo que queremos que sejam”, aponta Faedrich.  Ela também está envolvida na reedição do livro Nebulosas, da poeta Narcisa Amália (1856-1924), e de uma edição dos Cadernos da Biblioteca Nacional sobre crônicas de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). O primeiro tem previsão de lançamento para abril deste ano.

Por meio da coleção de cordéis Heroínas Ne­gras do Brasil, a escritora cearense Jarid Arraes foi mais longe e resgatou a história de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), entre outras. Negra, Firmina é considerada a primeira ro­­mancista da literatura brasileira e também a primeira a abordar questões abolicionistas.

Além do machismo, Firmina teve de enfrentar o racismo. O sociólogo e pesquisador Rafael Balseiro Zin levantou em artigo publicado na terceira Revista do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc uma curiosidade: a imagem mais usada para representar a autora não é dela, e sim da escritora gaúcha Maria Benedita Bormann, que era loira de olhos azuis. Segundo Zin, isso reforça o preconceito da época, já que sugere o raciocínio: “se escrevia, era branca”.

Feminismo possível

Também abolicionista e merecedora de destaque, Júlia Lopes ganhou espaço ao ter seus livros reeditados pela Editora Mulheres ao longo das duas décadas que a casa editorial está em atividade. Gerida por um grupo de pesquisadoras e especialmente por Zahidé Muzart, referência na área acadêmica e falecida em outubro de 2015, a Mulheres foi criada justamente para resgatar figuras femininas importantes do ostracismo.

O último livro de Júlia lançado pela Mulheres data de 2014, sendo sua obra um dos carros-chefes da casa. Sua criação é diversa e contém três dezenas de títulos, entre os quais figuram romances, peças teatrais, contos e até mesmo livros escolares. Curiosamente, Júlia foi uma das pessoas que idealizaram a Academia Brasileira de Letras, que só abriu as portas para as mulheres após sua morte.

Estudiosos como Leonara de Luca caracterizam a obra de Júlia como dotada de um “feminismo possível”. Ou seja, a atuação da autora no que dizia respeito à liberação da mulher era significativa, mas não chegava a ferir os padrões da época.  Sua atuação como escritora e jornalista se desenrolou por mais de 40 anos, abordando nos textos situações cotidianas nas quais a mulher era subjugada.

Aos poucos, o Brasil vai descobrindo e conhecendo tesouros nacionais deixados de lado durante o processo de construção do que hoje é o cânone literário – isto é, o conjunto de autores e obras que são indispensáveis. Para Nunes Mello, esse processo é carregado de senso de justiça, por dar a essas mulheres o espaço que merecem. Balseiro Zin reforça: vê essa configuração do cânone como fruto do contexto sociológico patriarcal e também escravocrata que sempre existiu no Brasil.

A organizadora da obra de Albertina, Anna Faedrich, concorda: “Resgatar escritoras que se perderam na memória da literatura, durante o processo de sedimentação do cânone literário atual, é um movimento importante, no campo da história literária e da luta política. Esse movimento, me parece, é parte de uma luta mais abrangente por reconhecimento de grupos, setores e histórias, parte da nova institucionalidade democrática brasileira, embora ela esteja sofrendo algum abalo recentemente”. Ela também acredita que “o trabalho de recuperação da literatura produzida por mulheres só pode ser coletivo e, na medida em que ganhe fôlego, permitirá repensar nossa história – e nossa história literária – e as pequenas e grandes exclusões do dia a dia”. Por isso, espera subsídios e contribuições para um projeto que pretende realizar: um site que tenha a história da literatura brasileira reescrita para incluir os esquecidos.

A resistência política de Tônia Carrero

Tônia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier, em cena da primeira montagem de 'Navalha na Carne' (1968), de Plínio Marcos. Foto: Reprodução

 

Aguerrida na luta contra a escalada de horror instaurada com o golpe civil-militar de 1964, a estupenda Tônia Carrero, que nos deixou na noite deste sábado (3) aos 95 anos, quando, em meio a uma cirurgia, foi vitimada por uma parada cardíaca, foi também decisiva na defesa da livre expressão do teatro brasileiro.

Na foto acima, na primeira montagem de Navalha na Carne, de Plinio Marcos, interpretando a prostituta Neusa Sueli, Tônia contracena com Nelson Xavier (o cafetão Vado) e Emiliano Queiroz (Veludo, considerado o primeiro personagem gay com profundidade dramática do teatro brasileiro, também empregado do bordel em que Neusa trabalha).

Revelado com a montagem de dois textos não menos arrebatadores, Barrela (1958) e Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966), Plínio, com o ineditismo de sua dramaturgia violenta e marginal, despertava o fascínio de atores, diretores e dramaturgos. Egresso do circo e apadrinhado por Patrícia Galvão, a Pagu, que então residia em Santos (SP), cidade natal do palhaço, ator e dramaturgo, Plínio estava no radar dos críticos teatrais da mesma forma com que era monitorado pelos militares e pelos censores.

A revelação de que Navalha na Carne, dirigida por Fauzi Arap a pedido de Plínio, seria produzida por Tônia, que faria a protagonista, virou motivo de chacota e suspeição. Belíssima e sofisticada, segundo alguns tolos, a atriz teria desempenho inverossímil como uma prostituta segregada no universo sórdido de um bordel.

Poster original da primeira montagem de ‘Navalha na Carne’. FOTO: Reprodução

Depois da estreia paulistana censurada logo nos primeiros dias, proibição confrontada com uma temporada de montagens intimistas organizadas por Cacilda Becker e Walmor Chagas no apartamento do casal, Navalha Na Carne, que na capital paulista foi dirigida por Jairo Arco e Flecha, com Ruthnéa de Moraes (Neusa Sueli), Paulo Villaça (Vado) e Edgard Gurgel Aranha (Veludo), debutou no Rio de Janeiro, em setembro de 1967, no Teatro Maison de France. A insolente montagem, depois transferida para o teatro Gláucio Gil, onde ficou em cartaz até fevereiro de 1968, arrebatou o público e silenciou o ceticismo de quem duvidava da força dramática da atriz.

Com o êxito da temporada carioca, Navalha na Carne percorreria o País, assim planejava Tônia, mas, graças à ostensiva mordaça em torno da obra de Plínio, severamente amplificada depois de 13 de dezembro de 1968 com o advento do AI-5, o espetáculo teve sua itinerância abreviada pela mão de ferro da censura e só voltou a ser encenado em 1980, com direção de Odilon Wagner.

Plínio, como era de se esperar, foi preso naquele ano, nas dependências do 2° Exército, em São Paulo, o mesmo local onde, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi covardemente assassinado e exposto como suicida. Com o apoio de amigos como Tônia e Cassiano Gabus Mendes, então diretor da TV Tupi, que liderou uma campanha em defesa do dramaturgo, Plínio foi libertado, com a condição de acatar a ordem de interdição nacional de todas as suas peças.

Promessa não cumprida, voltou ao xilindró quando, em 26 de maio de 1969, no Teatro Coliseu, pretendia encenar Dois Perdidos Numa Noite Suja. Do presídio de Santos, foi depois transferido para o DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, em Sâo Paulo. Com o apoio de amigos, Maria Della Costa e Tônia na linha de frente, logo foi libertado e novamente orientado a não montar suas peças.

Imposição que o levou, por recomendação dos colegas de ofício, assombrados com os descaminhos do Brasil daqueles dias, a dar continuidade à faceta de ator na TV, onde, no papel de Vittorio, fez sucesso nacional na telenovela Beto Rockfeller.

No site oficial dedicado ao dramaturgo, há um relato de Plínio que dimensiona a coragem de Tônia Carrero. 

“A apresentação da peça, a portas fechadas, seria no Teatro Opinião. O Exército cercou o teatro. Proibiu a apresentação. Tônia Carrero comprou a briga. Levou a apresentação para uma casa vazia que ela tinha no morro de Santa Teresa. Pra despistar, fiquei dando entrevista aos jornalistas, enquanto o povo, que recebia senhas com o endereço da casa, ia saindo sem alarde. A casa ficou lotadinha e tinha público para outro espetáculo. Foi preciso muita coragem. Tônia precisou jogar na mesa todo o seu prestígio. Precisou encarar uma briga feia com seus parentes generais. Mas ela ganhou e estreou.”

Tônia deixa, além de suas históricas atuações em 54 peças, 19 filmes e 15 telenovelas, um legado de resistência que contrasta com o analfabetismo político e a alienação ideológica de muitos de seus pares de hoje, quando a democracia novamente esfalece. Missão cumprida. Que siga em paz!

MAIS 

Em 1969, com direção de Braz Chediak, Navalha na Carne foi vertida para o cinema. Do elenco original da peça, apenas Emiliano Queiroz. Nelson Xavier foi substituído por Jece Valadão. Tônia Carrero por Glauce Rocha. Veja abaixo o filme na íntegra.

Dez anos de união fraterna

A partir da esquerda, Galo, Julia, Rafael, Leila, Felipe, Remi, Guto, Tomás, Ciça, Cabelo, Pedro e Marcos; embaixo da mesa, a nova geração, Dora (filha de Rafael) e Amora (de Guto). FOTO: Pablo Saborido

Na história recente da música brasileira, grupos de formação extensa dificilmente mantiveram longevidade. Um noneto, o grupo Abolição, liderado pelo pianista Dom Salvador, durou apenas dois anos, mas legou uma obra-prima, o álbum Som, Sangue e Raça, de 1971. Nove anos mais tarde, a Banda Sabor de Veneno, composta por 14 músicos e liderada por Arrigo Barnabé, foi o dínamo que deu vida ao anárquico Clara Crocodilo. A discografia do grupo, no entanto, cessou por aí. Na contramão, desafiando a complexidade de coexistência entre 13 artistas, o grupo paulistano Trupe Chá de Boldo celebra dez anos de som, estrada, três álbuns autorais, Bárbaro (2010), Nave Manha (2012) e Presente (2015), e parcerias baseadas em afinidades – entre elas, Tribunal do Feicibuque, do tropicalista Tom Zé.

No pacote de celebrações do primeiro decênio da Trupe estão previstos uma série de shows e um álbum de releituras de compositores admirados pela banda, além do recém-lançado Presente Pra Viagem (ouça), trabalho que traz versões em dub, mixadas pelo produtor nova-iorquino Victor Rice, do álbum Presente, o mais recente da banda, dedicado a Rayraí, trompetista, gaitista e clarinetista, morto em 2015, em decorrência de um câncer.

Para reverberar a fraternidade que há entre os membros da Trupe, propusemos à banda uma entrevista em formato inusitado: 13 perguntas sorteadas entre eles. A seguir o resultado dessa “loteria”.

CULTURA!Brasileiros – Como é possível estabelecer decisões democráticas em um grupo tão diverso? Aliás, é correto dizer que a Trupe é uma banda plural, ou a aproximação de vocês se deu mais por afinidades?
Gustavo Cabelo (guitarra) – Não acho que afinidade seja a palavra mais precisa. O que realmente nos une é a amizade. É uma relação de amor muito grande, um amor que transborda. Discordâncias e diferenças sempre existirão, mas tudo é resolvido da maneira mais horizontal. Talvez isso seja possível pela ausência de um chefe, ou pela falta de vontade de se pretender um líder. A amizade aniquila hierarquias. A vontade de fazer nos faz avançar quando surgem pequenas ou grandes questões.

Viver de música no Brasil é algo viável para uma banda com 13 integrantes?Leila Pereira (voz) – Viver de música no Brasil é difícil. Seja para um artista solo, seja para uma banda pequena ou para uma banda grande como a nossa. Principalmente nos tempos em que vivemos, em que o corte de recursos para o financiamento dos mais diversos projetos artísticos está cada vez mais frequente. Talvez por isso cada integrante da Trupe atue paralelamente em outras atividades, sejam elas no campo das artes, sejam fora dele. O interessante é que, ao mesmo tempo que a dificuldade limita de certa maneira nosso campo de atuação como banda (afinal, estamos há um bom tempo tentando realizar uma turnê em outras regiões brasileiras, como o Nordeste, por exemplo), ela é a base fundadora da Trupe, pois contribui com a diversidade, que é essencial à nossa produção musical.

A realidade sociopolítica do País influencia a produção musical e o comportamento da banda?
Julia Valiengo (voz) – A Trupe sempre procura se posicionar em relação às grandes questões sociopolíticas, não apenas através da música, mas também se expressando com fotos, vídeos e textos.  Não à toa gravamos em nosso último disco as canções Jovem Tirano, Príncipe Besta (Negro Leo) e Meu Tesão é Outro (Gustavo Galo, Ciça Góes, Felipe Botelho e Marcelo Segreto). Ambas falam de questões bem atuais e traduzem alguns de nossos incômodos. A canção Na Garrafa (Julia Valiengo, Gustavo Galo e Paulo Cesar de Carvalho), do Nave Manha, por exemplo, é uma música de amor, mas deixa clara nossa disposição em não aceitar aquilo que nos aborrece. Acima de tudo, ser uma banda independente e ter a liberdade de decidir cada passo que queremos dar é também uma posição política.

Que predicados foram determinantes para definir os artistas e o repertório do novo projeto de releituras?
Pedro Gongom (bateria) – Como quase tudo que a gente fez até hoje, essa decisão passa muito pelo espaço afetivo da banda. Éramos um trio no começo e fomos crescendo até virarmos os 13 atuais. Do mesmo jeito, na nossa trajetória, sempre tentamos puxar para dentro alguns artistas queridos que passavam por perto. Para esse projeto paramos para lembrar de todo mundo que já tinha feito coisas com a gente, participado em disco, show. Todos os artistas que a Trupe já deu uma namoradinha. Depois disso discutimos calorosamente por mais 40 horas.

Se tivesse de mencionar um momento memorável para a banda, qual seria?Guto Nogueira (percussão) – Jamais esqueceremos da sensação alucinante de ver a noite da cidade (São Paulo) invadir o palco do Auditório Ibirapuera. Aquele portão gigantesco se abrindo lentamente, revelando aos poucos aquela imagem absurda do jardim do parque e mais ao fundo a silhueta da cidade… Foi incrível!

Se tivesse de mencionar um episódio a ser esquecido pelo grupo, qual seria?Marcos Mumu (sax tenor) – Uma vez fomos ao estúdio da Rede Globo gravar uma música para o Programa do Jô. Montaram um palco, encheram o espaço da plateia com uma molecada bem nova, que não conhecia o nosso som, e mandaram eles ficarem gritando como se fossem fãs. “Se não gritar alto não ganha o sanduíche no final”, dizia uma voz que vinha das caixas de som. Não bastasse o constrangimento, no meio da gravação o diretor decidiu que queria outra música, não mais a que havíamos combinado com eles e ensaiado. Na semana seguinte fomos avisados que “por conta de um problema técnico” a gravação não iria ao ar.  Padrão Globo de qualidade.

Acredita que seja possível rotular a sonoridade da banda em um gênero musical consolidado? Caso sim, que gênero seria esse? Caso não, por que não é possível?
Cuca Ferreira (sax barítono) – Acredito que atualmente gênero na música brasileira nem é mais uma questão musical. São muitos artistas, com histórias musicais e pessoais que por mais que tenham muito em comum acabam por trazer uma variedade de influências e propostas sem fim. Mas havendo a necessidade, a explicação do som está bem definida na letra da música Splix, do Nave Manha:
SambaRumbaCumbiaGuarañaPopPunkPolkaIndieRockAmyMpbMiMaiorTomzé!

Nesses dez anos é possível afirmar que vocês e outros artistas criaram uma cena musical representativa da geração à qual pertencem? Nesse contexto, qual o lugar da Trupe?
Felipe Botelho (baixo) – Nossa geração teve de construir uma nova maneira de produzir música e se relacionar com o público. A própria criação musical foi transformada por este novo cenário, e acho que refletimos isso. Dentro da cena de São Paulo alguns artistas estão rompendo barreiras da música independente, flertando com um público mais amplo e com as mídias mais tradicionais, colocando músicas em novela, por exemplo. A Trupe ainda se mantém como uma banda independente, o que é ótimo. Apesar de Na Garrafa ter tocado na TV e ter chegado em vários lugares do País, ainda temos um lugar mais underground. Não só pelas dificuldades de ter uma banda com tanta gente, mas também pelo fato de, apesar de sermos uma banda pop, termos um lado mais experimental, menos comercial, no nosso som.

Como é possível unificar as proposições individuais do grupo na hora de definir os arranjos?
Remi Chatain (sax alto) – Os arranjos são feitos em grande parte de forma coletiva durante os ensaios da banda. Não existe uma regra, uma metodologia fixa. Às vezes alguém traz uma ideia de groove, uma linha de baixo ou guitarra ou uma parte instrumental para experimentar com os sopros e nem sempre as coisas se conjugam. Daí é preciso descartar ideias e apostar em outras. Quase sempre as escolhas nos levam a ideias completamente diferentes.

A banda colaborou com Tom Zé, inclusive, em parcerias autorais. Que artistas de outras gerações despertam em vocês o mesmo desejo de diálogo?Ciça Góes (voz) – Essa coisa de geração é deliciosa. Na proximidade entre elas a diferença fica muito na cara e ao mesmo não, quando você e a outra pessoa estão bebendo da mesma garrafa, lendo a mesma manchete do jornal e olhando um para o outro em seguida. Uma coisa para se celebrar. Nesse sentido podemos falar que gostaríamos de tocar com Arnaldo Antunes, ou com Pepeu Gomes, por exemplo, mas também com gente desconhecida e de quem ainda não conhecemos o som.

Que impactos a perda do amigo Ray exerceu sobre as relações interpessoais e o processo criativo da banda?
Rafael Werblowsky (percussão) – Acho que mais fácil é falar da presença dele. O Ray era meio ranzinza, ao mesmo tempo que tinha um baita humor. Tocava gaita, trompete e clarinete e tinha grande conhecimento de teoria musical. Acho que, nos anos em que esteve com a gente, ele enriqueceu o som da banda.  Sempre dava ideias boas para os arranjos (o de Se Eu for Parar, de Nave Manha, por exemplo, foi quase todo pensado por ele), sem contar a parte do convívio, da amizade. Sobre a morte, é mais difícil falar. O Presente, nosso último disco, é dedicado ao Ray.

Nos próximos dez anos, é razoável vislumbrar que vocês estarão juntos? Tomás Bastos (guitarra) – Bom, razoável acho que é, mas eu prefiro não projetar tanto. Não estou dizendo que não vamos estar juntos, mas que talvez não importe tanto pensar nesse futuro distante. O maior desafio é a construção cotidiana, manter uma renovação diária com tesão. Como canta a Iara Rennó em um de seus discos novos “a cada aurora sou uma nova a toda hora um pouco mais”. Agora, pensando que somos 13, essa renovação do grupo e de cada um dos indivíduos ganha outras proporções. Vem como uma força gigante dentro do nosso coletivo e de alguma forma é um disparador, move nosso som, faz com que nunca saibamos exatamente o que somos, ou como estamos. Penso numa banda um pouco como um namoro, só que entre muita gente, e acho que a projeção de maneira geral pode dar em coisa errada. Pessoalmente, posso dizer que quero fazer som dentro desse coletivo até o fim da minha vida, mas sei que se isso acontecer vai ser de um jeito que nem eu nem ninguém da Trupe pode imaginar.

Em termos de influência criativa, existem artistas que são unânimes para vocês? Quem são eles?
Gustavo Galo (voz) – Unanimidade é algo muito distante da Trupe. Estamos sempre em movimento, animados pelas tensões, pelas dissonâncias. Até mesmo em relação às chamadas influências. Elas variam muito entre os integrantes da banda. Em alguns momentos nos aproximamos mais de determinados artistas. E muitas vezes nasce uma amizade que afeta bastante o nosso trabalho. Então, para um artista influenciar a Trupe, somado ao trabalho que ele desenvolve, tem que conviver, tem que dar tesão de estar junto.

MAIS
– Veja abaixo o clipe de Na Garrafa, do álbum Nave Manha